BLOG ORLANDO TAMBOSI
Desde a Segunda Guerra Mundial, só 12 países conseguiram dar o salto do atraso para o seleto grupo dos países desenvolvidos, fazendo o oposto do que temos feito no Brasil. Ensaio do professor Bolívar Lamounier para o Estadão:
O
que este texto oferece não é uma premonição, muito menos uma previsão.
Não afirmo que estejamos condenados a grandes desastres. Meu intuito é
apenas lembrar que desastres políticos, em qualquer de suas formas,
afetam de maneira negativa o desempenho da economia, envenenam a arena
do debate público e, no limite, podem levar a conflitos sociais
devastadores. Penso que esse tipo de reflexão ganhou relevância nos dias
que correm tanto por razões propriamente políticas como em razão de
certas dificuldades econômicas agudas a que o Brasil e vários outros
países estão expostos. Refiro-me aqui ao que os economistas denominam
”armadilha do crescimento médio”, conceito explicado a seguir.
Suponhamos
que a renda anual por habitante brasileira esteja na casa dos R$ 7,5
mil. Crescendo a uma taxa anual média de 3%, levaremos 23 anos – uma
geração inteira! – para dobrá-la e nos alçarmos ao patamar ainda
medíocre de R$ 15 mil por ano por habitante. Sem esquecer que
continuaremos com as mesmas carências educacionais, a mesma escassez de
oportunidades, a mesma desigualdade social e, muito possivelmente, com a
criminalidade geral e o crime organizado em acelerado crescimento, o
mesmo pavoroso quadro no tocante ao saneamento básico e por aí afora. O Produto Interno Bruto (PIB) permanece quase estagnado, mas as mazelas não ficam esperando. Seguem em frente.
Fábrica de caminhões: deslanchar um processo de industrialização é, no início, relativamente fácil
Deslanchar
um processo de industrialização é, no início, relativamente fácil.
Trata-se basicamente de incorporar uma legião de trabalhadores
desprovidos de qualificação, antes dispersos num vasto interior rural ou
em pequenas coletividades ao mercado urbano, e em implantar um embrião
de parque industrial, num nível tecnológico modesto, por meio de
patentes adquiridas no exterior. A certa altura, o crescimento estanca, e
levará tempo para ser retomado. Estaremos, então, aprisionados na
mencionada armadilha.
É oportuno ressaltar que, desde a Segunda Guerra Mundial,
só 12 países conseguiram dar o salto do atraso para o seleto grupo dos
países desenvolvidos, sendo que esses 12 abandonaram o modelo de
economia “fechada”, dando forte impulso ao intercâmbio com o exterior;
reformaram suas máquinas de Estado, tornando-as mais funcionais, e
apoiaram com firmeza a economia de mercado. O oposto, como se vê, do que
temos feito no Brasil desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial.
Fiz
referência a um prazo de 23 anos para dobrarmos nossa atual renda per
capita. Pode ser mais, se nos mantivermos vulneráveis a frequentes
desastres políticos. Daí a pergunta: quantos desastres cabem em duas
décadas?
Esse
é o fio condutor desse artigo, no qual farei uma recapitulação
esquemática do período republicano, remontando a 1889, a fim de
ressaltar que nossa vida política tem sido muito mais instável e
tumultuária do que em geral se supõe. Antes, porém, entendamo-nos quanto
ao conceito de desastre político, que me servirá como base neste
artigo. Num país democrático, a ruptura das engrenagens constitucionais é
em si um desastre. Pode acontecer da noite para o dia, deixando
sequelas malignas em sua esteira.
Mas
a ruptura “da noite para o dia” é uma ilusão. O breakdown (quebra,
ruptura) da estrutura constitucional é sempre um golpe de Estado, cujas
causas com certeza vinham fermentando desde muito antes. Entre suas
causas incluem-se radicalismos partidários desarrazoados, fanatismos
ideológicos, a recusa de um líder ou partido em reconhecer a
legitimidade de resultados eleitorais e, principalmente, o populismo,
fenômeno frequente na América Latina, que se configura quando um
político resolve ignorar os mecanismos constitucionais e governar “por
cima deles”, manipulando massas carentes.
A primeira República – 1889-1930
O
amanhecer da República caracterizou-se pelo recurso à força em dois
importantes episódios. No Rio de Janeiro, a revolta da Armada (Marinha
de Guerra). No Rio Grande do Sul, de 1893 a 1895, a sangrentíssima
guerra civil entre os maragatos, liderados por Gaspar da Silveira
Martins, saudosistas da monarquia, e os gaviões, liderados pelo caudilho
Júlio de Castilhos, que controlava o governo estadual. Devotos fiéis do
positivismo autoritário de Augusto Comte, os gaviões rejeitavam a
Constituição liberal e federalista de 1891, ansiando pela implantação de
uma “ditadura Republicana”.
Capa de 16 de novembro de 1889 do jornal "A Província de São Paulo", primeiro nome do Estadão
Transcorrido o ordeiro quatriênio ordeiro de Prudente de Moraes
(1894-1898), coube a Campos Salles (1898-2002) transformar a Primeira
República numa triste caricatura. Paulista de Campinas, Campos Salles
percebia os problemas brasileiros por uma ótica estritamente financeira.
No
importante volume “Os Presidentes do Brasil”, editado pela universidade
Estácio de Sá, seu organizador, o professor Fábio Koifam, cita diversas
afirmações dele, como esta: “Muito terá feito pela República o governo
que não fizer outra coisa senão cuidar das finanças”.
Campos Salles
tinha diante de si o problema, difícil e real, de renegociar nossa
dívida com a Inglaterra. Entendia que a condição sine qua non para tanto
era impedir a qualquer custo a ingerência dos Estados no governo
federal. Como fazê-lo? A solução alvitrada por Campos Salles foi a
chamada “política dos governadores”, que mais apropriadamente se deveria
denominar “ditadura dos governadores”. Controlando com mão de ferro a
Comissão de Verificação de Poderes do Congresso, instruiu-a a não
reconhecer a eleição de candidatos que fizessem oposição aos
governadores em seus respectivos Estados, implantando, assim, sem
disparar um tiro, um regime de partido único em todo o País – os
“partidos republicanos” -, exceção feita, como é óbvio, ao Rio Grande do
Sul, onde “gaviões” e “maragatos” jamais aceitariam tal expediente.
O
retrocesso político foi colossal, inclusive no tocante ao número de
cidadãos que compareciam às urnas nas eleições presidenciais, que caiu a
níveis irrisórios e só voltaria a atingir a cifra de 5% da população
total na eleição de 1930. Em cada Estado, o controle das mentes e
corações passou a ser ferrenho, de tal forma que cada Estado se lançava
como um bloco a favor de seu candidato, o mesmo acontecendo nos Estados
que apoiavam candidatos adversários. Excetuado o Marechal Hermes da Fonseca,
que ficou um pouco abaixo de 60%, todos os demais candidatos obtiveram
mais de 80% da votação total do País. Ou seja, cada um obtinha a quase
totalidade dos votos nos Estados que lhe eram favoráveis e quase zero
nos de seus adversários, nos quais a mesma coisa acontecia.
Dentro
desse quadro, a sucessão presidencial evoluiu conforme o figurino do
“café-com-leite”, com São Paulo e Minas Gerais revezando-se no Catete.
Fácil, pois, compreender que variadas oposições armadas começassem a se
formar; oposições genericamente designadas como “tenentistas”, que
combatiam o vigente arranjo oligárquico desfraldando a bandeira do
“saneamento do processo eleitoral”.
Teve também aí início a Coluna Prestes, tentativa de sublevar o interior do País, sob a liderança do capitão Luís Carlos Prestes. Não por acaso, o mineiro Arthur Bernardes (1922-1926) ficou sem alternativa a não ser manter o estado de sítio durante quase todo o seu mandato.
O ciclo getulista – 1930-1964
A não observância do acordo “café-com-leite” pelo presidente Washington Luís
(1926-1930) foi o pretexto para a chamada Revolução de Trinta, um
movimento político organizado para impedir a posse do paulista Júlio
Prestes, indicado para presidir o País no período 1931-1934.
Argumentou-se, à época, que tal movimento seria expressão da revolta dos
Estados não produtores de café contra o excessivo favorecimento dos
presidentes paulistas à cafeicultura de seu Estado. Um argumento de
duvidosa consistência, já se vê.
A
superprodução do produto no Brasil, o surgimento de forte concorrência
no mercado internacional e a crise financeira de 1929 haviam arrasado a
lavoura cafeeira paulista, que começou a pleitear subsídios federais
desde o Convênio de Taubaté, de 1906. O suposto favorecimento dos
presidentes à cafeicultura consistiu basicamente na aquisição e queima
de estoques, com o objetivo de restringir a oferta do produto no mercado
internacional, visando sustentar o nível de renda do setor, o que,
indiretamente, significava proteger a economia do País como um todo.
Não
observância da política do "café-com-leite" por parte de Washington
Luís (foto) virou pretexto para impedir a posse de Júlio Prestes
Os
três Estados que protagonizaram a derrubada de Washington Luís e Júlio
Prestes, foram, em primeiro lugar, Minas Gerais, sob a liderança de
Virgílio de Melo Franco, cujo interesse era político, reivindicando “a
vez de Minas” no Catete. Segundo, o Rio Grande do Sul, onde Oswaldo Aranha
atiçava Getúlio até com veemência, já indicando que caberia a Getúlio,
como governador do Rio Grande, o papel de comandante militar da
rebelião.
Lançado
candidato à Presidência nas eleições programadas para 1º de março de
1930, tendo como candidato a vice João Pessoa, governador da Paraíba,
fato é que Getúlio Vargas
não via com bons olhos o golpe contra Washington Luís, mas não teve
como tergiversar ante o assassinato de João Pessoa, favorável ao recurso
às armas pela Aliança Liberal. Os “aliancistas” mais radicais trataram
de emoldurar o assassinato de João Pessoa
no quadro das desavenças nacionais, alguns até tentando atribuir
responsabilidade por ele ao presidente Washington Luís – posição não
compartilhada por Getúlio Vargas -, quando, na verdade, o crime teve
como causa desavenças de natureza pessoal, muito mais que políticas,
entre João Pessoa e seu desafeto (desafeto também político, isso é
certo) João Dantas.
No
Rio Grande, Getúlio granjeara uma expressiva reputação como moderado e
pacificador, notadamente entre 1923-1925, quando ajudou a evitar um
segundo confronto armado entre “gaviões” e “maragatos”. No Catete, Dr.
Jekill não demorou a se metamorfosear em Mr. Hide. Começou a emitir
sinais autoritários, inclusive inequívocas manifestações de simpatia
pelo fascismo italiano, dando a entender que o futuro modelo político
brasileiro haveria de ser de índole corporativista. Enganou-se quem
esperava um breve abandono do arbítrio e a convocação de uma assembleia
constituinte. Neste aspecto, o que se viu foi o oposto: a postergação
por dois anos de tal medida, que só seria admitida graças à pressão da Revolução Constitucionalista de São Paulo.
Os
anos seguintes seriam de desordem e crescente rejeição a Getúlio, não
fosse a emergência de dois movimentos dispostos a empunhar armas e
claramente orientados por ideologias totalitárias. De um lado, a ANL
(Aliança Nacional Libertadora), dirigida por Luís Carlos Prestes, a essa
altura já convertido ao comunismo (o PCB fora fundado em 1922). A
chamada Intentona Comunista foi facilmente esmagada. Do outro lado, o
Integralismo de Plínio Salgado (versão brasileira do fascismo italiano, consubstanciado na AIB - Aliança Integralista Brasileira).
Getúlio Vargas alcançou seu verdadeiro objetivo, da instalação da ditadura do Estado Novo
O
Integralismo tinha bases populares muito mais amplas, forçando Getúlio a
exercitar ao máximo sua proverbial capacidade de protelar e
tergiversar. O Integralismo só viria a ser derrotado no campo das armas
em 1938, quando empreendeu um ataque direto ao palácio presidencial.
Essas duas aventuras foram as bandejas que projetaram a popularidade de
Getúlio para a estratosfera, pavimentando o caminho para seu real
objetivo, que era a implantação de uma ditadura, que viria a ser o Estado Novo, instituído a 10 de novembro de 1937.
Iniciada
na Europa a Segunda Guerra Mundial, havia que controlar as discórdias
entre germanófilos e americanófilos que se delineavam dentro do governo.
A opção por entrar na guerra em conjunto com os Aliados deveu-se
basicamente a três fatores. Primeiro, a sedução financeira
norte-americana, consubstanciada em três importantes projetos: a CSN
(Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda), a CVRD (Companhia do
Vale do Rio Doce) e a Base Aérea de Natal. O segundo fator foi a
insanidade de alemães e italianos, que retaliaram afundando embarcações
brasileiras em nosso litoral nordeste. Terceiro, o surgimento de uma
forte oposição interna, iniciado em 1943 com o Manifesto dos Mineiros,
que quebrou de vez a censura. Esta era até então exercida com zelo pelo
DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), réplica fiel de seu
congênere nazista.
A participação militar do Brasil na Itália, através da Força Expedicionária Brasileira (FEB),
embora modesta, também teve um efeito doméstico importante, uma vez que
o retorno dos “pracinhas” inclinou de vez os pratos da balança para o
lado democrático, cabendo aos generais Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro comunicar a Getúlio que seu governo acabara.
Daquele ponto em diante, outubro de 1945, as rédeas do governo passariam às mãos de José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal,
que se incumbiria de coordenar o processo eleitoral para a eleição do
próximo presidente e a convocação de uma assembleia constituinte para
elaborar com presteza uma Constituição democrática. Assim se fez, Dutra
foi eleito presidente e, já em fevereiro, o Brasil passava a ser regido
pela Constituição liberal de 1946.
Desembarque
dos pracinhas da FEB no Rio, em agosto de 1945, incluiu desfile de
solados em carro aberto, com chuva de papel picado. A Força foi desfeita
por decreto por Getúlio, que temia popularidade deles
Origem do nacional-desenvolvimentismo
Contudo,
o desfecho benfazejo relatado no parágrafo anterior trazia embutidos
alguns fatores de desastre. O mais importante foi sem dúvida a
inclinação do getulismo pelo modelo econômico conhecido como
“nacional-desenvolvimentismo”. De fato, o ditador deposto e todo o seu
séquito dito “progressista” ou “nacionalista”, de uma ponta a outra do
espectro político, abraçou de corpo e alma tal ideologia
nacional-desenvolvimentista, colimando fazer avançar a industrialização a
qualquer preço, com base em investimentos públicos e empresas estatais e
através da chamada ISIS (Industrialização Substitutiva de Importações).
Para
se aquilatar os limites de tal opção, basta lembrar que o Estado
brasileiro não era capaz de produzir os superávits significativos
pressupostos na diretriz de uma quase exclusividade do poder público na
hercúlea tarefa de impulsionar o crescimento. Segundo, o País não tinha
como escapar aos estrangulamentos cambiais e de energia que o
garroteavam no curto prazo, e nem acreditava na possibilidade de
expandir num prazo razoável a produção agropecuária indispensável à
sustentação da enorme massa de trabalhadores rurais que viria preencher
as vagas de trabalho que iam se abrindo no Sudeste.
Não
descabe lembrar que a alta tecnocracia – aí incluído o notável
economista Celso Furtado, o sumo-sacerdote da deusa ISIS – ignorava que
uma importante revolução pecuária já havia sido posta em marcha pelos
fazendeiros do Triângulo Mineiro, que foram à Índia buscar exemplares
dos gados zebu e nelore, logo aclimatados e utilizados em frutíferos
cruzamentos – tudo isso contra a manifesta má vontade de Getúlio,
diga-se de passagem.
