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Foi uma personalidade originalíssima, cujo sucesso nos pode ajudar a entender, pelas melhores e pelas piores razões, o mundo em que vivemos. Foi o artífice da direita unida em Itália. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
A
Itália, nação antiga, mas Estado recente, é uma terra de grande
criatividade e originalidade política. Não falando da História de Roma,
da República ao Principado, nem do papel chave de Maquiavel como
pioneiro da “ciência de Estado” e pensando apenas na modernidade, no
século XX, é impressionante o contributo italiano, de um extremo ao
outro do leque ideológico, na inovação teórica e institucional.
É
um italiano, Benito Mussolini, que cria o fascismo, uma tentativa de
síntese entre as duas ideologias fortes do século XIX – o nacionalismo e
o socialismo; como é um italiano, Antonio Gramsci, que faz uma revisão
do marxismo-leninismo, em termos de hegemonia cultural, como estratégia
para a conquista do poder nas sociedades modernas; são também italianos
Benedetto Croce, um fino teorizador do historicismo e do liberalismo, e
Giovani Gentile, que aprofundou a construção do Estado fascista na linha
do idealismo hegeliano; e, mais recentemente, é ainda um italiano,
Antonio Negri, a teorizar uma contestação da globalização capitalista de
uma perspectiva marxista.
No
pós-guerra, depois do vinténio fascista, dominado pelo anti-fascismo, a
primazia do espírito criativo e crítico dos italianos manteve-se, não
só na política – onde permaneceu um leque do pensamento e alternativa –,
como noutras artes. Tal como os grandes mestres do Renascimento, de
Miguel Ângelo a Leonardo, tinham dominado a pintura e a escultura,
Visconti, Fellini, De Sica, Rossellini dominariam a sétima arte – o
cinema.
O artífice da direita unida
A
originalidade política italiana voltou a ser falada esta semana com a
morte de Silvio Berlusconi. Talvez a única característica que o aproxime
de Miguel Ângelo, Leonardo, Visconti, Fellini, De Sica ou Rosselini,
seja a de ter sido ambém, ao seu modo e ao seu estilo, um pioneiro. Foi,
pelo menos, uma personalidade originalíssima, cujo sucesso nos pode
ajudar a entender, pelas melhores e pelas piores razões, o mundo em que
vivemos.
Berlusconi
é um fenómeno da pós-modernidade: um self-made-man que fez fortuna no
imobiliário e comprou uma posição forte nos media, com a Mediaset e o
Canale 5, e no desporto-rei, com a Associazione Calcio Milan. Depois,
quase aos 60 anos, em 1994, iniciou uma carreira política que ocupou a
última etapa da sua vida.
Berlusconi,
il Cavaliere, como também era conhecido, marcou decisivamente a
história da Segunda República italiana, a que começou no interregno de
1992-1994, quando os escândalos do Tangentopoli destruíram a
credibilidade dos grandes partidos sistémicos italianos – da Democracia
Cristã ao Partido Comunista. Só essa terra queimada pode explicar o
sucesso das novas forças emergentes, que iriam compor, à direita, o trio
ou o terceto que hoje governa a Itália.
Na
“extrema-direita”, os neo-fascistas ou pós-fascistas do antigo MSI
(Movimento Sociale Italiano), excluídos da respeitabilidade democrática e
relegados para uma votação relativamente marginal, mas fiel, de cerca
de dois milhões de eleitores, não tinham sido atingidos pelo descrédito
que caíra sobre os partidos de um sistema a que não pertenciam. Giorgio
Almirante, que, a partir de 1972, fora por muitos anos o
Secretário-Geral do MSI-DN (Destra Nazionale) tivera como sucessor
Gianfranco Fini, que passaria o Destra Nazionale a Alleanza Nazionale e
procederia a uma renovação da linguagem e da estratégia do partido,
tornando-o mais integrável no novo ciclo político do país. Ao lado da
Alleanza Nazionale, apareceu um novo partido, a Legha Nord, uma força
política nascida da velha oposição Norte-Sul.
Desde
a unificação, feita pelo reino de Piemonte-Sardenha e pelos Sabóia, que
a dicotomia Norte-Sul, a chamada “questão meridional”, dominara,
dividira e acicatara os ânimos em Itália. A ideia era que o Norte,
sobretudo Milão e as cidades da Padânia, o Norte industrial,
empreendedor, activo, sustentava e alimentava um Sul ocioso,
contemplativo, que vivia dos subsídios fiscais distribuídos por Roma. A
Liga, inicialmente, era separatista, e o seu fundador, Umberto Bossi,
tinha um discurso identitário, que apelava à secessão. O partido andava
então pelos 8,5% em termos de percentagem eleitoral nacional.
Foi
neste quadro que, em 1994, Berlusconi fundou a Forza Italia, um partido
que aparece inicialmente como conservador em valores políticos –
nacionais e familiares – e liberal em economia. Nas eleições
parlamentares de 1994, a grande surpresa seria precisamente o resultado
da Forza Italia de Berlusconi, que ficaria em primeiro lugar com 21% dos
votos. A Alleanza Nazionale de Fini, com 13,5%, ficara em terceiro
lugar e a Legha tivera 8,5%. A soma dos três partidos dava 340
deputados, isto é, maioria absoluta num colégio parlamentar de 630. Na
oposição ficava a coligação progressista de Achille Occhetto, reunindo
comunistas, socialistas e a esquerda da antiga Democracia Cristã.
