MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 31 de dezembro de 2023

O feminismo radical é um machismo reverso?

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI


A suposição de que todo homem é um agressor em potencial predispõe a mulher a encarar a sedução sexual como uma ameaça de violação. Tania Coelho dos Santos para a Crusoé:


A manifestação do sentimento de injustiça, da experiência subjetiva de vítima de insulto ou de abuso de poder, tornou-se constante na cena social contemporânea. As acusações de reais ou supostas agressões se multiplicaram e os principais motivos alegados são atitudes machistas, racistas ou LGBTQIA+fóbicas.

Esse imaginário belicoso inflacionado é consequência da divergência de opinião em matéria de costumes, um terreno cada mais sensível nas relações pessoais e no debate público. A melhor explicação para esse cenário está na deriva histórica do movimento feminista, que emplacou sua mais recente versão: o feminismo de corpo.

Segundo a definição do Estado moderno, “todo homem nasce livre e igual”. Inspirado no Direito natural, alimentou a crença na universalidade dos direitos e deveres, produzindo o ideal de cidadania. O movimento feminista, nos últimos tempos, subverteu este princípio e contribuiu para engendrar culturas identitárias. A desigualdade entre homens e mulheres tornou-se um fato de estrutura identitária e não uma contingência histórica.

Nessa cultura, em lugar do ideal de cidadania universal ergueu-se a concepção de que a relação entre os sexos deve ser pautada como um contrato social. Nele, os direitos e os deveres de homens e mulheres seriam codificados diferencialmente em dispositivos regulamentares estritos. Trata-se de garantir que haja consentimento explícito nas interações entre os sexos e de assegurar, frente ao “forte”, a proteção contratual do “fraco”. Paradoxalmente, a militância neofeminista radical tende a levar essas interações ao confronto, a um face a face corporal, que apela à lei do mais forte.

Inspirado no separatismo lesbiano, o neofeminismo isola cada mulher em seu corpo, de acordo com o lema “meu corpo, minhas regras”. A suposição de que todo homem é um agressor em potencial predispõe a mulher a encarar a sedução sexual como uma ameaça de violação. A ativista americana Catharine MacKinnon, nos anos 1980, já declarava que havia uma mínima diferença entre a relação sexual normal e o estupro, “menos que a espessura de uma folha de papel de cigarro”.

Mas esse estado psicopatológico de coisas foi antecedido por lutas legítimas, ainda que elas tenham incorporado elementos controversos com o tempo.

O movimento social feminista nasceu em meados do século 19 para reivindicar a justa igualdade de direitos civis, jurídicos e políticos entre homens e mulheres. Ao longo da história não faltaram manifestações individuais ou coletivas através, por exemplo, da literatura, da arte e do misticismo, em prol da liberdade e da emancipação das mulheres.

O movimento feminista propriamente dito propaga-se em ondas ou vagas, em torno de pautas específicas que se recobrem ou se sucedem no tempo.

A primeira onda, além de reivindicar a igualdade de direitos civis jurídicos e políticos entre homens e mulheres (sufragistas ou sufragettes), lutava pela educação das mulheres e pela revogação legislativa do contrato conjugal que atribuía ao marido direitos sobre o corpo e os bens da mulher.

Uma segunda pauta de reivindicações emergiu ainda durante a primeira onda: o feminismo marxista. De acordo com Simone De Beauvoir, em seu livro O segundo sexo, a Revolução Industrial teria sido um marco essencial rumo à emancipação feminina: “Essa é a grande revolução que, no século 19, transforma o destino da mulher e abre, para ela, uma nova era”. Nesse período, muitas mulheres operárias acabaram abraçando a ideologia anarquista e socialista, e agrupando-se em sindicatos que reivindicavam melhores condições de trabalho.

A segunda onda propriamente dita surge nas décadas de 1960-1970, recolhendo retroativamente os efeitos da primeira. A entrada da mulher no mercado de trabalho, bem como o desprestígio da autoridade paterna e dos ideais que a sustentavam, além da pílula anticoncepcional, engendraram transformações nos laços de aliança e de sexualidade. Os movimentos contraculturais de maio de 1968 na França mudaram os costumes: a juventude afrontou seus pais, as hierarquias e os cânones morais.

As relações professor-aluno, pai-filho, homem-mulher, foram submetidas ao crivo do antiautoritarismo. No embalo do slogan “é proibido proibir”, fomentou-se a permissividade, o hedonismo e a liberação da sexualidade. A juventude afrontou as relações assimétricas com o intuito de combater qualquer forma de autoridade e de nivelar as estruturas simbólicas da hierarquia geracional e da diferença sexual.

Generalizou-se a crença na tese de Engels, em seu livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de que o surgimento da propriedade privada é a base da inferiorização da mulher, pois o casamento é uma instituição que visa garantir a transmissão do patrimônio. O primeiro antagonismo de classe, anterior até ao antagonismo entre proletários e proprietários dos meios de produção no capitalismo, é proveniente da dominação do homem sobre a mulher no seio da família constituída pelo casamento monogâmico.

A aliança entre o feminismo e o socialismo foi se tecendo de maneira mais estreita a partir da segunda vaga e ainda vigora como uma relação que alicerça diversas ideologias nos coletivos feministas da atualidade. A aplicação da lógica que distingue classe dominante e classe dominada às relações entre homens e mulheres gerou a certeza de que as mulheres são uma força de trabalho oprimida e explorada pelos homens. Evidentemente, trata-se de uma distorção conceitual da segregação de papéis sexuais que obriga o homem a prover a família e a mulher a cuidar do lar dos filhos.

Para combater essa suposta “forma arcaica de opressão”, a militância feminista acreditou que era preciso “desconstruir” qualquer entidade ontológica feminina ou masculina. A célebre frase de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher” foi alçada à dimensão de paradigma da desconstrução da relação entre sexo anatômico e gênero masculino ou feminino. As identidades sexuais começaram a ser percebidas como meras construções socioculturais e as identidades de gênero foram desvinculadas radicalmente da diferença anatômica entre os sexos.

O discurso político vem lentamente desapegando-se da realidade de fato, em benefício do “real” utópico de um mundo idealizado. O slogan “o pessoal é político” significa fazer da sua demanda pessoal uma política e fomentar que qualquer vivência pessoal seja suscetível de se tornar um tema social adequado para reflexão, discussão e manifestação pública.

Esse período também se caracterizou pela emergência de um feminismo cuja bandeira ideológica consistia na ruptura com o poder patriarcal/opressor. O combate à diferença de papéis sociais entre os gêneros disseminou a ideia de que as mulheres, também na esfera pública, eram submetidas ao poder do homem. Esse discurso desmentia o poder de fato que as mulheres ainda exerciam no reino privado sobre o marido e os filhos, sob o título de “rainhas do lar”.

A diferença de papéis sexuais passou a ser percebida como injusta e opressiva para com as mulheres. Embora cada vez mais as mulheres pudessem ocupar na esfera pública as mesmas funções que os homens, o modo de produção capitalista é percebido como um mero prolongamento do poder do homem opressor, detentor de privilégios sociais, econômicos e políticos. A mulher é considerada oprimida, desprivilegiada, vítima de exclusão e minoritária em representatividade, em diferentes instâncias e dimensões do laço social.

A terceira vaga iniciou-se na década de 1990 e estende-se até os dias atuais. Neste período, a filósofa pós-estruturalista americana Judith Butler quis demonstrar que o discurso universal sobre as mulheres é sempre excludente, embora a segregação incida sobre elas de modo distinto, dependendo de outros fatores como classe social, raça, orientação sexual entre outros marcadores. O feminismo se torna interseccional.

Essa vertente de estudos universitários americanos, conduzida pela ideologia de gênero, realizou uma série de rupturas epistemológicas com os paradigmas teóricos universalistas tradicionais. Rompeu, inclusive, com a lógica do feminismo que, embora questionasse a relação entre feminilidade e inclinação à submissão, ainda associava estreitamente sexo anatômico e gênero psíquico.

Uma das teses hegemônicas da ideologia de gênero é a de que qualquer identidade sexual não passa de uma construção sociocultural, portanto sem relação com a anatomia ou com suas “consequências psíquicas” nos seres falantes. A própria ideia de sexo anatômico é uma construção cultural, assim como a de gênero, segundo Butler. O corpo natural não encarna nenhuma dimensão “real”. Pode ser socializado, domesticado por quaisquer discursos e estratégias de poder engendradas para melhor controlá-los.

Entramos na era das “fake news”, pois a ideia de performatividade do poder implica em que não haja mais nada que possa ser considerado “real” em oposição à eficácia política da ficção, das narrativas, das teorias, das ideologias ou dos discursos. Quando o saber se descola de toda e qualquer referência científica e reduz todo “fato” à mera representação, tudo é possível, não existe mais nada que limite a produção de “verdades mentirosas”, isto é, ficções alimentadas pela fantasia de cada um.

As teorias Queer, pós-estruturalistas, avançam na desconstrução do gênero e militam pela derrocada da heterossexualidade, da homossexualidade e de toda e qualquer forma de binarismo homem/mulher. A profunda desconsideração relativamente ao real da ciência como impossível de reduzir à realidade empírica, conduz essa filosofia a fazer mal uso da teoria foucaultiana do poder.

