O colapso do compromisso entre progresso e tradição acentua-se para além das franjas marginais, gerando uma agenda progressista que, por oportunismo, granjeia apoio generalizado nos poderes que são. Nuno Lebreiro para o Observador:
Talvez
disso não nos apercebamos, mas os Ocidentais têm uma forma muito
própria de olhar para o tempo. O homem ocidental sempre se viu, de algum
modo, como “herdeiro”, imaginando-se, portanto, responsável por manter e
guardar aquilo que veio, e foi, antes de si. Aliás, neste aspecto, a
História tal como a conhecemos hoje será, acima de tudo, uma descoberta,
ou criação, ocidental — quer a relativa aos povos terrestres, quer a da
realidade material que, graças aos avanços da física e da cosmologia,
acabou por revelar uma narrativa, mais do que do planeta, já do próprio
universo. Emergiu, assim, o conceito de “tempo” ocidental que, ao invés
de estático como no mundo antigo — quase despercebido, sob a ilusão da
permanência, cíclico, lento, movido ao ritmo dos astros celestes que
traziam consigo a rotina das estações —, se revela hoje como uma
“dimensão” que comanda, ou enforma, não apenas a estrutura universal
mas, como Kant argumentou, a própria realidade fenomenológica da nossa
consciência.
A
par, seguindo Darwin, institucionalizou-se também um paradigma de
constante transformação, incluindo-se aí, através da teoria da evolução,
a noção de mutação permanente, já não apenas do mundo, mas também da
própria natureza humana. Ou seja, para a psique ocidental contemporânea
não apenas a vida é transitória como a nossa própria natureza também o
é, gerando-se aqui uma certa ansiedade existencial, em particular com o
tempo que nos foge permanentemente por entre os dedos rumo ao
desaparecimento e à morte que, naturalmente, face à fugacidade
existencial, urge transcender — primeiro, ainda espiritualmente, através
da milenar promessa do paraíso Cristão, depois, materialmente, ou seja,
ainda no mundo do aqui e agora, através das esperanças da revolução
tecnológica tão bem plasmadas, por exemplo, no ideal trans-humanista
onde a morte é finalmente fintada, seja materialmente, numa câmara
criogénica, seja digitalmente, através do chip neurológico implantado
que promete a vida eterna no metaverso cibernético.
Mais
do que simplesmente criar a disciplina histórica, o Ocidente gerou a
sua própria narrativa, ou, para utilizar o termo de MacIntyre, uma
“tradição narrativa” que, configurando caso único na história da
Humanidade, colocou o Homem no centro de um universo que se estende
conceptualmente do Big Bang até ao infinito. Esta narrativa, um épico
milenar do qual sentimos fazer parte, que parte de um passado fundador
por nós deduzido, e comummente acreditado, para um futuro que podemos
moldar, pelo menos em parte, à nossa vontade, oferece-nos um sentido
justificativo para a existência que passa assim a transcender os limites
estritos da vida material individual — a nossa identidade prolonga-se,
para trás, no passado que nos fez, e onde todos, em conjunto, em
comunidade, “nascemos”, tal como, também, para a frente, para um futuro
desconhecido, mas que todos construímos a cada dia, ou ainda, porque
essa experiência de passado e futuro é partilhada, prolonga-se também
nos outros, nos vizinhos que são, tanto quanto eu, parte integrante
desta nossa grande narrativa. Ou seja, primeiro, é desta concepção
temporal, mesmo que de forma despercebida, que se molda o modo como cada
um encara o mundo e, depois, é também desta narrativa-temporal que se
funda o tronco comum da nossa comunidade.
No
entanto, da narrativa histórico-científica ocidental e de um darwinismo
cosmológico que veio substituir de forma mitológica a criação bíblica,
acentuou-se no Ocidente uma tensão fundamental entre dois conceitos em
permanente conflito: de um lado, o amor — obsessivo, compulsivo,
exaustivo — ao passado, à história, ao conhecimento; do outro, a
aceitação — completa, inequívoca, constante — do carácter
transformativo, portanto transitório, do mundo e da própria natureza
humana. Fica claro, portanto, um paradoxo central à experiência
ocidental: por um lado, há um passado que nos explica, que nos fez, que
urge respeitar e conhecer; mas, pelo outro, tudo nesse passado, tal como
no presente e, a seu tempo, também no próprio futuro, estará, por
definição, condenado a ser transformado — um eufemismo para
“substituído” ou, para os mais pessimistas, “destruído” —, o que lhe
retira dignidade e, mais importante, garante à partida, mesmo que
inconscientemente, a inutilidade de todo e qualquer esforço na sua
preservação. Ainda assim, o Ocidente, tal qual o conhecemos hoje —
liberal, tolerante, próspero — fez-se precisamente de um compromisso,
porventura mais periclitante e passageiro do que imaginaríamos ainda há
poucos anos, entre estes dois valores: o de transformar o mundo, ou
seja, o progresso, e o de manter a narrativa consubstanciada na nossa
tradição.
Aqui,
diga-se, o Cristianismo desempenhou um papel importante ao incorporar,
já desde há muito, um equilíbrio funcional e duradouro entre esses dois
valores. Por um lado, e como Marcel Gauchet argumenta em 1985 no seu Le
Désenchantement du Monde, o mundo ao qual Cristo desceu, precisamente
porque foi digno de receber a encarnação de Deus, elevou-se a um
estatuto, ou uma dignidade, maiores do que a visão meramente material,
estéril, passageira, da qual gozava até aí, passando a merecer o labor e
o esforço do Homem, seu cuidador. Assim, o mundo material, para os
Cristãos, desde cedo deixou de ser algo simplesmente suportado para
passar a ser algo digno de investimento, algo que merecia ser melhorado,
ou seja, transformado. Do mesmo modo, também o respeito pelo passado,
incluindo o não-Cristão, era importante para a Igreja, desde o
conhecimento prático acumulado nas diferentes artes, até ao próprio
pensamento filosófico — veja-se o cuidado com que Alberto Magno e Tomás
de Aquino trataram Averroés, Avicenna e, mais fundamentalmente,
Aristóteles —, tal como as próprias bibliotecas, o ensino e o
conhecimento em geral foram durante séculos guardados por ordens
religiosas, de onde, aliás, já desde os primórdios medievais, nasceram
as universidades.
De
facto, seria apenas mais tarde, com a revolução cultural e científica
dos séculos XVI e XVII, que nasceria a semente do desequilíbrio entre
aqueles dois valores. É ali, como se atesta bem, por exemplo, no
paradigmático Novum Organum de Francis Bacon, que o passado passa a ser
desvalorizado como “infantil” e a modernidade como a idade em que o
Homem — tecnológico, científico, racional, moderno, novo — se liberta
dos dogmas do passado e se torna finalmente “adulto”. Ora, como se
atesta facilmente pelo mundo em que vivemos hoje, esta noção que
impregna o sentido histórico de um carácter necessariamente positivo —
do velho, portanto obsoleto, logo “mau”, para o novo, algo por definição
melhor, portanto “bom” — vingou, germinando durante séculos, até, a
cavalo da revolução tecnológica e cibernética, levar à quebra do
compromisso fundamental entre tradição e progresso a que assistimos
hoje.
De
facto, primeiro a pouco e pouco, depois de forma já mais acelerada, o
desequilíbrio entre tradição e progresso pende para este último —
naturalmente, a expensas da primeira. Hoje em dia, em velocidade já
supersónica, assim é por todo o lado: desde qualquer “tradição” — salvo o
folclore próprio de civilizações mais exóticas que são, por puro
paternalismo e presunção auto-congratulatória, olhadas com altiva
curiosidade — ser permanentemente desqualificada pelo simples facto de
ser datada; passando pelos mitos, ritos, rotinas e hábitos espirituais
que fizeram parte das nossas identidades durante milénios e que são hoje
crescentemente rejeitados como crendices sem qualquer valor, nem sequer
histórico; ou as normas sociais, códigos, sejam eles mais ou menos
formais, sobre como nos respeitarmos uns aos outros, obrigações e
deveres que, durante séculos, vimos como fundamentais, senão
fundacionais, da nossa sociedade e que agora são permanentemente
colocadas em causa e rejeitadas como ofensivas; chegando até à própria
educação dos filhos, às noções de família, de sociedade, das relações
laborais, das formas de governo ou de gestão política, da própria vida,
da morte, do que é crime e o que não é, ou seja, da moral; acabando,
claro está, na tecnologia, com os gadgets que se devem trocar a cada ano
e uma apregoada revolução na economia e na indústria do mundo inteiro
que tem, dizem-nos, que ser completamente transformada, não apenas para
melhorar, mas — já em pleno modo maníaco, histérico, mitómano — para
salvar o planeta inteiro. Em suma, em tudo se promete inovar, melhorar,
transformar, naturalmente a expensas de toda uma tradição milenar que,
não apenas nos construiu como, mais importante, configura o pilar
fundamental sobre o qual se erigiram as nossas identidades e concepções
do tempo — e que agora se descarta.