Foi
assim que, em 1994, Berlusconi entrou em força na política italiana.
Tinha-se dado, entretanto, uma reforma eleitoral importante que
introduzira um sistema misto – em que a maioria dos deputados (75%, o
equivalente a 475 lugares no Parlamento) passava a ser eleita pelo
sistema maioritário unipessoal, e os restantes 155 pelo sistema
proporcional. Era a chamada “Lei Mattarella”, aprovada por referendo em
Abril de 1993. Mas o mérito de juntar os nacionalistas da NA, os
separatistas da Legha e a Forza Italia numa coligação inédita foi do
líder do partido mais votado, Silvio Berlusconi, que chefiaria o governo
em 1994 e 1995, de 2001 a 2006 e, finalmente, de 2008 a 2011. A seguir a
Mussolini, Berlusconi seria o político a estar durante mais tempo à
frente do Executivo de Roma.
Pai do neo-populismo?
O
que é que explica o sucesso deste italiano de língua e costumes soltos
com uma fortuna colossal e um grande império mediático? Como se explica
que tenha sido ele o porta-voz, o protagonista, ou mesmo o inventor de
uma nova “política ao gosto popular”, num país, entretanto, altamente
sofisticado?
Talvez
o explique o facto de o novo líder ser pouco “ideológico”, de ter feito
uma carreira nos negócios e na comunicação, conseguindo identificar-se
com “o homem da rua” e com o “país real”, até pela forma franca e quase
ostentatória com que exibia excessos, defeitos e pecados, longe das
dissimulações e hipocrisias da “política” e dos “políticos”. Terá
Berlusconi inaugurado um novo tipo de liderança? Terá sido ele o
precursor dos populistas à Trump ou à Bolsonaro?
O
facto de estes líderes improváveis do “povo da Direita” não serem fruto
de uma conspiração contra a democracia, de não serem uma causa, mas,
antes, uma consequência, explica também o seu sucesso. Assumindo-se sem
rodeios, souberam opôr-se frontalmente ao que os eleitores achavam então
os males maiores: “políticos do sistema”, como Hillary Clinton,
encarnação do liberal chic, numa América onde as classes trabalhadoras e
as classes médias empobreciam com a globalização; ou como Lula da
Silva, num Brasil de hipocrisia, retórica de esquerda e corrupção; ou
como numa Itália que, sob uma oratória “anti-fascista” e respeitável, se
achava afogada na corrupção das negociatas eleitorais.
Os
eleitores de direita – patriotas e religiosos –, confrontados com o
globalismo e com o multiculturalismo desordenados, com os excessos
culturais e experimentais da Nova Esquerda e com a cedência resignada ou
rendida das elites tradicionais, mais respeitáveis ou mais
sofisticadas, aos novos delírios anti-Vida, anti-Nação, anti-Religião e
até anti-Liberdade das esquerdas, foram optando por líderes que achavam
mais eficazes na defesa das suas causas. Líderes a quem desculpavam tudo
ou quase tudo: a libertinagem, o exibicionismo, o aventureirismo
empresarial e até a agressividade brutal e por vezes boçal – tudo era
melhor que a palavrosa e danosa hipocrisia reinante.
Não
estando ainda em tempo de sínteses, mas de antíteses, estes políticos,
ditos populistas, encarnaram o uomo qualunque evocado no pós-guerra pelo
jornal e o movimento de Guglielmo Giannini. Berlusconi era o porta-voz
desse “homem da rua”, capaz de dizer sem rodeios o que tinha de ser dito
e de se opor ao que lhe era apresentado como respeitável, desejável,
culto, civilizado. E o que lhe era assim apresentado, a ele e aos
italianos, eram os dogmas com que a Esquerda – imbuída de uma
pseudo-superioridade intelectual e moral – conseguira intimidar as
velhas direitas, presas por preconceitos passadistas ou complexos de
inferioridade.
Recep
Erdogan, Boris Johnson, Victor Orban, entram, diferentemente, nesta
galeria. Mas Donald Trump e Jair Bolsonaro são os mais ostensivos,
também pela dimensão dos seus países e pelo caracter inesperado das suas
vitórias.
O
mais interessante da herança de Berlusconi – que, como Donald Trump,
conseguiu reunir o ódio das várias esquerdas e centros sistémicos – foi
ter aberto caminho para Giorgia Meloni, uma jovem militante dos
pós-fascistas do MSI-DN-AN, que foi ministra da Juventude do seu segundo
governo e que, numa dezena de anos, conseguiria fazer dos seus Fratelli
o primeiro partido da Itália.
Nos
antípodas do estilo e do perfil do velho sátiro Silvio Berlusconi,
Meloni, com o seu ar de menina e a sua energia polémica, equilibrando os
princípios com as exigências da praxis, aparece à frente do governo de
Itália, já não como um modelo de antítese, mas como um modelo de
síntese.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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