BLOG ORLANDO TAMBOSI
A direita precisa se unir. Todo o mundo mandando pix para todo o mundo já, porque a esquerda é malvada. O mundo se divide entre nós, os bons, e eles, os maus, sem nenhuma complexidade. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Um
dia tuitei qualquer coisa contra Lutero e apareceu um internauta
aleatório dizendo que eu não podia criticar Lutero, senão dividiria os
cristãos. A ironia histórica é deliciosa. Lutero foi justamente o maior
divisor da Cristandade desde o Cisma de 1054, que separou Roma de
Constantinopla, com católicos no Ocidente e ortodoxos no Oriente. A
divisão do Cisma pelo menos foi geográfica e não deu origem a guerras
intestinas; a um lisboeta não importava o credo de um moscovita. Na
modernidade, porém, Lutero e os príncipes alemães opostos aos Habsburgos
lançaram boa parte da Europa Ocidental em guerras civis. Ao cabo, a
divisão foi mais linguística que geográfica, com os reinos de línguas
latinas permanecendo católicos e os demais, grosso modo, criando igrejas
protestantes estatais. A Península Ibérica conseguiu se isolar da
confusão. Já a coroa da França, católica, perseguia os súditos
protestantes, enquanto que as coroas protestantes perseguiam os súditos
católicos.
Essa
frase é mais comum em duas versões seculares: “A esquerda precisa se
unir!” e “Não vamos dividir a direita!”. A delas tinha uma variante que
mostrava bem o contexto em que surgiu: “Esquerda unida, só na cadeia.”
Era a época do regime militar, quando o esquerdismo se consolidou como
identidade coletiva. Uma plêiade de denominações (leninistas,
trotskistas, estalinistas, foquistas, maoistas, contracultura, hippie
etc.) brigava entre si e só ficava junta mesmo quando o pessoal ia em
cana. Entre a ditadura e a redemocratização, os rótulos políticos,
outrora precisos, foram se convertendo na vaga identidade do
esquerdista.
Rótulo
e identidade são coisas diferentes. Um rótulo político serve para
abreviar um pensamento político, ao passo que uma identidade serve para
alguém se situar no mundo. Idealmente, um pensamento político deve ser
compartilhado por um número amplo; uma identidade, porém, deve ser
talhada individualmente, pois comporta vários predicados. Tais
predicados fazem uma pessoa ser valorizada ou desvalorizada entre os
seus pares.
Seria
muito vazio alguém que se enxergasse primariamente como um único
predicado ambulante. No entanto, em ambientes sectários ou polarizados, a
adesão a uma corrente política é sobrevalorizada como índice suficiente
de bondade e correção moral. Desta maneira o rótulo político e a
identidade se confundem. Se alguém diz que é um esquerdista, é
informação bastante para os seus pares. A pessoa não precisa fazer nada,
nem provar seu valor. E assim qualquer nulidade que repita chavões
irrefletidos e bajule as pessoas certas conseguia subir na vida
investindo na identidade, no predicado único, de esquerdista. Ser de
esquerda era garantia de possuir as virtudes necessárias em meios
letrados, nos quais o apadrinhamento é muito importante. Mas como os
meios letrados alcançaram uma uniformidade de pensamento insuportável,
declarar-se de esquerda não era mais grande coisa. O politicamente
correto veio bem a calhar, já que serviu para, entre uma montanha de
esquerdistas que pensam igual, selecioná-los com base em critérios
diferentes do pensamento, tais como cor da pele, sexo e orientação
sexual.
Coisa
importante a ser notada: quem vive de identidade vive de ser (ou
parecer ser) alguma coisa, e não de fazer coisas. Assim, quanto mais o
identitarismo se fortaleceu no âmbito acadêmico, mais irrelevante ele se
tornou para a sociedade. O bolchevique tentava fazer coisas; o
identitário vive numa bolha narcisista de autoafirmação. É escondido
durante eleições majoritárias, porque se abrir a boca, tira voto. Mas
ele não está nem aí, porque o que quer é afirmar a própria identidade.
Se Bolsonaro fosse reeleito, a vida deles seria mais interessante,
porque teriam mais ocasião para dar chilique e fazer drama.
Esse
uso do esquerdismo como identidade unidimensional não tinha equivalente
na direita até o advento do olavismo como movimento virtual. Se na
ditadura o mundo das letras (universidade e jornalismo) eram o âmbito da
dissidência, no século XXI é a internet. E a dissidência não se dava
mais em relação ao anticomunismo, mas sim à social-democracia e ao
progressismo. Tornou-se uma briga de velha classe falante contra nova
classe falante. Mas com algumas diferenças bem importantes: a esquerda
se hospeda em instituições que a sustentam com o erário, ou então são
bancadas por ONGs de bilionários. A direita, por outro lado, vive numa
anarquia generalizada, e via de regra se financia pedindo pix, vendendo
curso, criando start-up ou ganhando por monetização no Youtube.
Creio
que a única iniciativa economicamente estável da nova direita tenham
sido as editoras de livros. Não à toa, é um ramo que não exige
fidelidade ideológica ou político-partidária da clientela. Um leitor de
Gertrude Himmelfarb, de Thomas Sowell, de Ortega y Gasset ou de Gustavo
Corção dificilmente será um lacrador do PSOL (que não lê nada), mas
tampouco se limitará ao eleitorado de Jair Bolsonaro ou do MBL. As
editoras da nova direita acessam o mercado geral de letrados, que aliás
está muito mal servido com o sequestro de editoras tradicionais por
lacradores, com seus “leitores sensíveis”, tabus e mau gosto. As
editoras surgidas da nova direita vivem de livros, como as outras, e não
da identidade direitista.
Assim,
podemos dizer que a constituição da nova direita favorece a
multiplicação de trambiqueiros e charlatães, sobretudo virtuais. A
melhor prova disso na certa foram os youtubers que, desde o segundo
turno até o 8 de janeiro, ficavam anunciando golpe militar dentro de 72
horas. Muita gente via, eles ganhavam engajamento, o Youtube remunerava e
- por que não? - ganhavam pix, já que eram boas almas direitistas.
Os
direitistas trambiqueiros lembram muito os pastores trambiqueiros de
igrejinhas de esquina. Ambos usam da frivolidade de um grande grupo para
ganhar dinheiro sem que nenhuma instituição relevante se responsabilize
por isso. Se um petista enganou um esquerdista, ele pode ir reclamar no
diretório do PT. Mas se um youtuber avulso enganou um direitista, ele
desaparece como o pastor obscuro que foi preso vendendo droga.
Naturalmente
há padres ruins na Igreja Católica, mas há responsabilidade: todo
malfeito do padre macula a Igreja, e ela é chamada a responder. Alegando
insatisfação com a degeneração moral dessa instituição, Lutero e
seguidores puderam criar uma nova instituição. Mas depois veio outra, e
mais outra, e mais outra, de modo que, em potencial, há tantas igrejas
quantos grãos de areia na praia. Abriram-se as portas para cada um
dizer: “Agora vou me desligar dessa instituição desgraçada e criar uma
nova, pela qual eu respondo”. E assim sucessivamente, de modo que as
igrejas, cada vez mais miudinhas, equivalessem a responsabilidade
nenhuma. Esse é o caso das igrejas evangélicas no Brasil e nos EUA, onde
elas nunca foram religiões estatais. O Brasil por ter sido um país com
religião católica oficial, e os EUA por terem sido fundados por
protestantes de seitas variadas e, assim, nunca ter tido uma religião
oficial.
Resulta
que a turba de evangélicos e de direitistas brasileiros guardam uma
semelhança política pertinente, que é o fato de compartilharem uma
identidade coletiva sem responsabilidade nem institucionalidade. Fica
essa confusão generalizada, onde todo o mundo diz representar todo o
mundo, e que os rivais são trambiqueiros a serem extintos. Se um pastor
ganha um fiel, outro perde. O mesmo se dá com as facções da direita:
vide a briga de foice entre bolsonaristas, MBL e lavajatistas, iniciada
quando o bolsonarismo era governo e continuada até agora. Inclusive,
como a direita brasileira vive de mercado, o correligionário está fadado
a se tornar concorrente.
