BLOG ORLANDO TAMBOSI
Ainda
me lembro de minha máquina de escrever. Foi meu pai que me trouxe de
uma viagem, lá pelos meus 6 anos de idade. “Só pode usar quando fizer 10
anos”, disse ele, e guardou aquela caixa misteriosa, que eu ia espiar
de vez em quando, no armário do escritório. Quando fiz 10 anos, ele
tinha ido embora. Usei aquela máquina até a faculdade, e a cada vez que
abria aquela caixa me lembrava dele. Até que um dia surgiram as
primeiras notícias sobre o computador pessoal. Aquilo de fato foi uma
revolução. Me lembro de explicar a um velho professor que o computador
era melhor que a sua máquina de escrever elétrica. Ele teimava que não,
que sua máquina tinha um “errorex” automático, com uma tintinha branca
que ia por cima da letra e apagava. Expliquei que no computador a letra
apagava sem tinta nenhuma, e que era só mandar imprimir depois. Ele logo
se conformou, olhando melancólico para aquela máquina que havia
comprado não fazia muito, e que subitamente tinha virado peça de museu.
A
segunda revolução a que assisti foi a da internet. Me lembro da
primeira vez que ouvi falar de um “e-mail”. “Dá pra mandar um texto
direto”, me disse um colega, “não precisa mais de disquete”. Achei
realmente incrível. Anos depois fui estudar em Barcelona e vivi um pouco
da euforia com a ideia da “conectividade global”, que aproximaria as
pessoas em uma “sociedade civil mundial”, como um dia escutei, naqueles
anos que antecederam o novo milênio. Confesso que nunca compartilhei
daquela euforia, em particular quando surgiram as redes sociais. A
primeira que vi foi o Orkut, e me pareceu uma bobagem para adolescentes.
Me recordo dos perfis falsos, da imediata percepção da maldade naquilo
tudo. Um conhecido entrou em pânico porque seu perfil falso o chamava de
“pedófilo”, e aquilo podia ser replicado infinitamente. Tudo que hoje
estamos cansados de saber, e até hoje não sabemos direito como lidar.
A
inteligência artificial é a terceira revolução a que assisto. E a mais
fascinante. Me dizem que tudo é um grande risco, que logo as máquinas
criarão narrativas, religiões, doutrinas políticas. Achei interessante.
Não acho provável que elas inventem coisa pior do que nós, humanos,
inventamos, no último século. O mais provável é que a IA nos ajude em
coisas bem mais mundanas. Aumentar nossa produtividade, por exemplo.
Pesquisadores de Stanford e do MIT simularam o uso de uma ferramenta de
IA em mais de 5 000 serviços, mostrando que a inovação “aumenta a
produtividade em 14%, com maior impacto em trabalhadores pouco
qualificados”. Um caso algo cômico aconteceu ainda na outra semana,
quando o advogado Steven Schwartz resolveu usar o ChatGPT na defesa de
um cliente, em uma corte de Nova York. O texto mencionava uma série de
ótimos casos similares ao de seu cliente, apenas com um detalhe: eram
falsos. Quando o juiz pediu a cópia dos casos, a casa caiu. “Estou
envergonhado”, disse Schwartz, confessando que havia aprendido sobre o
chat com os filhos. O caso ganhou uma boa repercussão, e arrisco dizer
que sua lição crucial não é o papelão feito pelo sujeito, mas o fato
óbvio de que o chatbot, com um pouco mais de cuidado, teria feito um
ótimo trabalho. Teria diminuído significativamente o tempo de trabalho
do advogado e provavelmente melhorado sua defesa. E, cá entre nós, não
faz sentido nenhum culpar a IA pela mancada. A IA apenas oferece uma
nova ferramenta, mas não retira um centímetro da autoria, e logo da
responsabilidade, de ninguém. O caso também mostra quanto vale a
existência de um ecossistema capaz de proteger a verdade. No caso, os
advogados do outro lado, o juiz, os membros do júri, a mídia e o
público. Daí a conclusão óbvia: é melhor que a tecnologia opere em um
ambiente aberto, sujeita a múltiplos checkpoints, do que em um ambiente
controlado, capaz de proteger a irrealidade de sua própria contradição.
