BLOG ORLANDO TAMBOSI
O jornalismo praticado por Jean-François Revel significava clareza e verdade, por as ideias ao alcance do leitor profano, mas sem as trivializar, mantendo o rigor ao mesmo tempo que a elegância e a originalidade. Artigo de Mario Vargas Llosa, publicado em 2014 por El País:
A
obra de Jean-François Revel (1924-2006) não consiste apenas nos 26
livros que escreveu e que, além da política, abrangem muitos gêneros da
sua enciclopédica cultura: filosofia, arte, história, literatura,
informação, gastronomia. Também consiste nas centenas de artigos que
publicou em revistas como L'Express, Le Point e Commentaire, e que,
assim como nos casos de um George Orwell ou de um José Ortega y Gasset,
são textos nevrálgicos da sua reflexão intelectual. Porque Revel, embora
tivesse tido uma formação acadêmica de alto nível – Escola Normal
Superior, onde foi discípulo de Louis Althusser, e professor associado –
renunciou à carreira universitária, depois de ter lecionado no México e
na Itália, para se dedicar ao jornalismo, que alcançou na França,
graças a ele, o brilhantismo que teve antes na Grã-Bretanha e na Espanha
graças aos autores de O Abate de um Elefante e A Desumanização da Arte.
Por
que fez isso? Acredito que para chegar a um público mais amplo que o do
âmbito universitário e, talvez, acima de tudo, para não se ver
arrastado para o obscurantismo retórico, aquela forma de logomaquia
vaidosa e mentirosa que atacou com tanta valentia como exatidão em
alguns filósofos de seu tempo no segundo de seus livros, Pourquoi des
Philosophes? (1957). O jornalismo que ele praticou significava claridade
e verdade, pôr as ideias ao alcance do leitor profano, mas sem as
trivializar, mantendo o rigor ao mesmo tempo que a elegância e a
originalidade dos bons textos literários. Entretanto, o jornalismo
significa também dispersão e fugacidade; talvez por isso, até agora,
salvo esporádicos empenhos como o de Pierre Boncenne (Pour Jean-François
Revel, 2006), ninguém tinha tentado apresentar de uma maneira
sistemática e completa o pensamento político de Revel e o que ele
significa no contexto da nossa época.
O
professor Philippe Boulanger acaba de fazer isso, de maneira soberba,
com um ensaio que, graças a uma pesquisa exaustiva de seus livros, seus
artigos, sua correspondência e arquivos depositados na Biblioteca
Nacional de Paris, apresenta uma visão de conjunto, coerente e
minuciosa, do pensamento político do Revel com o pano de fundo dos
grandes debates, crise nacionais e internacionais, conflitos
ideológicos, a Guerra Fria e o desabamento do comunismo ocorridos
durante a vida do pensador francês: Jean-François Revel. La Démocratie
Libérale à l’Épreuve du XXe Siècle.
Em
seu intenso rastreamento, Philippe Boulanger mostra, acima de tudo, que
as ideias de Revel sobre o fazer político se forjaram sempre a partir
de um cotejo constante entre pensamento e realidade, confrontando sem
descanso os fatos comprováveis da história vivida e as interpretações
ideológicas, adaptando estas àquela, e não acomodando os fatos a ideias
ou esquemas abstratos preconcebidos, como fazia o marxismo. Isso foi
distanciando cada vez mais Revel de um tipo de socialismo que, a seu
ver, distorcia a história para justificar uma ideologia que uma leitura
objetiva da realidade desmentia. Mas, e sobre isto Boulanger apresenta
provas incontrovertíveis, Revel sustentou durante boa parte da sua vida
que o verdadeiro socialismo era inseparável do liberalismo, e que o
pecado capital do socialismo francês era ter se esquecido disso,
submetendo-se ao marxismo e servindo de reboque para o comunismo. Daí
uma das suas teses mais atrevidas: que o comunismo era o maior obstáculo
que o socialismo francês tinha para reformar profundamente a França e
fazer dela uma sociedade mais livre e ao mesmo tempo mais justa. E daí,
também, sua simpatia pelo socialismo sueco e pela social-democracia
alemã, que, diferentemente do socialismo francês, nunca tiveram
complexos de inferioridade frente ao comunismo na hora de defender a
democracia “burguesa”.
