Lula com o crítico de cinema Pablo Villaça, um petista de carteirinha. |
Reação da militância esquerdista à série da Netflix é comentada por Paulo Roberto Silva em artigo publicado no site Amálgama.
Muito apropriadamente, o autor chama tal militância de idealista. A
esquerda é, de fato, idealista, eternamente presa ao círculo
hegeliano-marxista. A propósito, recomendo as obras do saudoso Kenneth Minogue, severo crítico do idealismo político:
Na última sexta-feira
estreou na Netflix a série O Mecanismo, de José Padilha, uma
reconstrução ficcional da Lava Jato. Imediatamente, o crítico de cinema
Pablo Villaça, conhecido por seu alinhamento ao petismo, anunciou que
cancelaria a assinatura da Netflix, no que foi seguido pela militância.
Exceto pelo Lula, a conta dele está no nome de um amigo.
Do ponto de vista
meramente formal, a série não é lá grande coisa. É arrastada, mesmo no
formato mais curto de oito episódios. E tem aqueles tiques típicos do
Padilha, como o narrador que trata a audiência como burra e o
protagonista que lembra o Capitão Nascimento. Mas dá para o gasto. Eu me
diverti assistindo, e é isso que importa.
Mas a turma
inteligentinha da militância surtou. Além de reduzir a série toda a uma
frase do Jucá colocada na boca do personagem Higino – evidentemente
inspirado no Lula -, criou o mais novo pleonasmo em inglês, “fake
fiction”, o equivalente narrativo do “subir para cima”. O Mecanismo
incomodou, e muito. Involuntariamente, o surto deu à série uma
divulgação que ela não mereceria tecnicamente, e acabou reforçando seus
pontos fortes.
Sílvio Pedrosa
lembrou bem que o processo de construção da Narrativa do Golpe foi
elaborado. Havia quatro equipes de documentaristas gravando a defesa da
Dilma no Senado (sim, parece que temos um golpe com amplo direito a
defesa). Não foi por acaso. Estava em produção a construção de diversos
filmes sobre a agonia do lulopetismo e a ascensão do “fascismo” (sabe
fascismo, aquilo que é característico das pessoas que respiram? Então). A
Netflix e o Padilha desmontaram esse discurso com um peteleco,
mostrando a promiscuidade da relação entre governo e empresas em todos
os governos.
Como mostra o Bruno Cava:
A corrupção é comparada ao câncer, uma doença em geral disparada por razões ambientais e que se alastra molecularmente, com efeitos catastróficos sobre o corpo. Diagnosticado com transtorno bipolar, Ruffo (Selton Mello) vai passear no limiar da loucura, exatamente onde consegue tocar a loucura do próprio sistema, a sua demência constitutiva. A conexão entre a condição mental do protagonista e o autismo da filha, fissurada pelo conjunto de Mandelbrot, leva-os ao clímax revelador da primeira temporada: a lógica fractal da corrupção sistêmica.
O grande mérito de O
Mecanismo é mostrar como a corrupção se espalhou na lógica de
funcionamento do Estado. Representativo deste processo é o episódio do
vazamento de esgoto na porta da casa de Marco Ruffo, personagem de
Selton Mello. Ao acionar os caminhos institucionais para resolver o
problema – basicamente, chamar a companhia de saneamento básico -, ele
se depara com uma versão mais pobre e menor do modelo da Lava Jato. Ali,
um bilhão não faz falta. Aqui, retira-se propina de seiscentos reais.
Que os cabeças do
poder se incomodem com a Netflix, eu consigo entender. O que espanta é
que pessoas que se movem por sentimentos de indignação e mudança estejam
ativamente contra a série. Denunciam-na como golpista, mesmo quando ela
escancara a relação generalizada de todos os partidos com a corrupção –
todos, do PSOL ao PSL do Bolsonaro. Como pessoas que dizem querer mudar
o Brasil defendem o que há de mais pernicioso neste país? Sim, não
adianta querer reduzir a nada o desejo de mudanças dessas pessoas, gente
sem ideal não aloca o tempo livre para discutir política de graça.
O fato é que, ao
aderirem à Narrativa do Golpe, eles compram um discurso elaborado a anos
que reduz o peso da corrupção na pauta da esquerda. O caso mais acabado
é a produção recente de Jessé Souza. Ao tratar a escravidão como “O”
grande problema do País, ele reduz a luta contra a corrupção a uma
suposta agenda neoliberal com objetivo de reduzir o tamanho do Estado.
Jessé deliberadamente insere uma clivagem entre a luta contra a
corrupção e o enfrentamento às sequelas da escravidão na nossa
sociedade.
O ponto é que não há
esta clivagem. A mesma elite que produziu a escravidão criou um Estado
para servi-la. Como enfatiza o personagem de O Mecanismo JPR, diretor da
estatal Petrobrasil, em sua delação premiada, o primeiro ato de
corrupção aconteceu quando um traficante de escravos cedeu seu imóvel
para a família real portuguesa em 1808. Escravidão e corrupção andando
lado a lado. Desde sempre.
É interessante aliás
lembrar a definição de Lênin do Estado como “instrumento de exploração
da classe oprimida”, em O Estado e a Revolução:
Na República democrática a riqueza utiliza-se do seu poder indiretamente, mas com maior segurança, pela corrupção pura e simples.
Se a corrupção é o
meio pelo qual a riqueza, o grande capital, exerce seu poder sobre o
Estado, a luta contra a corrupção é um dever da esquerda. Inclusive, ela
precisa ser ainda mais rigorosa com aqueles que levam o poder do
capital para dentro das organizações de luta dos trabalhadores, ou seja,
partido e sindicatos.
Mas não, ela compra o
duplipensar do Jessé Souza e trata qualquer denúncia do Mecanismo de
corrupção como parte da agenda neoliberal. A militância idealista passa a
assinar o recibo do poder do grande capital sobre o Estado, em
detrimento dos pobres. O inimigo real das esquerdas tem nome, e seu nome
é Lula.
Mas a galera prefere brigar com o José Padilha.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário