E se o caixão vier da China e custar mais de 50 dólares, dá-lhe 92 por cento de taxação. A crônica de Orlando Tosetto para a revista Crusoé:
O
amigo conhece o ditado: de inevitável, neste mundo, só a morte e os
impostos. Como todos os ditados, é meia-verdade. Porque a morte não foi
inevitável para todos: dela escaparam Enoque, o profeta Elias, a maioria
dos vampiros e todos os membros da Academia Brasileira de Letras. Já
quanto aos impostos, bom, aí sim: não se conhece o nome de ninguém que
deles tenha se livrado (e quem conseguiu, se existiu, não fez propaganda
do fato). Ora, e com tudo isso, os sensatos ainda preferem os impostos à
morte. Não sei até quando.
Não
falo da reforma, não. Pego o exemplo da família. Minha tia e minhas
primas têm o hábito de comprar coisas na China – não indo lá,
evidentemente, mas sim pelo intermédio ou atravessamento dessas lojas de
internet que vendem praticamente de tudo, de pavio para vela aromática
até ração para girafa albina. Formando no pelotão dos remediados, as
compras delas se enquadram no grande padrão nacional da baixa renda:
tudo abaixo de 50 dólares, talvez até abaixo de 40, se é que não abaixo
de 30 ou 20. Mas, enfim, houve lá uma vez ou outra, rara vez ou outra,
em que a conta delas bateu em, digamos, 50 dólares e cinquenta cents, ou
50 dólares e sessenta e sete cents, por aí. Cinquenta dólares, sabem
todos os que têm negócios com as lojas online do Catai, é o limite para
comprar de fora sem pagar imposto adicional.
Até
quase ontem mesmo, esses cents quebrados passavam batidos. Mas agora,
como já andaram anunciando por aí as Lojas Aladim Ponto Com, não vão
mais passar: estourou o limite das cinquenta doletas, tome 92% de
taxação em cima (que é o que o governo brasileiro, esse fofo infalível,
entendeu que deve ser cobrado de quem estoura o limite, sob o nome
neutro de Remessa Conforme). Quer dizer: os 50 dólares e sessenta e sete
cents se transformarão em 97 dólares e vinte e nove cents, se é que
minha formação humanitária – sou de humanas, percebe? – não me fez errar
nas contas. O fluxo de pacotes chineses vai cair drasticamente, senão
na casa delas, onde elas sambam miudinho para se aviar, ao menos nas
casas dos milionários que compram dois ou três dólares a mais.
Ora,
é claro que a gente sabe – eu, pelo menos, sei – que é preciso pagar
alguma coisa ao governo em troca dos serviços maravilhosos e das
instituições impolutas e eficientes que ele, paizão, fica aí nos
prodigalizando de graça. É até questão de justiça: como é que nosso
presidentíssimo conseguiria ir nos abrilhantar, sei lá, no Paraguai se a
gente não lhe pagasse o querosene do avião? Como é que quinhentos e
treze deputados federais continuariam a sorrir belamente se a gente não
lhes provesse o dentifrício? Como é que oitenta e um senadores
apareceriam ante o cosmos tão bem vestidos se a gente lhes não
subvencionasse os panos? E como é que os poderes, olha, os poderes!,
poderiam continuar sendo tão poderosamente poderosos se a gente não lhes
desse aquela fortalecida no orçamento?
Repito: questão de justiça.
E,
mesmo assim, prevejo dias sombrios em que vai haver gente preferindo a
morte aos impostos. Vão achar, talvez, que morrer por menos de 50
dólares livra o enterro de taxação adicional. Isso, claro, caso o caixão
venha da China; o caixão nacional, creio, só paga os impostos daqui
mesmo.
* * *
Vi
também que o jamais assaz louvado senhor presidente andou dizendo por
aí que “a sociedade não precisa saber como vota um ministro da Suprema
Corte”. A frase causou sensação, e parece que até algum mal-estar, até
mesmo entre gente que só tem visto maravilhas na administração atual.
Não entendi bem por que o sobressalto: a história mostra que as pessoas
que compartilham as inclinações ideológicas do excelso mandatário têm
mesmo essa ideia de que quanto menos se conta à sociedade, mais feliz
ela fica, e que, portanto, é de bom aviso exercer um certo controle da
informação que chega até ela. Daí as conversas de regulação da mídia e o
combate heroico às fake news, por exemplo.
Da
minha parte, mesmo reconhecendo que, respaldada pelo olhar puro e pela
voz aveludada e sincera do mais imaculado dos homens, a ideia se torna
mesmo quase irresistível, ouso formar com os que acham que Sua
Majestade, opa, perdão, Sua Excelência, ao menos neste caso, se
equivoca. Não é que a sociedade não precise saber como vota a Suprema
Corte: é que tanto faz.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário