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A suposição de que todo homem é um agressor em potencial predispõe a mulher a encarar a sedução sexual como uma ameaça de violação. Tania Coelho dos Santos para a Crusoé:
A
manifestação do sentimento de injustiça, da experiência subjetiva de
vítima de insulto ou de abuso de poder, tornou-se constante na cena
social contemporânea. As acusações de reais ou supostas agressões se
multiplicaram e os principais motivos alegados são atitudes machistas,
racistas ou LGBTQIA+fóbicas.
Esse
imaginário belicoso inflacionado é consequência da divergência de
opinião em matéria de costumes, um terreno cada mais sensível nas
relações pessoais e no debate público. A melhor explicação para esse
cenário está na deriva histórica do movimento feminista, que emplacou
sua mais recente versão: o feminismo de corpo.
Segundo
a definição do Estado moderno, “todo homem nasce livre e igual”.
Inspirado no Direito natural, alimentou a crença na universalidade dos
direitos e deveres, produzindo o ideal de cidadania. O movimento
feminista, nos últimos tempos, subverteu este princípio e contribuiu
para engendrar culturas identitárias. A desigualdade entre homens e
mulheres tornou-se um fato de estrutura identitária e não uma
contingência histórica.
Nessa
cultura, em lugar do ideal de cidadania universal ergueu-se a concepção
de que a relação entre os sexos deve ser pautada como um contrato
social. Nele, os direitos e os deveres de homens e mulheres seriam
codificados diferencialmente em dispositivos regulamentares estritos.
Trata-se de garantir que haja consentimento explícito nas interações
entre os sexos e de assegurar, frente ao “forte”, a proteção contratual
do “fraco”. Paradoxalmente, a militância neofeminista radical tende a
levar essas interações ao confronto, a um face a face corporal, que
apela à lei do mais forte.
Inspirado
no separatismo lesbiano, o neofeminismo isola cada mulher em seu corpo,
de acordo com o lema “meu corpo, minhas regras”. A suposição de que
todo homem é um agressor em potencial predispõe a mulher a encarar a
sedução sexual como uma ameaça de violação. A ativista americana
Catharine MacKinnon, nos anos 1980, já declarava que havia uma mínima
diferença entre a relação sexual normal e o estupro, “menos que a
espessura de uma folha de papel de cigarro”.
Mas
esse estado psicopatológico de coisas foi antecedido por lutas
legítimas, ainda que elas tenham incorporado elementos controversos com o
tempo.
O
movimento social feminista nasceu em meados do século 19 para
reivindicar a justa igualdade de direitos civis, jurídicos e políticos
entre homens e mulheres. Ao longo da história não faltaram manifestações
individuais ou coletivas através, por exemplo, da literatura, da arte e
do misticismo, em prol da liberdade e da emancipação das mulheres.
O
movimento feminista propriamente dito propaga-se em ondas ou vagas, em
torno de pautas específicas que se recobrem ou se sucedem no tempo.
A
primeira onda, além de reivindicar a igualdade de direitos civis
jurídicos e políticos entre homens e mulheres (sufragistas ou
sufragettes), lutava pela educação das mulheres e pela revogação
legislativa do contrato conjugal que atribuía ao marido direitos sobre o
corpo e os bens da mulher.
Uma
segunda pauta de reivindicações emergiu ainda durante a primeira onda: o
feminismo marxista. De acordo com Simone De Beauvoir, em seu livro O
segundo sexo, a Revolução Industrial teria sido um marco essencial rumo à
emancipação feminina: “Essa é a grande revolução que, no século 19,
transforma o destino da mulher e abre, para ela, uma nova era”. Nesse
período, muitas mulheres operárias acabaram abraçando a ideologia
anarquista e socialista, e agrupando-se em sindicatos que reivindicavam
melhores condições de trabalho.
A
segunda onda propriamente dita surge nas décadas de 1960-1970,
recolhendo retroativamente os efeitos da primeira. A entrada da mulher
no mercado de trabalho, bem como o desprestígio da autoridade paterna e
dos ideais que a sustentavam, além da pílula anticoncepcional,
engendraram transformações nos laços de aliança e de sexualidade. Os
movimentos contraculturais de maio de 1968 na França mudaram os
costumes: a juventude afrontou seus pais, as hierarquias e os cânones
morais.
As
relações professor-aluno, pai-filho, homem-mulher, foram submetidas ao
crivo do antiautoritarismo. No embalo do slogan “é proibido proibir”,
fomentou-se a permissividade, o hedonismo e a liberação da sexualidade. A
juventude afrontou as relações assimétricas com o intuito de combater
qualquer forma de autoridade e de nivelar as estruturas simbólicas da
hierarquia geracional e da diferença sexual.
Generalizou-se
a crença na tese de Engels, em seu livro A origem da família, da
propriedade privada e do Estado, de que o surgimento da propriedade
privada é a base da inferiorização da mulher, pois o casamento é uma
instituição que visa garantir a transmissão do patrimônio. O primeiro
antagonismo de classe, anterior até ao antagonismo entre proletários e
proprietários dos meios de produção no capitalismo, é proveniente da
dominação do homem sobre a mulher no seio da família constituída pelo
casamento monogâmico.
A
aliança entre o feminismo e o socialismo foi se tecendo de maneira mais
estreita a partir da segunda vaga e ainda vigora como uma relação que
alicerça diversas ideologias nos coletivos feministas da atualidade. A
aplicação da lógica que distingue classe dominante e classe dominada às
relações entre homens e mulheres gerou a certeza de que as mulheres são
uma força de trabalho oprimida e explorada pelos homens. Evidentemente,
trata-se de uma distorção conceitual da segregação de papéis sexuais que
obriga o homem a prover a família e a mulher a cuidar do lar dos
filhos.
Para
combater essa suposta “forma arcaica de opressão”, a militância
feminista acreditou que era preciso “desconstruir” qualquer entidade
ontológica feminina ou masculina. A célebre frase de Simone de Beauvoir
“não se nasce mulher, torna-se mulher” foi alçada à dimensão de
paradigma da desconstrução da relação entre sexo anatômico e gênero
masculino ou feminino. As identidades sexuais começaram a ser percebidas
como meras construções socioculturais e as identidades de gênero foram
desvinculadas radicalmente da diferença anatômica entre os sexos.
O
discurso político vem lentamente desapegando-se da realidade de fato,
em benefício do “real” utópico de um mundo idealizado. O slogan “o
pessoal é político” significa fazer da sua demanda pessoal uma política e
fomentar que qualquer vivência pessoal seja suscetível de se tornar um
tema social adequado para reflexão, discussão e manifestação pública.
Esse
período também se caracterizou pela emergência de um feminismo cuja
bandeira ideológica consistia na ruptura com o poder
patriarcal/opressor. O combate à diferença de papéis sociais entre os
gêneros disseminou a ideia de que as mulheres, também na esfera pública,
eram submetidas ao poder do homem. Esse discurso desmentia o poder de
fato que as mulheres ainda exerciam no reino privado sobre o marido e os
filhos, sob o título de “rainhas do lar”.
A
diferença de papéis sexuais passou a ser percebida como injusta e
opressiva para com as mulheres. Embora cada vez mais as mulheres
pudessem ocupar na esfera pública as mesmas funções que os homens, o
modo de produção capitalista é percebido como um mero prolongamento do
poder do homem opressor, detentor de privilégios sociais, econômicos e
políticos. A mulher é considerada oprimida, desprivilegiada, vítima de
exclusão e minoritária em representatividade, em diferentes instâncias e
dimensões do laço social.
A
terceira vaga iniciou-se na década de 1990 e estende-se até os dias
atuais. Neste período, a filósofa pós-estruturalista americana Judith
Butler quis demonstrar que o discurso universal sobre as mulheres é
sempre excludente, embora a segregação incida sobre elas de modo
distinto, dependendo de outros fatores como classe social, raça,
orientação sexual entre outros marcadores. O feminismo se torna
interseccional.
Essa
vertente de estudos universitários americanos, conduzida pela ideologia
de gênero, realizou uma série de rupturas epistemológicas com os
paradigmas teóricos universalistas tradicionais. Rompeu, inclusive, com a
lógica do feminismo que, embora questionasse a relação entre
feminilidade e inclinação à submissão, ainda associava estreitamente
sexo anatômico e gênero psíquico.
Uma
das teses hegemônicas da ideologia de gênero é a de que qualquer
identidade sexual não passa de uma construção sociocultural, portanto
sem relação com a anatomia ou com suas “consequências psíquicas” nos
seres falantes. A própria ideia de sexo anatômico é uma construção
cultural, assim como a de gênero, segundo Butler. O corpo natural não
encarna nenhuma dimensão “real”. Pode ser socializado, domesticado por
quaisquer discursos e estratégias de poder engendradas para melhor
controlá-los.
Entramos
na era das “fake news”, pois a ideia de performatividade do poder
implica em que não haja mais nada que possa ser considerado “real” em
oposição à eficácia política da ficção, das narrativas, das teorias, das
ideologias ou dos discursos. Quando o saber se descola de toda e
qualquer referência científica e reduz todo “fato” à mera representação,
tudo é possível, não existe mais nada que limite a produção de
“verdades mentirosas”, isto é, ficções alimentadas pela fantasia de cada
um.
As
teorias Queer, pós-estruturalistas, avançam na desconstrução do gênero e
militam pela derrocada da heterossexualidade, da homossexualidade e de
toda e qualquer forma de binarismo homem/mulher. A profunda
desconsideração relativamente ao real da ciência como impossível de
reduzir à realidade empírica, conduz essa filosofia a fazer mal uso da
teoria foucaultiana do poder.