Ignorando que em consequência da linguagem não há lugar social algum fora do poder, radicaliza-se a crença no determinismo sociológico das formas de opressão. É um pensamento insensato, pois a sociedade mais igualitária do mundo não alcançaria essa suposta eliminação das relações de poder. Ao ignorar a dimensão transindividual do inconsciente, equívocos filosóficos conduzem as teorias desconstrucionistas de gênero a produzir uma nova normatividade muito mais tirânica do que aquela que pretende erradicar.

A perspectiva da desconstrução de gênero visa uma drástica ruptura com as categorias de feminino e masculino, homem e mulher. Denuncia a inexistência de relações naturais, porém ignoram que foi a psicanálise lacaniana que introduziu no pensamento científico a tese da inexistência da relação sexual. Graças à nossa prática psicanalítica, sabemos que não existe relação unívoca entre o corpo e a identificação sexuada, entre significante e significado. E por isso mesmo existe o sintoma, um sentido singular no real sem sentido da língua. Prova de que o corpo não é apenas uma mera ficção.

Contudo, diferentemente da perspectiva psicanalítica que toma esse dado como fato de estrutura, ancorado em um real impossível de dissolver, os teóricos de gênero interpretam esse dado como uma ideologia, fomentando a crença de que se trata de um gozo espoliado pelo “poder” e que pode ser restituído ou, ainda, que se trata de um direito ao gozo que pode ser instituído por força da lei jurídica ou da linguagem politicamente correta.

Essa promessa de uma “justiça absoluta”, que promoveria a plena adequação entre “o que se busca no campo do desejo e o que se encontra como satisfação possível”, acirra um sentimento difuso de constante injustiça e revolta. Surgiu assim essa posição subjetiva contemporânea, absolutamente paranoica. Todos parecem se sentir vitimizados por um grande “outro mau” responsável pelo gozo “a menos” que nos foi subtraído.

As reivindicações de indenização e reparação multiplicam-se nos dias de hoje levando a sociedade a uma perpétua judicialização das relações sociais. A guerra dos sexos passa para o espaço público e a guerra política se desloca para a esfera da intimidade.

As pautas feministas da segunda onda tinham como objetivo desnaturalizar e politizar a diferença de papeis sexuais, interpretando-os, segundo a doutrina marxista, como estratégia de subordinação da mulher. Desvelavam situações de subjugação e degradação que subjaziam disfarçadas sob o manto da normalidade dos costumes e valores próprios das instituições e sociedade tradicionalmente patriarcais. Os discursos radicais que brotam no seio das lutas feministas nos dias de hoje consideram que a diferença sexual é sexista “por natureza”, o que já seria uma contradição, na medida em que buscam desnaturalizar e desessencializar qualquer concepção da diferença sexual.

É notável como as leis e os dispositivos jurídicos contemporâneos condenam a priori o homem como violento, ignorando a particularidade de cada um e acarretando consequências condenatórias indistintas, fazendo da mulher uma vítima natural de um crime provocado por ele. Não há dúvida de que existem evidências de infinitas formas de violência contra as mulheres. É indiscutível que as mulheres foram vítimas do discurso masculino hegemônico em seu benefício e que é preciso construir dispositivos e leis que reajam às formas subliminares de violência.

Entretanto, é fundamental dissociar a posição da mulher como “objeto causa do desejo do homem” e a posição de vítima. Essa é a condição para a assunção de uma responsabilidade subjetiva universal pelo desejo, pelo amor e pela vida de cada um de nós, homens ou mulheres. A radicalização do feminismo, inspirado na profunda hostilidade contra os homens, pode ter gerado uma espécie de machismo reverso que nada mais faz do que prometer vingança contra o homem branco, patriarcal, heteronormativo, eurocêntrico e opressor.

Tania Coelho dos Santos é psicanalista, membro da Associação Mundial de Psicanálise, da École de la Cause Freudienne e da Escola Brasileira de Psicanálise. É autora dos livros Quem precisa de análise hoje? (Bertrand Brasil, 2001), Sinthoma: Corpo e laço social (Sephora, 2006); coautora de Psicanálise, ciência e discurso (Cia de Freud, 2013); e organizadora das coletâneas de artigos Inovações no ensino e na pesquisa em psicanálise aplicada (7Letras, 2007), De que real se trata na clínica psicanalítica (Cia de Freud, 2012), Os corpos falantes e a normatividade do supersocial (Cia de Freud, 2014), Psicanálise no século XXI: ideologias políticas, subjetividade, laços sociais e intervenções psicanalíticas (CRV, 2017) Reconfigurações do Imaginário no século XXI (CRV, 2019) e Todo mundo é igual? Clínica lacaniana da psicose ordinária e o autismo (CRV, 2023).
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