Com o habitual sarcasmo,
Alberto Gonçalves desanca o bloco esquerdista que governa Portugal,
junto com o primeiro-ministro, o doutor Costa, esse "farol cuja luz atrai tudo para os calhaus, incluindo os ditos". Segue a sua coluna semanal no Observador:
Seis minutos e 47
segundos. Parece o título de um filme americano, mas é um filme
português. Trata-se do tempo – contado pelo Miguel Santos Carrapatoso em reportagem neste jornal
e incluindo o pedacinho em que a maquineta encravou – que o dr. Costa
demorou a limpar a Serra de São Mamede e a dar o exemplo em matéria de
prevenção de fogos florestais.
De agora em diante, o
cidadão consciencioso já não tem desculpa para desleixar o matagal.
Basta acordar, vestir o casaco verde mais impecável que a alta costura
líbia conseguiu conceber, apanhar um helicóptero patrocinado pelo
contribuinte, rumar a um bosque à escolha, enfiar caneleiras, viseira,
protector dos ouvidos e capacete, pegar na roçadora, garantir que as
televisões filmam o exercício, fingir que decepa dois tufos de musgo,
remover os adereços, regressar ao helicóptero e a casa e aguardar o
justo reconhecimento popular por tão destemida saga em prol do bem
comum. Não custa nada: ao dr. Costa não custou um cêntimo.
Os cínicos, leia-se a
“direita inorgânica do Observador” (cito Sua Excelência, o
primeiro-ministro), reduzirão a proeza a um gesto de propaganda reles,
assaz propenso a burlar as massas e pouco propenso a burlar as matas. Ou
seja, para esses sujeitos de má-fé, viúvos de Pedro Passos Coelho e
lacaios do “neoliberalismo”, logo que volte o calor voltará a arder o
que sobrou do ano passado (e que, feliz ou infelizmente, não foi muito).
O próprio dr. Costa admite a hipótese.
O que ele não admite,
para descanso da população ansiosa, é demitir-se em consequência de
eventuais calamidades. Isso é o que a “direita inorgânica” queria (a
direita orgânica está bem assim, obrigado): mal se reiniciem os
incêndios, o dr. Costa tomará a atitude que o seu cargo exige e, aposto,
partirá para uma praia espanhola, a coordenar remotamente as operações
de propaganda. De seguida, fará um discurso condoído, promessas de
medidas inadiáveis, apelos à participação da “comunidade” e a conscrição
forçada ou voluntária de cabras sapadoras. Daqui a um ano, nos
intervalos do Benfica, dedicará outros 6 minutos e 47 segundos ao
arvoredo, com o espectacular casaco verde, a permanente gargalhada de
respeito pelas vítimas e o jornalismo patriótico a tiracolo. O dr. Costa
é um líder autêntico, um farol cuja luz atrai tudo para os calhaus,
incluindo os ditos.
Agora a sério, em que
espécie de país é que semelhante exibição de desprezo pela inteligência
alheia passaria impune e até – em casos de sabujice terminal –
elogiada? Na Coreia do Norte, de certeza. E talvez naqueles desterros
onde o sociólogo Boaventura S. S. passeia trajes indígenas. De resto, se
calhar por não conhecer a realidade da Jordânia e do Uganda, falham-me
os termos de comparação. Claro que uma “comunicação social” (desculpem o
jargão) domesticada, uma resma de partidos vendidos à caridade alemã, a
gratidão dos privilegiados e um presidente com fobia do confronto
explicam parte das coisas. Duvido que expliquem as coisas todas.
O à-vontade com que
os governantes, ou o bando que desempenha o papel, atropelam a decência
não é normal sob qualquer perspectiva. Nem eles antecipariam tanta
facilidade, donde o evidente gozo com que a usufruem. De facto, fazem o
que lhes apetece e, o que agrava só ligeiramente a situação, sabem-se
livres de fazer o que lhes apetece. E sabem que nenhum castigo lhes
advirá. Podem subir os impostos a níveis inéditos e são aclamados por
“virar a página” da “austeridade”. Podem aumentar os gastos do Estado
para contentar clientelas e são louvados pelo rigor. Podem estrafegar a
saúde e o que calha para controlar o défice e são beatificados a
pretexto da “consciência social” (além de apreciados pelos “utentes” que
sofrem a manha). Podem baixar o défice de 2,8% para 3% e são
glorificados pelo “recorde” da “história democrática” (porque o dinheiro
“injectado” na CGD aparentemente não conta). Podem banhar-se nas
ignomínias da bola. Podem encenar a comédia de Tancos ou, em actos
sucessivos, a tragédia de Pedrógão Grande.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Em suma, podem tudo. E
poder tudo, sem escrutínio ou receio, dúvida ou sanção, é um sintoma,
razoavelmente inequívoco, de que o regime não se recomenda. A
possibilidade, crescentemente rara, de se escrever isto prova que ainda
não estamos em ditadura. Porém, já não estamos exactamente em
democracia. Entre dois pontos há sempre um processo, brusco ou suave,
manso ou violento, sombrio ou cómico. Eis o lugar em que nos
encontramos, que por acaso coincide com o que escolhemos e, lá vai
redundância, com o que merecemos. Boa Páscoa, para quem acredita em
ressurreições.
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