Ignorando
que em consequência da linguagem não há lugar social algum fora do
poder, radicaliza-se a crença no determinismo sociológico das formas de
opressão. É um pensamento insensato, pois a sociedade mais igualitária
do mundo não alcançaria essa suposta eliminação das relações de poder.
Ao ignorar a dimensão transindividual do inconsciente, equívocos
filosóficos conduzem as teorias desconstrucionistas de gênero a produzir
uma nova normatividade muito mais tirânica do que aquela que pretende
erradicar.
A
perspectiva da desconstrução de gênero visa uma drástica ruptura com as
categorias de feminino e masculino, homem e mulher. Denuncia a
inexistência de relações naturais, porém ignoram que foi a psicanálise
lacaniana que introduziu no pensamento científico a tese da inexistência
da relação sexual. Graças à nossa prática psicanalítica, sabemos que
não existe relação unívoca entre o corpo e a identificação sexuada,
entre significante e significado. E por isso mesmo existe o sintoma, um
sentido singular no real sem sentido da língua. Prova de que o corpo não
é apenas uma mera ficção.
Contudo,
diferentemente da perspectiva psicanalítica que toma esse dado como
fato de estrutura, ancorado em um real impossível de dissolver, os
teóricos de gênero interpretam esse dado como uma ideologia, fomentando a
crença de que se trata de um gozo espoliado pelo “poder” e que pode ser
restituído ou, ainda, que se trata de um direito ao gozo que pode ser
instituído por força da lei jurídica ou da linguagem politicamente
correta.
Essa
promessa de uma “justiça absoluta”, que promoveria a plena adequação
entre “o que se busca no campo do desejo e o que se encontra como
satisfação possível”, acirra um sentimento difuso de constante injustiça
e revolta. Surgiu assim essa posição subjetiva contemporânea,
absolutamente paranoica. Todos parecem se sentir vitimizados por um
grande “outro mau” responsável pelo gozo “a menos” que nos foi
subtraído.
As
reivindicações de indenização e reparação multiplicam-se nos dias de
hoje levando a sociedade a uma perpétua judicialização das relações
sociais. A guerra dos sexos passa para o espaço público e a guerra
política se desloca para a esfera da intimidade.
As
pautas feministas da segunda onda tinham como objetivo desnaturalizar e
politizar a diferença de papeis sexuais, interpretando-os, segundo a
doutrina marxista, como estratégia de subordinação da mulher. Desvelavam
situações de subjugação e degradação que subjaziam disfarçadas sob o
manto da normalidade dos costumes e valores próprios das instituições e
sociedade tradicionalmente patriarcais. Os discursos radicais que brotam
no seio das lutas feministas nos dias de hoje consideram que a
diferença sexual é sexista “por natureza”, o que já seria uma
contradição, na medida em que buscam desnaturalizar e desessencializar
qualquer concepção da diferença sexual.
É
notável como as leis e os dispositivos jurídicos contemporâneos
condenam a priori o homem como violento, ignorando a particularidade de
cada um e acarretando consequências condenatórias indistintas, fazendo
da mulher uma vítima natural de um crime provocado por ele. Não há
dúvida de que existem evidências de infinitas formas de violência contra
as mulheres. É indiscutível que as mulheres foram vítimas do discurso
masculino hegemônico em seu benefício e que é preciso construir
dispositivos e leis que reajam às formas subliminares de violência.
Entretanto,
é fundamental dissociar a posição da mulher como “objeto causa do
desejo do homem” e a posição de vítima. Essa é a condição para a
assunção de uma responsabilidade subjetiva universal pelo desejo, pelo
amor e pela vida de cada um de nós, homens ou mulheres. A radicalização
do feminismo, inspirado na profunda hostilidade contra os homens, pode
ter gerado uma espécie de machismo reverso que nada mais faz do que
prometer vingança contra o homem branco, patriarcal, heteronormativo,
eurocêntrico e opressor.
Tania
Coelho dos Santos é psicanalista, membro da Associação Mundial de
Psicanálise, da École de la Cause Freudienne e da Escola Brasileira de
Psicanálise. É autora dos livros Quem precisa de análise hoje? (Bertrand
Brasil, 2001), Sinthoma: Corpo e laço social (Sephora, 2006); coautora
de Psicanálise, ciência e discurso (Cia de Freud, 2013); e organizadora
das coletâneas de artigos Inovações no ensino e na pesquisa em
psicanálise aplicada (7Letras, 2007), De que real se trata na clínica
psicanalítica (Cia de Freud, 2012), Os corpos falantes e a normatividade
do supersocial (Cia de Freud, 2014), Psicanálise no século XXI:
ideologias políticas, subjetividade, laços sociais e intervenções
psicanalíticas (CRV, 2017) Reconfigurações do Imaginário no século XXI
(CRV, 2019) e Todo mundo é igual? Clínica lacaniana da psicose ordinária
e o autismo (CRV, 2023).
Postado há 6 hours ago por Orlando Tambosi
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