É
por essa razão que, junto com a rejeição da tradição, se esvai também o
nosso passado. Hoje, reescreve-se toda a narrativa que edificou a
civilização ocidental, agora transformada de berço fundador num embaraço
animalesco, bruto, onde matar para comer passa por um pecado histórico,
insidioso, imoral, contra o mundo. Vergonhosos também são, atente-se,
todos os feitos históricos dos nossos antepassados, ora reduzidos a um
emaranhado de dinastias de criminosos esclavagistas que não merecem
outra coisa além do opróbrio generalizado.
No
entanto, junto com o “passado”, porque a ele acoplado por definição,
desaparece também o conhecimento acumulado ao longo de gerações,
incluindo, paradoxalmente, o científico que permitiu sequer qualquer
progresso. Senão, veja-se: nas ciências sociais, trata-se hoje em dia,
acima de tudo, de ideologia progressista, estando as universidade grosso
modo reduzidas a um funcionalismo acéfalo, utilitário, acrítico,
incapaz de elevar os alunos àquele ponto fundamental de onde olhar o
passado e o futuro; já nas ciências exactas, troca-se o respeito pelo
método científico para incluir barbaridades idiotas que prometem
“inclusividade” e “igualdade” científica, incluindo, imagine-se o
ridículo, na matemática que alguns iluminados conseguem vislumbrar como
“opressora”. Ainda assim, o expoente máximo da loucura talvez ocorra na
biologia onde noções básicas como o sexo cromossomático são rejeitadas
por ofenderem os frágeis sentimentos de minorias afligidas por aquilo
que, até há muito pouco tempo, era visto como um raríssimo distúrbio
mental, aliás, agora acarinhado, propagandeado, normalizado e,
repare-se, “resolvido” por meio de intervenções cirúrgicas e hormonais
brutais, de consequências macabras e trágicas, que visam “transformar” a
realidade biológica dos indivíduos — uma mera ilusão, naturalmente.
Consequentemente,
não é apenas a tradição e o passado que são agora transformados. É já a
própria concepção temporal ocidental que desaparece, daí que o tempo,
nas franjas mais revolucionárias, em particular as mais jovens, se vá
progressivamente vivendo de um outro modo, mais limitado, menos
consciente portanto, cada vez mais cingido ao presente: desde a
necessidade de todos os problemas carecerem de solução imediata —
queremos “já”, “agora” —, até à própria vivência que, porque limitada ao
presente, ao imediato, se torna, por um lado, profundamente emocional,
sem capacidade de contextualização, histérica quando contrariada,
eufórica quando lhe é feita a vontade e, depois, pelo outro, porque o
amadurecimento pressupõe uma larga concepção do tempo e do espaço,
revelam-se os indivíduos crescentemente incapazes de ultrapassar a
infantilidade — onde o tempo se limita ao imediato, não há
amadurecimento, nem de ideias, nem dos espíritos.
O
colapso do compromisso civilizacional entre progresso e tradição
acentua-se hoje, infelizmente, muito para além das franjas marginais da
sociedade, gerando uma agenda essencialmente progressista que, por
oportunismo, granjeia apoio generalizado nos poderes que são — o
político, o mediático, o económico. Inconscientemente, esta inédita
voracidade auto-destruidora, suicidária, acaba colocando em causa muito
mais do que se poderia sequer imaginar — desde logo a própria concepção
do tempo que criou o nosso mundo liberal e próspero. É esse tempo que
agora se precipita para o seu final deixando uma sociedade estilhaçada,
sem identidade comum, atomizada, polarizada, uma multidão emotiva, sem
passado, portanto sem futuro, sem rumo, sem destino.
Frank
Zappa dizia, com razão, que sem desvio da norma não pode haver
progresso; infelizmente, por estes dias, pouca gente parece compreender o
outro lado da questão: que o progresso também não existe se não existir
algo do qual nos possamos ir desviando. O compromisso ocidental entre
progresso e tradição, fruto de séculos, permitiu-nos tirar as vantagens
de ambos; a falência desse equilíbrio ameaça agora em poucos anos fazer
com que fiquemos sem nenhum. Em nome do progresso, os fanáticos
progressistas ameaçam inconscientemente destruir o progresso — e, de
arrasto, levar o mundo que nos fez com ele.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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