Como
toda nova tecnologia, a IA deu vazão a uma onda catastrofista. Yuval
Harari já havia previsto que a IA destruiria os empregos, criando uma
classe de “inúteis”, e agora embarca na tese do “risco existencial”. O
risco do “fim da história humana”, em um mundo no qual “a maior parte
das imagens, melodias e histórias será feita por uma inteligência
alienígena”. A IA não seria apenas mais um perigo, mas um perigo de novo
tipo. O avião era perigoso porque poderia ser usado como máquina de
guerra, e consta que nosso Santos Dumont se enforcou por isso, em um
hotel no Guarujá. A IA iria muito mais longe, criando um monstrinho
capaz de assumir o controle do avião e praticar um atentado como o das
Torres Gêmeas. Ou tomando o controle de um laboratório e fabricando um
vírus capaz de eliminar a humanidade. Para quem gosta de desgraça, é uma
imensa brinquedoteca. Steven Pinker gosta de chamar essas previsões de
“mito do vilão de James Bond”. Uma cadeia de “suposições duvidosas, até
que tudo termine em um mundo para além da experiência ou da
plausibilidade”.
É
evidente que a IA traz uma infinidade de novos riscos, que em geral
giram em torno da perda do controle. A possibilidade de saber se aquela
voz ou imagem é humana; se aquela prova foi realmente feita pelo
estudante; se aquela religião é “genuína”, ou fabricada com um clique,
por um escroque qualquer, fanatizando seguidores ao estilo Jim Jones. Ou
quem sabe no mundo da fantasia política. A mais comum é imaginar o
planeta como um imenso Brexit, com pessoas enganadas como crianças por
narrativas disseminadas pela Cambridge Analytica e tipos do mal. Muita
gente acrescenta aí a eleição de Trump, nosso vilão favorito, e sempre
me pergunto se o mesmo não valeria para a eleição seguinte, quando o
“lado certo” ganhou. A verdade é que há algo incômodo aí. A tecnologia
sempre se prestou ao melhor e ao pior, e a maior probabilidade é que
seja assim também dessa vez. O cinema foi usado pelo nazismo, com os
filmes de Leni Riefenstahl, e o rádio catalisou o ódio dos hútus contra
os tútsis, no genocídio de Ruanda. Não foi diferente com a internet, em
erupções sociais como a do Chile, com seus mais de trinta mortos, em
2019, ou em movimentos como a Primavera Árabe e outros, por direitos,
mundo afora.
Ninguém
foi mais longe na visão catastrofista do que o cientista Eliezer
Yudkowsky, dizendo que “o resultado mais provável de uma IA super-humana
é que todos na Terra morrerão”. Ele imagina uma inteligência fora de
controle enviando “sequências de DNA por e-mail para laboratórios,
fazendo que se produzam formas de vida artificiais”. Um imbatível
argumento do ônus da prova. É perfeitamente possível que uma coisa
dessas aconteça, tanto quanto era possível que uma hecatombe nuclear
acontecesse nos anos da Guerra Fria, algo que nos aterrorizou durante
gerações. A verdade é que não sabemos. Por ora, leio Paul McCartney
anunciando a recuperação da voz de John Lennon, via IA, e sistemas
capazes de detectar precocemente o câncer no pulmão, com alta precisão.
No mais, não passa de uma ilusão imaginar que seja possível travar o
avanço de uma tecnologia como a IA. Seu avanço é descentralizado e sem
ninguém em particular no comando, o que é ótimo. O que deveríamos estar
pensando, isto sim, é em como não ficar para trás, como aconteceu com as
duas outras revoluções que pautaram a minha geração, mas confesso não
ver ninguém muito preocupado com isso.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 21 de Junho de 2023, edição nº 2846
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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