Reivindicar
o liberalismo na França, na época em que Jean-François Revel e Raymond
Aron o fizeram, era não só ir contra a corrente, mas também se indispor
ao mesmo tempo com a esquerda e com uma direita conservadora, populista e
autoritária representada pela Quinta República e pelo Governo do
general De Gaulle. Mas essa orfandade nunca intimidou Revel, polemista e
panfletário ao estilo de Voltaire, que ao longo de toda a sua vida opôs
aos estereótipos em que queriam enquadrá-lo lapidares respostas que,
por um lado, expunham a natureza caudilhista e antidemocrática do regime
imposto por De Gaulle, e, por outro, denunciavam a dependência do
comunismo francês em relação à União Soviética e a cegueira ou covardia
de seus “companheiros de viagem” socialistas e progressistas que se
negavam a reconhecer a existência do Gulag, apesar dos deprimentes
testemunhos que chegavam ao Ocidente pelos dissidentes, o fracasso
calamitoso da economia dirigida e estatizada da União Soviética e da
China Popular em elevar os níveis de vida da população e o
desaparecimento de todas as liberdades que a chamada ditadura do
proletariado e a abolição da propriedade privada acarretavam.
O
livro de Boulanger mostra também que o liberalismo de Revel não
incorria na perversão economicista de certos economistas supostamente
liberais, maus aprendizes de Hayek, logaritmos viventes para quem o
livre mercado é a panaceia que resolve todos os problemas sociais. Revel
foi, nisto, contundente: para um liberal, a liberdade política e a
liberdade econômica são indivisíveis, uma garante a coexistência
pacífica e os direitos humanos, e a outra traz desenvolvimento
econômico, gera emprego e respeita a soberania individual. Ao mesmo
tempo, uma sociedade não alcança nunca a plena liberdade sem uma rica
vida cultural, em que possam se manifestar sem pressões nem dirigismos
oficiais a criatividade artística e intelectual e o espírito crítico.
Para isso é indispensável uma educação de alto nível, privada e pública,
pois ela cria a igualdade de oportunidades, essencial para que uma
sociedade livre seja também uma sociedade equitativa, digna e
genuinamente democrática.
Revel
sempre foi um inimigo declarado de toda forma de nacionalismo, um
promotor de um governo supranacional, um defensor de uma Europa unida e
aberta ao resto do mundo, um defensor da lenta dissolução das fronteiras
através dos intercâmbios comerciais e culturais, e alguém a quem seu
espírito curioso levou a se interessar por outras culturas, outras
línguas – dominava cinco –, e um dos melhores conhecedores da realidade
da América Latina, sobre a qual escreveu iluminadores ensaios, refutando
seus ingênuos compatriotas que se empenhavam em ver como um modelo de
revolução democrática o castrismo e as fantasias guevaristas de colocar o
mundo em erupção criando “dois, três Vietnãs”.
Embora
a política o apaixonasse, estava convencido de que ela não devia
absorver toda uma vida. Em todo caso, ela não esgotava sua inquietação
múltipla, sua paixão por conhecer, o que fazia dele um herdeiro direto
da grande tradição humanista ocidental. Escreveu uma história da
filosofia, centrada sobretudo nos pensadores gregos e latinos e nos
renascentistas, para leitores profanos, a qual se lê com o interesse de
um livro de aventuras, ensaios sutis e polêmicos sobre Proust, sobre
Descartes e, sobre gastronomia, Un Festin en Paroles, no qual mostrou,
sem embaraço algum, além de sua ironia e bom humor, sua paixão pela boa
mesa e as boas bebidas.
Precisamos
agradecer a Philippe Boulanger pelo enorme trabalho que deve ter
significado para ele escrever esta formidável biografia intelectual e
política de Jean-François Revel. Foi um ato de justiça com um dos
pensadores mais agudos e atuais, um dos melhores continuadores de
Tocqueville e, ao mesmo tempo, um dos mais injustamente marginalizados
em um país onde, apesar de todas as frustrações e fracassos acarretados
por se aferrar à tradição anacrônica do Estado forte, grande e
intervencionista, compartilhada tanto pela esquerda quanto pela direita,
a lição de Revel foi ignorada e negada. Já não será possível continuar a
ignorá-lo depois deste admirável reconhecimento de Philippe Boulanger,
que demonstrou a riqueza, profundidade e atualidade de suas ideias.
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