O flerte de Getúlio com o populismo
Eurico
Gaspar Dutra, candidato “pesado”, deveu a maior parte de sua votação a
Getúlio, que tratara de enquadrar seu capital eleitoral em dois partidos
que fundara simultaneamente: o PSD (Partido Social Democrático), para
ser seu interlocutor junto aos fazendeiros, e o PTB, Partido Trabalhista
Brasileiro, para cumprir o mesmo papel junto aos sindicatos e ao
operariado urbano.
Neste
ponto, é mister frisar que a República recorreu em diversas ocasiões a
incríveis disparates de construção institucional. Um deles foi admitir
candidaturas à vice-presidência desvinculadas do partido do cabeça de
chapa, tontice que logo daria ensejo a graves embates. Tampouco se
lembraram os constituintes de regulamentar a questão dos cargos aos
quais um candidato poderia concorrer ao mesmo tempo.
Assim,
nas primeiras eleições, Getúlio elegeu-se senador por dois Estados –
Rio Grande e São Paulo – e para deputado federal em diversos outros. Não
compareceu às sessões em nenhum deles, optando por um autoexílio no Rio
Grande, de onde acompanhava por alto os fatos da política nacional.
Em
1949, ele recebeu em sua fazenda de São Borja seu amigo Samuel Wainer,
fundador do jornal Última Hora e seu principal interlocutor na imprensa.
A certa altura Wainer lhe perguntou: “E agora, presidente, o Sr
pretende voltar à política?”, ao que Getúlio respondeu: “Sim, vou
voltar, mas não como político, como líder de massas”.
Poucos
formulariam com tal concisão uma senha para futuras incursões na seara
populista. Do lado contrário, o jornalista Carlos Lacerda, um
ex-comunista que chamou a si a liderança da ultradireita udenista,
replicou em seu jornal Tribuna da Imprensa: “O Sr Getúlio Vargas não
deve se candidatar. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, tudo faremos
para derrubá-lo”.
Carlos Lacerda liderou oposição a Getúlio Vargas e foi alvo de um atentado por parte do guarda-costas do então presidente
Ao
retornar ao proscênio político no marco da Constituição de 1946,
Getúlio era ainda o líder mais importante do País. O problema é que,
àquela altura, o cenário doméstico já começara a metabolizar o
onipresente veneno da guerra fria, formando-se dessa forma em todas as
grandes cidades uma mentalidade política na qual se amalgamavam a
contraposição entre getulistas e antigetulistas, antagonismos
ideológicos e ódios pessoais de toda ordem.
Nos
dois primeiros anos de seu segundo governo, Getúlio agiu com moderação,
abstendo-se de levar à prática a ameaça contida em sua entrevista a
Samuel Wainer. No terceiro ano, todavia, a questão salarial o empurraria
de vez para o populismo. No Ministério do Trabalho, seu afilhado e
amigo João Goulart (Jango) encampou a reinvindicação sindical de um
aumento de 100% para o salário mínimo. A base aceitável pelo
empresariado girava em torno de 40%. Não é difícil imaginar o
aquecimento dos ânimos que essa diferença por si só seria capaz de
engendrar.
Deu-se,
entretanto, que, em agosto de 1954, sem o conhecimento ou qualquer tipo
de autorização da parte de Getúlio, um de seus guarda-costas, Gregório Fortunato, trazido do Rio Grande do Sul, tomou a iniciativa de atentar contra a vida de Carlos Lacerda.
Por volta da meia-noite, em frente ao prédio da rua Toneleros onde
Lacerda residia, um de seus asseclas tentou pôr em prática o alucinado
intento concebido por Fortunato. Lacerda foi atingido sem gravidade, mas
outro disparo matou o Major Vaz, um oficial da aeronáutica que fazia a
guarda de Carlos Lacerda em sua campanha para deputado federal.
A
oficialidade da Aeronáutica, sempre mais simpática à UDN e a Lacerda
que ao PSD e ao PTB de Getúlio, tomou as rédeas da Justiça em suas mãos,
reunindo-se na chamada República do Galeão, de onde convocava,
interrogava e chegava mesmo a prender suspeitos do crime. Desse ponto em
diante, é fácil compreender como se chegaria ao 24 de agosto: o
suicídio de Getúlio e a Carta Testamento, símbolos que desencadeariam
uma violenta reação contra a UDN e projetariam o getulismo rumo ao
futuro, alimentando-o por muitos anos mais.
Juscelino, Lott e o ‘golpe da legalidade’
Só
um analista político dos mais argutos aceitaria a incumbência de
esclarecer como um obscuro deputado do Rio Grande do Norte, ligado ao
PSP (Partido Social Progressista) de Adhemar de Barros, conhecido por
arroubos meio esquerdistas e por isso mesmo odiado pela LEC (Liga
Eleitoral Católica) chegou à Presidência da República. Ninguém na plena
posse de seus sentidos daria isso como possível. Mas aconteceu, e foi
assim que João Café Filho se
tornou candidato à Vice-Presidência. Getúlio, o cabeça de chapa,
devotava-lhe o mais solene desprezo, a ponto de mal falar com ele.
Café
Filho ascendeu por caminhos irrelevantes, e caiu por motivos da mesma
ordem de grandeza, quando, assumindo a Presidência após o suicídio de
Getúlio, envolveu-se no desatino de tentar impedir a posse de Juscelino Kubitschek, eleito a 3 de outubro de 1955.
Juscelino Kubitschek, eleito em 1955, tornou-se presidente apesar das articulações para impedir sua posse
Mais
uma vez derrotada pela coalizão PSD-PTB, não havia hipótese de a UDN
digerir a eleição de Juscelino para a presidência, menos ainda com João Goulart
na vice. O partido de imediato entabulou “conversações”, com o evidente
propósito de impedir a posse de JK, com o argumento, não previsto na
Constituição, de que ele não atingira a maioria absoluta.
Como
se não bastasse o céu carregado de nuvens escuras daqueles dias, no dia
31 de outubro veio a falecer o general Canrobert Pereira da Costa,
oficial de grande prestígio, chefe do Estado Maior das Forças Armadas
(EMFA). No sepultamento, presentes nomes de grande peso entre os
comandos militares, o coronel Jurandir Bizarria Mamede inopinadamente
tomou a palavra e exclamou que a eleição de JK fora uma “farsa
eleitoral”. Testemunha do fato, o marechal Henrique Duffles Teixeira Lott, ministro da Guerra, oficial extremamente cioso da hierarquia militar, exigiu do presidente Café Filho a punição de Mamede.
Diante
da recusa de Café Filho, Lott demitiu-se da pasta da Guerra, o que em
si já era um grave sinal de crise. Sentindo o rápido aquecimento dos
ânimos, Café Filho internou-se num hospital da Gávea, onde permaneceria
por vários dias, passando a Presidência ao primeiro na linha sucessória,
o respeitado deputado mineiro Carlos Luz, presidente da Câmara.
Surpreendentemente,
Carlos Luz também não quis atender à exigência de Lott, que não vacilou
em pôr tanques na rua, impedindo o retorno de Café Filho à Presidência e
depondo também o deputado Carlos Luz. Esse episódio, pitorescamente
denominado “golpe da legalidade”, exprimiu com absoluta clareza a
disposição de Lott a assumir o papel de fiador da posse de Juscelino.
Homem
de perfil moderado e apoiado pelos dois maiores partidos, Juscelino
trafegou sem maiores solavancos entre os arrecifes de seu mandato, mas
não conseguiu emplacar o Marechal Lott como seu sucessor. Em outubro de
1960, o destino, sempre à espreita, resolveu fazer mais uma das suas,
facilitando a eleição para a presidência de um notório demagogo, o Sr. Jânio Quadros, lançado pelo pequeno PTN (Partido Trabalhista Nacional) e, envergonhadamente, pela UDN de Afonso Arinos e Carlos Lacerda.
Jânio Quadros durou pouco no cargo, renunciando sob o argumento de que "forças ocultas' o impediam de governar
Não
podia dar certo, como de fato não deu. A invocação de “forças ocultas”
que o estariam impedindo de governar era uma diáfana tentativa de
autogolpe que, longe de encher as ruas com supostos seguidores que o
carregariam nos ombros de volta ao Planalto, deixou-o a ver navios.
Abria-se, então, a mais espinhosa das questões, a posse de João Goulart,
legitimamente eleito para a vice, que, naquele momento, se encontrava
em viagem oficial à China. Uma Junta Militar integrada posicionou-se de
imediato contra a posse, fazendo saber a Jango que ele seria preso no
preciso momento em que pisasse o solo brasileiro.
A contrafação parlamentarista de 1961
Mais
uma vez, espessas nuvens encobriam o céu enquanto os meios político e
militar buscavam uma fórmula que permitisse empossar Jango na
presidência e ao mesmo tempo evitar que a Junta Militar se sentisse
humilhada pela derrocada. O expediente encontrado, expresso no Ato
Adicional número 1 à Constituição de 1946, foi uma contrafação de
parlamentarismo, improvisada a toque de caixa.
O risco de uma guerra civil era sério, tendo em vista a ascendência de Leonel Brizola,
cunhado de Jango e governador do Rio Grande, sobre a poderosa Brigada
Militar de seu Estado. Brizola não aceitava o improviso parlamentarista
tanto por razões doutrinárias – era, afinal, um fiel descendente do
positivismo castilhista – como também, e quiçá mais importante, por
entender que Jango seria apenas um figurante que por acaso receberia a
faixa presidencial. Jango também não aceitava, mas dispunha-se a encenar
tal papel para, manobrando as forças políticas, antecipar o plebiscito
que o Ato Adicional estipulara para 1965, com o objetivo de manter ou
revogar a fórmula parlamentarista.
Atingiu
seu objetivo, sendo o plebiscito realizado a 6 de janeiro de 1963.
Jango assim retomou o que se convencionou denominar a “plenitude dos
poderes presidenciais”, o que, na prática resultou num governo
desastroso. Com os militares emparedando-o por um lado e a dupla
esquerdista Brizola-Darci Ribeiro (este, à época, chefiando a Casa
Civil) pelo outro, a ínfima chance de Jango se equilibrar num papel de
centro esvaiu-se num abrir e fechar de olhos.
João Goulart acabou derrubado pelo golpe militar de 1964 em meio à insatisfação da cúpula das Forças Armadas
Chefe
de um governo inepto, foi facilmente empurrado para um populismo de
esquerda, cujo momento canônico foi o discurso que proferiu no Rio de
Janeiro na noite de 13 de março de 1964, dirigido a uma multidão reunida
em frente ao prédio da Central do Brasil. Discursando ao lado de sua
mulher, Maria Teresa, concluiu assinando e exibindo para os presentes um
desengonçado decreto de reforma agrária. Mas Jango foi muito além do
que a prudência aconselharia. Nos dias seguintes, passou a dar ostensivo
apoio a marinheiros em greve, numa evidente quebra da hierarquia
militar. Daí ao golpe de 31 de março, seria só um passo.
