Fernando Gabeira, em
artigo publicado no Globo, critica a esquerda (apesar de ter um pezinho
lá, ainda), que responsabiliza pela crise que vivemos. O problema,
Gabeira, é que só tivemos esquerda: nunca houve alternativa. E lamento
que você não seja o nosso Maurício Rojas, ex-guerrilheiro chileno que
também viveu na Suécia, onde já foi membro do parlamento, e é hoje um
defensor da cultura da liberdade - na expressão utilizada por Vargas
Llosa para designar o liberalismo. Segue "O ovo da serpente":
Alguns analistas
dizem que os mais velhos hoje já não entendem seus filhos e são
condenados a viver, no mundo digital, como imigrantes no próprio país.
Meu caso é mais prosaico. Sinto-me como imigrante no Brasil ao assistir a uma sessão do Supremo Tribunal Federal.
O Brasil que habitava
desde a redemocratização pelo menos tinha esperanças. O que se vê hoje é
o declínio de toda a experiência democrática das três últimas décadas. O
sistema político foi engolfado pelos custos de campanha, corrompeu-se e
perdeu o contato com a sociedade.
O Supremo mostrou-se
uma parte apenas desse corpo em decomposição. Não apenas pelo mérito de
sua discussão, mas também pela forma. Quem iria supor que num momento
histórico um ministro iria alegar, ao vivo, uma viagem para interromper a
decisão. Ou que, também num momento histórico, era necessário respeitar
o horário regimental.
Levamos o Brasil mais
a sério. É impensável que, numa grande questão nacional, se reunissem
por duas horas, fizessem uma hora de lanche e voltassem cansados, sem
condições de raciocínio.
As coisas acontecem, e
tudo o que dizem aos repórteres é: isto é inadmissível. Muitas coisas
no Brasil hoje são consideradas, justamente, inadmissíveis: violência
política, tiros, troca de insultos.
Solidário com todas
as vítimas, tento avançar um pouco e perguntar: o que produz tantas
coisas inadmissíveis no Brasil? E como entender suas causas e recuperar a
convivência?
Muitas vezes citado
em momentos críticos, o filme de Ingmar Bergman “O ovo da serpente”
mostra os conflitos na Alemanha na ascensão do nazismo. As
circunstâncias são diferentes mas uma lição histórica, que talvez valha
para outros momentos, é que a ascensão de um movimento autoritário não é
algo que se afirma em contextos de grandes erros estratégicos da
esquerda.
O Brasil está
dividido em torno de uma concepção de justiça. Toneladas de provas,
milhões de dólares, ruína da Petrobras, todos esses fatos descobertos
pela Lava-Jato não podem ser negados.
Até podem, mas a um
preço muito alto para a própria democracia. O Supremo hesita agora num
momento decisivo, o da prisão de Lula.
Esta hesitação leva
em conta os movimentos de massa, pró e contra. Mas quando democráticos,
não fazem tanto mal quanto a perda de confiança na Justiça, um ácido que
corrói a convivência e estimula saídas desesperadas.
A tática de lançar a
candidatura de Lula acabou ofuscando a própria campanha eleitoral. Em
outro país, ela já teria começado. Lula, por sua vez, não se comporta
como candidato a presidente, mas sim à própria liberdade.
Em vez de estarem em
jogo os principais lances da reconstrução nacional, a discussão
estacionou num debate que sucessivos julgamentos já tinham esgotado.
Infelizmente, a esquerda vê como adversário quem reconhece a realidade
dos fatos e, com isso, coloca num campo adversário milhões de pessoas
que não são autoritárias nem fascistas.
A crise que estamos
vivendo é resultado do fracasso de um longo governo da esquerda. Seus
erros estimularam o surgimento de inúmeras tendências na direita,
inclusive a mais autoritária.
O jogo da
radicalização pode ser jogado com gosto por alguns. No entanto, seu
desdobramento seria um país dividido, uma saída messiânica de um lado ou
de outro. Esse argumento não comove nem direita nem esquerda
autoritárias. Ambas contam com o conflito como dinâmica de sua
estratégia de poder.
Mas é preciso fugir da lógica que cria milhões de imigrantes no próprio país.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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