Com um presidente de esquerda e um congresso de direita, o passado se torna motivo de discussões que refletem as contradições do presente. Vilma Gryzinski:
Cinquenta
anos depois do golpe militar de 11 de setembro de 1973, deveria
predominar no Chile um amplo consenso sobre as vantagens da democracia,
das decisões consensuais e do respeito pelas minorias e, obviamente,
pelos direitos humanos.
Esse
consenso valioso, que permitiu a redemocratização pacífica do país,
hoje dá lugar a uma discussão azeda sobre quem foi responsável pela
derrocada democrática de 1973. Em grande parte, isso é resultado de uma
situação atípica do Chile: depois de eleger, surpreendentemente, um
presidente de extrema esquerda, Gabriel Boric,
a maioria dos chilenos derrubou um novo e radical projeto de
constituição e elegeu um congresso de direita para fazer outra reforma.
Por
causa disso, o debate ficou mais azedo e confrontacional. Inclusive
sobre o golpe. Em vez de um documento comum em defesa da democracia, os
três partidos de direita pura — sim, existe isso no Chile, e ninguém
espera cargos no governo para aderir — não aceitaram o chamado
Compromisso de Santiago e lançaram seu próprio documento. Nem a
intervenção do ex-presidente Sebastián Piñera em favor do consenso,
bastante moderado, proposto por Boric adiantou.
O
documento da direita também é equilibrado, mas evoca um passado que a
esquerda quer fazer de conta que não existe, incluindo os graves abusos
cometidos pelo presidente Salvador Allende em seu projeto nada menos que
revolucionário.
“A
vivência que cada pessoa experimentou e suas severas consequências nos
obrigam a refletir sobre essas cinco décadas, tomar consciência das
aprendizagens e dos erros cometidos por todos os setores, e olhar para a
futuro”, diz o documento. Em outro trecho, condena “toda expressão,
movimento ou conclamação que se valha da violência ou do terrorismo para
a promoção de suas ideias ou a conquista de seus objetivos”.
São,
obviamente, referências a abusos praticados pela esquerda numa época de
extrema radicalização, com grupos armados autodenominados
revolucionários já agindo mesmo durante o governo Allende e atos
hediondos como o assassinato de proprietários rurais.
Outra
reação da direita que não quer ver a glorificação oficial do presidente
que se suicidou no Palácio de la Moneda, sob bombardeio das Forças
Armadas, foi ler na Câmara de Deputados um documento datado de poucos
dias antes do golpe em que Allende era acusado de grave quebra da ordem
constitucional.
O
fato de que muitos chilenos apoiaram o golpe — e até hoje, nada menos
que 36% achem que houve motivos para a intervenção ditatorial — ainda é
um tabu para a esquerda. Cinquenta anos depois, o país ainda é dividido,
embora uma ampla maioria condene o bárbaro método de prisões em massa,
torturas e execuções praticado sistematicamente pelo regime militar.
A
falta de autocrítica da esquerda também voltou a ser assunto na
Argentina, principalmente depois que a candidata a vice na chapa do
ultralibertário Javier Milei, Victoria Villaruel, convocou um ato na
Assembleia Nacional em memória das “vítimas do terrorismo” — ou seja, as
feitas pelas organizações armadas de esquerda.
Dizer
que houve abusos hediondos dos dois lados, embora os detentores do
poder do estado tenham responsabilidades redobradas, provoca surtos
irracionais nos setores para os quais a Argentina se divide entre os
bons e os maus. Victoria Villaruel, que é filha de militar, despertou
manifestações de protesto com o ato e com suas declarações sobre a
presidente das Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto.
“A
verdade é que Carlotto tem sido uma personagem bastante sinistra para
nosso país porque, com este semblante de vovó boazinha, justificou o
terrorismo”, disse ela. “Faz política desde sempre e tem a família toda
empregada pelo Estado”
A
filha de Estella, Laura, era militante dos Montoneros, foi presa,
torturada e morta. Estava grávida e os torturadores esperaram a criança
nascer. O neto, dado a uma família favorável ao regime, foi identificado
por iniciativa própria em 2014.
Histórias
assim deveriam fazer todos nós pensarmos “nunca mais” — tanto para as
monstruosidades praticadas nos porões das ditaduras quanto para grupos
armados como os Montoneros, que mataram, sequestraram, explodiram e
executaram, inclusive quem não tinha nada a ver com o regime, porque
achavam que agiam em nome do Bem e tudo era justificado.
O
passado ainda assombra países como o Chile e a Argentina, onde a
repressão foi infinitamente maior do que no Brasil. Propor nuances,
conhecimento dos fatos e distanciamento histórico perturba quem se acha
portador da verdade e da superioridade moral — de qualquer lado que
seja.
Gabriel
Boric prometeu e está cumprindo lançar um plano nacional para buscar os
1 162 mortos durante a ditadura cujos corpos não foram recuperados. É
justo fazer essa busca. Mas é inevitável que reabra feridas.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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