O ciclo militar, 1964-1985
Contando,
no início, com ampla mobilização de apoio entre as camadas médias
urbanas, ao fim e ao cabo o ciclo militar não desmentiu a tese geral
deste estudo, a saber, a de que a República tem continuamente se
caracterizado por intensa instabilidade. Isso não se deveu apenas ao
fato de organizações de esquerda terem encetado uma luta armada contra o
regime, perpetrando atos terroristas, assaltos a bancos, sequestro de
aeronaves comerciais, ataques a quartéis e até sequestros de diplomatas,
entre os quais o mais audacioso foi sem dúvida o do embaixador dos
Estados Unidos, Elton Burke Elbrick, cuja libertação só foi conseguida
pela aquiescência do governo em divulgar um manifesto dos revoltosos no
horário nobre da TV e pela troca do embaixador por um numeroso grupo de
presos ligados aos movimentos revolucionários.
A
resposta militar destacou-se por extenso recurso a operações de
tortura, à dizimação de grupos de guerrilheiros e também a atos
terroristas, como o praticado contra a sede da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) e, também no Rio, a fracassada tentativa de detonar bombas durante um show artístico em andamento no Rio-Centro. A pior das ações repressivas foi com certeza o assassinato de prisioneiros, como foi o caso do operário Manuel Fiel Filho e do jornalista Vlado Herzog, este encontrado enforcado em sua cela.
Por este último fato, o presidente Ernesto Geisel foi levado a exonerar o general Ednardo D’Ávila Melo, comandante do Segundo Exército, sediado em São Paulo.
Contudo,
os fatos acima relatados não abrangem todos os fatores de instabilidade
que lavraram durante o período. Não menos importante foi a série de
desavenças que viria a ocorrer entre os próprios oficiais-generais que
comandavam o modelo instituído em março de 1964. A série a que me refiro
a rigor teve início com o comportamento do Marechal Costa e Silva, que se acomodou no Ministério da Guerra 13 dias antes de o Alto Comando indicar oficialmente o Marechal Castelo Branco
para a presidência da República. Assumindo, sponte sua, o cargo que lhe
interessava, Costa e Silva já praticamente se impunha como o sucessor
presuntivo de Castelo e se posicionava para eventualmente contrariar
medidas de estabilização econômica e reformas que ministros Otávio
Bulhões e Roberto Campos viessem a tomar.
Em
1968, Costa e Silva veio a falecer em razão de um distúrbio cerebral
presumivelmente decorrente de ter se recusado a assinar o
ultra-repressivo Ato Institucional número 5. Configurado, assim, um problema sucessório, o Alto Comando indicou como sucessor o general Garrastazú Médici, impedindo a posse do vice legitimamente eleito (dentro das regras de jogo vigentes), o deputado mineiro Pedro Aleixo, configurando-se aí, sem meias palavras, um golpe dentro do golpe.
General Ernesto Geisel contraiu empréstimos de grande vulto no exterior, aprofundando derrocada econômica da ditadura
Em
outubro de 1977, na Presidência, o general Ernesto Geisel exonerou com
inusitada rispidez (“O cargo é meu”!) seu ministro da Guerra, o general
Sylvio Frota, ao qual era geralmente atribuída uma trama para o
derrubar. Mas a derrocada do ciclo militar acabou por se dar muito mais
pela via econômica que pela política. Vendo-se como o protagonista
indispensável para implementar sua visão de um “Brasil Grande”, e tendo
em vista a farta liquidez disponível no mercado financeiro
internacional, o governo Geisel contraiu no exterior empréstimos de
grande vulto, indexados à taxa de juros vigente na praça de Londres.
Deu-se
que, em 1973 e novamente em 1979, abruptos reajustes nos preços do
petróleo, ocasionados pela constante beligerância no Oriente Médio,
triplicaram a taxa de juros, com o que o projeto brasileiro de
crescimento acelerado estancou e o País mergulhou numa prolongada
estagnação, que se tornaria conhecida pelo epíteto de “década perdida”.
Desse ponto em diante, como veremos a seguir, os impasses subjacentes
passaram à área política, resultando na vitória do senador Tancredo Neves sobe Paulo Maluf no
âmbito do Colégio Eleitoral, em março de 1985. Assim, o ciclo militar
chegou ao fim através do que se pode apropriadamente denominar uma
“redemocratização pela via eleitoral”.
A queda de braço entre Sarney e a Constituinte
Com a morte de Tancredo Neves no dia 21 de abril de 1985, o cetro presidencial passou às mãos de José Sarney.
Este, sem embargo de sua longa experiência nas proximidades do poder,
não possuía nem de longe a estatura política e a legitimidade
democrática oposicionista de Tancredo Neves. Para complicar as coisas,
estava decidido que o Congresso a ser eleito em 1986 assumiria a partir
de 1987 com poderes constituintes originários.
Com a morte de Tancredo Neves antes de assumir, José Sarney tornou-se presidente da República
Uma
questão crítica seria a duração do mandato de José Sarney. A
Constituição vigente era ainda a do período militar, que estipulava um
mandato de seis anos. Tancredo havia insinuado querer um mandato de
apenas quatro anos, mas esse desejo só teria consequência prática se ele
mesmo propusesse ou apoiasse emenda constitucional nesse sentido, a ser
votada pelo Congresso. Era dado como certo que Sarney fincaria pé na
defesa de um mandato de pelo menos cinco anos.
Em
teoria, o Congresso Constituinte poderia admitir o mandato de seis
anos, reduzi-lo para cinco ou quatro anos, ou mesmo interrompê-lo de
imediato, o que implicaria o afastamento de Sarney da função
presidencial. Delineava-se, assim, um jogo de perdedores: na prática,
nem conseguiria Sarney recuperar a autoridade perdida em razão do
colapso de seu equivocado plano heterodoxo de combate à inflação, nem
disporia o Congresso (no caso, a oposição) de lideranças suficientes e
dispostas a encerrar o mandato de Sarney.
Recorde-se
que estávamos em plena “década perdida”, com o País sofrendo os efeitos
de décadas de alta inflação e rumando com celeridade para o temido
espectro da hiperinflação. Em 1986, como já se notou, Sarney surpreendeu
o País com a decretação do Plano Cruzado, uma tentativa de controlar a
inflação pelo caminho heterodoxo do controle de preços e salários. O
Plano catapultou sua popularidade para a estratosfera, propiciando-lhe
uma a chance de efetuar reformas estruturais consistentes.
Mas
essa não era a índole do prócer maranhense. Numa reunião realizada em
Carajás, uma plêiade de economistas adverte-o de que o Plano, como
estava, seria um “voo de galinha”, sendo, pois, imperativo afrouxá-lo.
Sarney não aquiesceu em tomar tal medida antes das eleições, pois
necessitaria de amplo apoio entre os governadores e nos embates com a
Constituinte. Ao fim e ao cabo, constatou-se que Cassandra estava
coberta de razões. Sarney atingiu plenamente seu objetivo eleitoral, mas
o envergonhado anúncio de que o controle de preços e salários havia
esgotado seu prazo de validade liquidou-o politicamente, a ponto de só
ter conseguido assegurar o mandato de cinco anos mediante uma
escandaloso recurso ao clientelismo, “comprando” os votos de que
necessitava.
Com
a economia estagnada e no clima de desmoralização política então
prevalecente, a opinião pública brasileira entrou num transe messiânico,
considerando que só a “primeira eleição direta após 29 anos” poderia
tirar o Brasil do buraco. Nesse quadro, o governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello,
esgrimindo o slogan demagógico do combate aos “marajás” (servidores
públicos privilegiados), sobrepujou até com certa facilidade a
inexperiência e os arroubos radicais de seu principal adversário, Luiz Inácio Lula da Silva.
Collor
e Lula participam de debate de 1989, que terminou com a vitória do
primeiro, depois derrubado em um processo de impeachment
Incapaz,
porém, de liquidar a inflação “com um só tiro”, como prometera e
atingido em cheio por acusações de corrupção, Collor foi afastado do
cargo, em 1992, por meio de um processo de impeachment. Assim, as
circunstâncias alçaram à Presidência o vice Itamar Franco,
homem reconhecido por sua integridade, mas não por sua habilidade
política e menos ainda por seus conhecimentos de economia. Em seu
primeiro ano de governo, Itamar “queimou” três ministros da Fazenda
(Gustavo Krause, Paulo Haddad e Eliseu Resende), até que um autêntico
“estalo de Vieira” levou-o a convocar para o cargo seu ministro do
Exterior, Fernando Henrique Cardoso, que se encontrava em Nova York, fazendo o percurso de volta do Japão.
Embora
sua formação acadêmica fosse em sociologia, não em economia, Fernando
Henrique foi efusivamente recebido pelo empresariado e levou para
Brasília um seleto grupo de economistas, com os quais iria elaborar um
plano de combate à inflação – o Plano Real, como ficou conhecido. A
condição básica de tal trabalho seria afastar de vez todo indício de
heterodoxia, posição esta materializada no principal instrumento
operacional do plano, a URV (Unidade Referencial de Valor). A política
de estabilização seria gradualista e orientada no sentido de obter junto
ao público um voto de confiança cada vez mais sólido, e sempre
reconhecendo o apoio que lhe outorgava o presidente em exercício, Itamar
Franco.
Por
volta de maio de 1994, o acerto da opção gradualista já não comportava
dúvidas, fato que se evidenciaria no fim do ano pelo fato de Fernando
Henrique ter batido Lula na eleição presidencial em primeiro turno e em
todos os Estados do País. Enquanto isso, era evidente que Lula e seu
Partido dos Trabalhadores não haviam superado a doença infantil de seu
esquerdismo. Aconselhado por seus assessores, Lula bateu de frente com o
Plano, vaticinando seu iminente fracasso. Esta constatação não
contradiz o fato também óbvio de que, nos oito anos seguintes, o
lulo-petismo logrou um notável crescimento na esfera eleitoral, que o
levaria a bater o candidato do PSDB (Partido da Social-Democracia
Brasileira), José Serra, na eleição de 2002.
Àquela
altura, era patente que Lula amadurecera mais que seu partido, o que,
entretanto, não o impediu de inquinar como “herança maldita” o País
estabilizado que Fernando Henrique lhe passou, num processo de transição
absolutamente exemplar.
