POLIICA LIVRE
Homossexualidade, divórcio, aborto, igualdade de gênero, métodos contraceptivos. O papa Francisco abordou todo tipo de assunto polêmico na Igreja Católica em sua década à frente da instituição milenar, completada nesta segunda-feira (13).
Afeito a declarações espontâneas, que o obrigaram a se explicar muitas vezes, sua postura o ajudou a conquistar a simpatia do mundo secular, que passou a enxergar nele um símbolo de uma reforma vista como muito necessária no catolicismo.
Ao mesmo tempo, deu origem a uma ofensiva de setores conservadores dentro da Igreja, que consideram a abertura promovida pelo pontífice uma ameaça à própria essência da religião. “Eles me chamam de herege”, declarou Francisco cinco anos atrás.
É uma afirmação dramática —uma marca do primeiro papa latino-americano. Vaticanistas ouvidos pela Folha afirmam, no entanto, que as mudanças implementadas pelo argentino são bem menos radicais do que as manchetes dos últimos dez anos podem ter dado a entender.
“Ele não muda a doutrina, ele muda a abordagem”, resume Filipe Domingues, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e vice-diretor do Lay Centre, na mesma instituição. Ele acrescenta que a única alteração doutrinária instituída, de fato, pelo papa foi a inadmissibilidade da pena de morte, que a Igreja já criticava desde os tempos de João Paulo 2º.
O pesquisador dá como exemplo a questão do divórcio, uma das que mais enfureceu conservadores. No catolicismo, ele explica, o problema não é propriamente a separação de um casal, mas sim suas uniões subsequentes, que fazem com que marido e mulher sejam considerados adúlteros e, portanto, proibidos de comungar.
Antes de Francisco, a lei canônica já permitia que um casal pedisse a anulação de seu casamento. Mas o processo era custoso e complexo burocraticamente. O que Francisco fez foi simplificar esse trâmite, exigindo, por exemplo, que toda diocese possa iniciá-lo.
O mesmo se deu com o aborto. Na visão católica, o procedimento continua sendo um pecado grave e passível de excomunhão, uma vez que representa a morte de uma pessoa inocente. Mas se até Bento 16 só bispos ou sacerdotes especialmente designados para esse fim podiam conceder a sua absolvição, esse poder foi estendido a qualquer padre a partir de 2016.
Domingues afirma que a estratégia de Francisco parte de seu entendimento da Igreja como um espaço aberto a todos, que aproxima as pessoas de Cristo em vez de afastá-las. Daí seu acolhimento a figuras que, em outros tempos, foram renegadas ou menosprezadas pela Igreja, como membros da comunidade LGBTQIA+ —ainda que, como nos demais casos, o papa não contradiga a doutrina, ou seja, defenda que a homossexualidade é pecado.
Pedro Paulo Weinzemann, cientista político formado por Harvard e colaborador da equipe do Sínodo no Vaticano, cita uma encíclica —isto é, uma mensagem dirigida pelo líder da Igreja a todos os seus membros e principal documento papal— que simboliza bem o posicionamento do argentino. No texto, chamado de “Fratelli Tutti”, “todos irmãos” em italiano, Francisco argumenta que, muitas vezes, os que melhor incorporam os ensinamentos da Igreja são os não religiosos.
“O que fazer, então? Excluir todos os que pecam da vida da Igreja?”, questiona o cientista político, acrescentando que muitos dos que se opõem a essa postura do pontífice se esquecem de que também é pecado ser omisso diante da pobreza, do racismo ou mesmo da destruição do meio ambiente.
Editor do Crux, plataforma independente que cobre o Vaticano e a Igreja Católica, o americano John L. Allen Jr. observa que parte do motivo pelo qual os posicionamentos de Francisco soam tão progressistas é o fato de que ele é o primeiro papa liberal em termos eclesiásticos em mais de três décadas —seus dois antecessores, Bento 16 e João Paulo 2º, eram conservadores.
Allen admite, porém, que a própria abertura a debates antes considerados proibidos é uma novidade, já que sob pontífices anteriores temas polêmicos mal eram citados. “Em algumas áreas, Francisco promoveu mudanças. Em outras, ele criou espaço para discussões sobre elas”, resume o vaticanista.
O sínodo hoje em andamento talvez seja o exemplo mais radical dessa busca do papa por abrir a Igreja ao resto do mundo. Instituído no Concílio Vaticano 2º, nos anos 1960, o evento funciona como uma espécie de consulta do pontífice ao clero sobre um assunto determinado. As discussões internas servem como base para que a papa redija uma exortação apostólica, documento que dá diretrizes sobre aquele tópico para o resto da instituição.
A princípio, só bispos participam de sínodos. Domingues, o professor, conta que Francisco manteve a tradição, mas começou a ampliar o evento em direção à sociedade civil, instalando etapas prévias de consulta em comunidades locais.
Foi o caso do sínodo dos jovens, finalizado em 2018, e do atual, chamado de sínodo da sinodalidade (maneira de ser e de agir da Igreja), que teve início em paróquias, dioceses, escolas católicas. Mais importante, é possível que a convenção marcada para o ano que vem inclua pela primeira vez integrantes da sociedade civil.
Os impactos desta e das outras mudanças instituídas por Francisco são limitados, a ponto de ele ser criticado por alas mais à esquerda da Igreja, que defendem reformas mais radicais.
Mesmo assim, a resistência a elas tem sido cada vez mais vocal. Há opositores de todas as correntes, dos que são contra a flexibilização de doutrinas aos que veem as críticas do argentino ao capitalismo como perigosamente marxistas —sua descrição da sociedade de consumo como “uma economia que mata” em sua primeira exortação apostólica incomodou, em especial, os conservadores dos EUA. Weinzenmann conta que alguns analistas já descrevem o panorama como “um cisma na prática”.
Vaticanistas argumentam que uma reforma de fato provavelmente ficaria a cargo do sucessor de Francisco, hoje com 86 anos. Para muitos, o perfil e a quantidade de cardeais nomeados por ele nos últimos dez anos poderiam indicar a continuidade de suas ações numa direção ainda mais liberal. O grupo, menos europeu e mais internacionalizado, já representa 65% dos participantes de um eventual conclave.
Allen lembra, porém, que, em 2013, os 115 membros do clero que elegeram o então cardeal Jorge Bergoglio tinham sido nomeados por dois conservadores. “Tudo depende do humor dos cardeais no momento em que o conclave acontece”, diz ele.
Questionado sobre o maior legado do papa Francisco até agora, Allen responde que é justamente sua busca por expandir a Igreja, o que se, de um lado, pode ter ajudado a renovar a instituição, de outro aprofundou suas divisões internas.
Nesse sentido, argumenta o americano, Francisco remete a Mikhail Gorbatchov, líder soviético morto no ano passado e um dos grandes responsáveis por derrubar a Cortina de Ferro que dividia a Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
“Gorbatchov foi imensamente popular no exterior, mas muito controverso na Rússia. Com Francisco é a mesma coisa: ele é muito popular fora da Igreja, mas é uma figura muito mais controversa dentro do catolicismo.”
Clara Balbi / Folha de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário