Afirmo que é chegada a hora de trocar de Shakespeare, de
buscar outro clichê. Essa história de que se faz muito barulho por nada
quando se apontam os arreganhos autoritários do PT é coisa de quem
prefere ignorar os fatos em nome ou da boa convivência com as fontes —
há jornalista que ainda acha que marca um golaço se recebe em primeira
mão a informação de qual setor da economia vai ganhar um presentinho de
Guido Mantega — ou em razão de adernamento ideológico mesmo. O clichê é
outro: não é loucura, é método. Olhem a Bolívia.
Por lá, aquele índio de araque estuprou a Constituição que ele mesmo
fez votar para concorrer à Presidência pela terceira vez. Deverá ser
reeleito porque suas milícias já tomaram conta de quase todo o país —
menos da parte próspera. Ficará no poder pelo menos 15 anos. Demonstro,
no texto, que todos esses “democratas” de esquerda chegam ao poder para
nele se grudar, para ficar o maior tempo possível: nunca menos de 10
anos. E sempre fraudando as leis, sem exceção? Chávez (Maduro), Daniel
Ortega, Evo Morales, Rafael Correa, Cristina (Néstor) Kirchner…
Toda essa
gente está organizada no Foro de São Paulo, que se reúne no Brasil no
fim de julho e começo de agosto, no 24ª encontro. Aparelhar o Judiciário
é uma das premissas básicas do poder conquistado pela turma. Costuma
ser a primeira tarefa tão logo se elegem. Toda essa escumalha citada
acima, sem exceção, chegou ao topo com seus respectivos países vivendo
graves crises institucionais. Então foi fácil sair chutando a porta.
Exceção feita à Nicarágua, em que houve uma sucessão regular, a
legalidade estava no seu grau zero. Aí qualquer noção de ordem parecia
servir. Não custa lembrar que a imprensa argentina, hoje perseguida, sem
trégua, por Cristina, deu apoio integral a Néstor Kirchner mesmo quando
já estava evidente que ele não era muito bom da cabeça.
Lamentavelmente, colhe parte do que plantou — há o risco de acontecer o
mesmo com a nossa, ainda que de forma mitigada.
No Brasil,
as coisas se deram de modo um pouco diferente. Lula herdou um país com
as instituições funcionando. Não havia crise nenhuma. Havia dificuldades
episódicas, sim, mas a realidade era bem outra. O país vinha de uma
grande conquista: domar a inflação. O Real havia tirado alguns milhões
da miséria. As promessas de Lula seduziram, mas havia um patamar que
ninguém estava disposto a negociar. E aí? Ora, a agenda continuava e
continua a mesma. A questão é saber como fazer.
Tentativas
de controlar a imprensa foram muitas e ainda estão em curso; tentativas
de controlar o Supremo, também, por meio da indicação de nomes
ideologicamente alinhados com a teses gerais do partido. O problema é
que a receita não deu muito certo. Alguns dos escolhidos, embora
comungassem daquela metafísica, preferiram o direito à subserviência —
há subservientes também, mas ainda não conseguem fazer a maioria. O
partido se dedica agora a tentar emplacar uma reforma política que
dificulte ao máximo a alternância de poder: o pilar desse projeto é o
financiamento público de campanha; no longo prazo, eles têm claro, é a
melhor forma de enfraquecer o PMDB, que pode ser um aliado episódico,
mas que, é evidente, é um adversário de longo prazo para a realização
plena do projeto hegemônico.
E há, sim,
um STF no meio do caminho. Todas aquela corja bolivariana (e
associados) conseguiu enfrentar os juízes e botar o guizo no pescoço dos
togados. Por que não aqui? João Paulo Cunha, o deputado condenado por
lavagem de dinheiro, corrupção passiva e peculato; o deputado que, a
despeito disso, integra a CCJ da Câmara e vota a favor de um projeto que
cassa prerrogativas do Supremo; esse João Paulo Cunha já expressou seu
inconformismo, por exemplo, com Joaquim Barbosa: “[Barbosa]
Chegou [ao Supremo] porque era compromisso nosso, do PT e do Lula, de
reparar um pedaço da injustiça histórica com os negros”. O
sentido das palavras é claro: queria lá um ministro que se comportasse
como devedor do partido. E há, efetivamente, os que são devedores do
partido, não é?, que sabem que não ocupam seus respectivos lugares por
notório saber jurídico, por notória experiência jurídica, por qualquer
notoriedade, em suma, oriunda de seu trabalho na esfera do direito.
O partido
tem algumas urgências; não pode esperar. É preciso acuar o Supremo e
logo! Numa evidência, então, de que a PEC bolivariana do deputado
Nazareno Fonteles não era só uma chicana individual, veio a público o
deputado Marco Maia (RS). Ele promete, agora, apresentar outra PEC, que,
segundo anuncia, busca impedir que uma liminar concedida por um
ministro paralise a tramitação de um projeto de lei. E saiu soltando os
cachorros no Supremo.
Marco Maia
é uma figura típica de um petismo hipertrofiado. Quando o partido era
pequeno ou médio e estava na oposição, seus parlamentares costumavam ser
experimentados líderes sindicais ou conhecidos, vamos dizer, políticos
de opinião… Maia já representou a chegada do baixo clero ao topo. Como
presidente da Câmara, imaginem!, era o segundo homem na linha
sucessória, presidente da República à parte. Depois de ter chegado a tal
cargo, pode não ter se transformado num cardeal do PT — isso, ele nunca
será —, mas já não é mais um frei dos pés descalços. Ao anunciar que
continua empenhado em quebrar a espinha do Supremo, evidencia, uma vez
mais, que se trata de um projeto do partido, em consonância com que se
vem fazendo na América Latina.
Em certo
sentido, é um vexame para o PT ser o maior partido de esquerda do
subcontinente (exceção feita ao cubano, mas esse não conta porque é
proibido haver outras legendas no país), liderar o governo há quase 11
anos na maior economia da região, e tudo isso com um Judiciário que
ainda pode ser considerado independente.
Não vão
desistir, não, de encabrestar o Supremo. Como não desistiram de
controlar a imprensa. Como não desistiram de impedir a alternância de
poder. E por que fazem tudo isso? Porque não conseguiriam se eleger
dentro das regras da democracia??? Claro que conseguiriam! Tanto é assim
que conseguiram.
O problema
é que sua natureza autoritária é mais forte do que qualquer parâmetro
racional que explique a realidade. É um caso de ódio à democracia, que
tem história. Eles são os herdeiros de um pensamento que vislumbra a
superação da contradição por meio da eliminação do contraditório. A
oposição, até agora, não conseguiu dar combate. Em certo sentido, o
petismo heavy metal tem razão ao identificar a verdadeira oposição em
áreas do Supremo (não em todo ele) e da imprensa (não em toda ela). Com
efeito, é nesses nichos que ainda se cultivam os valores democráticos
plenos. São, sim, oposição: oposição ao autoritarismo e ao método de
usar mecanismos da democracia para solapar o próprio regime democrático.
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