O
paralelo vai mais longe. O pastor trambiqueiro pede dinheiro e mais
dinheiro a fim de resolver problemas pontuais, tais como possessão
demoníaca, conflitos familiares e até falta de dinheiro. O certo é o
pagamento, e não a solução de quaisquer desses problemas. Quanto mais
aparições demoníacas, melhor para o negócio. Quanto maior o sucesso da
esquerda, melhor para a campanha eleitoral do candidato de direita. E
aqui não deixa de ser paradoxal, já que, em tese, políticos devem ser
eleitos para resolver problemas públicos. Ora, se vivemos num inferno
comunista, de que adianta votar num deputado? Se a liberdade de
expressão foi para o saco com ajuda das Big Techs, qual o sentido de
apostar em youtubers para o que quer que seja? É como se o fracasso
fosse sucesso, porque o que se espera é mais o espetáculo de um martírio
que soluções reais para problemas palpáveis.
Aqui
temos uma espécie de legitimação pela perseguição promovida por
autoridades. Não importa se um jornalista é péssimo e não fez nada de
relevante; se foi perseguido pela autoridade, será considerado um grande
homem. Esse ethos é bem protestante. Uma vez que os seguidores de
Lutero se fragmentaram em mil pedaços e não puderam se mostrar
moralmente superiores à Igreja Católica (note-se que as pautas
antiaborto e antirracismo eram católicas e obscurantistas antes de serem
abraçadas pela direita evangélica), resta usar a Inquisição para criar
uma identidade protestante oprimida e anticatólica. “Somos bons porque
somos mártires, somos mártires porque eles são maus”. Aí define-se mais o
eles do que o nós. E tudo isso lembra, outra vez, a dinâmica
identitária da esquerda e da direita: somos bons porque somos mártires
da ditadura militar/de Xandão, somos mártires porque eles são maus”. E
isso é falso. Muita gente ruim foi barbaramente perseguida ao longo da
história da humanidade, comunistas inclusive. No fundo, o martírio pela
perseguição acaba por demonizar a figura da autoridade em si mesma. E
quando o ex-oprimido vira autoridade, não quer se enxergar como
autoridade abusiva em hipótese alguma, pois abusivo é só o outro.
Há
mais outro vício que a direita e a esquerda compartilham com o
protestantismo. Na Igreja Católica, uns poucos têm que ser instruídos e
versados em teologia. O porteiro e o lavrador podem ser analfabetos,
pois confiam no padre que estudou por eles e os aconselha. Já o
protestantismo parte do pressuposto pouco realista de que cada porteiro e
lavrador tem que ler a Bíblia e ser versado o suficiente em teologia
para concluir que o pastor está correto em sua interpretação particular
da Palavra – concordando, por exemplo, com a doutrina da predestinação.
Ora, é muito difícil uma comunidade inteira, dotada de trabalhadores
braçais e pouco escolarizados, apreender teses opostas e manter em mente
o significado da doutrina que ele apoia. Mais fácil dizer “sou
calvinista”, criando uma identidade ligada a um homem particular. E, com
a retórica maniqueísta do martírio, está claro que nós somos bons
porque somos calvinistas, vocês são maus porque são opressores.
Portanto, um único predicado capaz de tornar alguém bom dentro de um
nicho – como esquerdista ou direitista.
Unir
a direita (ou a esquerda) não deveria ser prioridade de ninguém, pois
não moramos no Direitistão nem no Esquerdistão, e sim no Brasil, com
suas complexidades e conflitos. Essas são identidades que só têm sentido
dentro de um país dividido e radicalizado, estado que não é nada
desejável em si mesmo. O foco de todo brasileiro de mente sadia deveria
ser discernir quem está certo e quem está errado em leituras e
propostas, a fim de buscar soluções para os problemas do país. Em vez de
dizer "ele é de direita", deveríamos nos preocupar em dizer "ele tem
razão". É narcisismo achar que a autoafirmação individual como “de
direita” (o que quer que isso signifique) é um fim importante para o
público. É narcisismo, e é punido com golpe de trambiqueiro.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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