De Lula a Dilma
Por
maiores que sejam os méritos atribuíveis a Lula, notadamente o de pôr
as desigualdades sociais brasileiras no topo da agenda pública, não cabe
dúvida de que os historiadores atuais e os do futuro lhe farão duras
indagações em pelo menos três aspectos. Primeiro, certa promiscuidade
nas relações com os partidos e o Congresso Nacional, evidenciadas no
episódio do “mensalão” (2006), ou seja, na distribuição de valores
pecuniários a numerosos congressistas, a fim de se assegurar do apoio
deles. Segundo, e muito mais grave, a sistemática organização da
corrupção na Petrobrás, em conluio com os maiores empreiteiros do País.
Terceiro, o desmesurado apetite de poder que o levaria a emplacar a Sra.
Dilma Rousseff na Presidência da República.
Quanto
a esse ponto, cabe aqui um parêntesis. Bafejado pela sorte – ou, para
sermos exatos, pelo enorme aumento na exportação de commodities para a
China -, Lula considerou que seu retorno ao Planalto seriam favas
contadas, e também a continuidade de um círculo vicioso que alçaria o
Brasil a um nível substancialmente mais alto de bem-estar. Vedada pela
Constituição a candidatura a um terceiro mandato consecutivo, ele só
tinha diante de si um pequeno entrave: deixar com uma pessoa de
confiança a poltrona presidencial do quarto andar do Palácio do
Planalto. Para afastar esse pequeno entrave, reuniu-se com o empreiteiro
Marcelo Odebrecht,
sem dúvida para solicitar-lhe um esforço extra no aspecto financeiro, e
com o publicitário João Santana, de cujo talento haveria de fluir o
imaginário a ser mostrado no horário eleitoral da televisão.
Lula
escolheu Dilma Rousseff para sucedê-lo, mas um impeachment interrompeu o
segundo mandato da primeira mulher na Presidência, que acabou sendo
herdada pelo vice Michel Temer
Seja
qual for a exata combinação entre esses elementos, não me parece
concebível que Lula ignorasse a extensão do despreparo de Dilma Rousseff
para a função presidencial. Desconhecia, e por isso superestimou a
lealdade dela, que insistiu, contrariando a lógica, em se candidatar a
um segundo mandato, em vez de deixar o caminho aberto para o triunfal
retorno de Lula. O resultado todos conhecemos.
Na
economia, uma contração brutal, que praticamente duplicou o número de
desempregados no País. Na área administrativa, a inobservância de normas
básicas de gestão das finanças públicas, que a levou a ser afastada por
meio de um processo de impeachment. E como os males do mundo costumam
andar juntos, logo em seguida, fevereiro de 2020, chegou a pandemia da
Covid, para liquidar o que ainda pudesse haver de esperança por estas
plagas.
Desencanto ou descortino?
Sucedendo a Dilma Rousseff na Presidência, o vice Michel Temer
fez das tripas coração a fim de tocar pelo menos uma parte das reformas
estruturais sabidamente indispensáveis à retomada do crescimento.
Logrou um razoável êxito, particularmente na área das relações de
trabalho, cujo arcabouço tem travado o crescimento desde os tempos do
corporativismo getulista.
Sem
demérito para Temer, sabemos todos que o que ele fez é uma minúscula
parcela do que há por fazer no tocante à reforma do Estado. E como se
não bastasse a lentidão nessa área, um novo desastre se configurou desde
a eleição de 2018: a polarização do bolsonarismo contra o petismo. Em
2022, a vitória de Lula por apenas 2% obviamente não poderia ter
amenizado os riscos inerentes a tal situação; ao contrário, parece
tê-los agudizado, a julgar pela arruaça golpista do dia 8 de janeiro,
semelhante à dos adeptos de Donald Trump nos Estados Unidos, não havendo
exagero em considerar que ambas se incluem entre as mais graves na
história dos dois países.
De
volta ao Planalto, Lula tem sabiamente se esforçado para falar mais
baixo e com mais cautela, passando a impressão de haver aprendido que
todo radicalismo político é perigoso.
À guisa de conclusão
É
difícil dizer o que é pior: dois grandes partidos abandonando sua
tradicional moderação, como se vê atualmente nos Estados Unidos, ou um
país virtualmente sem partidos, como é atualmente o Brasil, onde o que
vemos é um conglomerado disforme que atende pelo nome de Centrão. Num
caso ou noutro, o que precisamos ter em mente é que, com nossa renda por
habitante crescendo a taxas anuais pífias, não está à vista o dia em
que poderemos celebrar a superação da “armadilha do crescimento médio”.
Bem ao contrário, outro confronto vitriólico como o de 2022 entre Lula e
Bolsonaro nos afundará mais alguns degraus no fundo do poço.
Não
descabe lembrar que não é só de partidos políticos que o Brasil carece.
Não dispomos de uma elite no sentido apropriado deste termo: um grupo
relativamente numeroso, competente, culto e genuinamente devotado ao bem
coletivo. Temos, isto sim, um exíguo grupo de poderosos, dentre os
quais seis ou sete por cento exercem um controle imexível sobre metade
da riqueza nacional. Falta-nos igualmente uma classe média, ou algumas
camadas que possamos designar como alta classe média, capaz não somente
de identificar e defender seus próprios interesses, mas também de servir
como um muro de arrimo, escorando e balizando as instituições da
República, nos Três Poderes.
Bolívar
Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias
Paulista de Letras e Brasileira de Ciências e assessor acadêmico do
Clube de Madri, entidade integrada por ex-presidentes e
ex-primeiros-ministros
Postado há 8 hours ago por Orlando Tambosi
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