Mudamos de vocabulário. Saem as reformas, entra o gasto público. Fernando Schüler para a revista Veja:
“Ser
rico não é pecado”, escreveu João Camargo, do Grupo Esfera, em um
artigo, dias atrás, que causou certo frisson na internet. Talvez sem
querer, ele tocou em um tabu brasileiro. Todo mundo se lembra de Tom
Jobim dizendo que “no Brasil, sucesso é ofensa pessoal”. A frase é
ótima, mas talvez seja apenas uma meia verdade. O que somos é um país
ranzinza. Metade acha o Neymar um horror porque apoiou o Bolsonaro;
a outra metade acha o mesmo do Chico Buarque, pela razão inversa. Uma
coisa me parece inegável: temos um problema com o sucesso econômico. E
não há coisa que desperte maior onda de xingamentos, no mundo da virtude
fake, na internet, do que defender os mais ricos. Não há pecado nenhum
em ser um rico no Brasil. Você passa a semana na Faria Lima e o fim de
semana na Fazenda Boa Vista, e ninguém vai lhe incomodar. O que você não
pode é elogiar. Tentar passar essa ideia absurda de que o
“empreendedor”, que “inova”, “cria riqueza e empregos”, contribui para o
desenvolvimento do país. Isso aí passa de qualquer limite. Foi um pouco
do que o João experimentou com seu artigo. E confesso achar ótimo que
alguém se arrisque a dizer alguma coisa fora do script.
O
ponto-chave desse debate gira em torno da ideia algo difusa de que “os
ricos devem pagar a conta”. Sob certo aspecto, é uma ideia óbvia. O
sistema tributário deve ser progressivo, não parece haver dúvidas sobre
isso. O problema é que há algo que se perde nessa conversa e que também é
perfeitamente óbvio: que, em vez de focar na ideia obsessiva de
“aumentar impostos”, deveríamos discutir antes o custo e a eficiência do
Estado. Ainda agora, o governo envia para o Congresso um projeto de
Orçamento prevendo zerar o déficit, no ano que vem, com um pequeno
detalhe: projeta 168 bilhões de reais em novas receitas sem um mísero
aceno de corte de despesas, reforma ou ajuste estrutural na máquina
pública.
O
que está em jogo, no fundo, é um debate sobre como conduzir o país.
Debate que empurramos para debaixo do tapete na disputa eleitoral. Para
quem gosta de estudar essas coisas, sugiro a leitura de um livro dos
economistas Alberto Alesina, Carlos Favero e Francesco Giavazzi, chamado
Austeridade. Eles analisaram processos de ajuste fiscal feitos ao longo
de mais de quatro décadas, no âmbito da OCDE, e chegaram a uma
conclusão à qual deveríamos prestar atenção: políticas de ajuste feitas à
base de aumento de impostos “têm sido amplamente recessivas, do curto
para o médio prazo (três a quatro anos à frente)”, além de aumentar o
endividamento; ajustes pautados pelo corte estrutural da despesa
pública, em condições adequadas, mostraram exatamente o efeito
contrário. Aumentar impostos tende a ser um remédio efêmero. Induz o
país a empurrar com a barriga as reformas que precisa fazer, não mexe
com o crescimento da máquina estatal, sua despesa orgânica, direitos
adquiridos, privilégios e ineficiências. E gera um problema de
confiança. Não atacando o problema estrutural, contrata-se a necessidade
de um novo ajuste, a um custo eventualmente ainda maior. Em boa medida,
foi o que o Brasil viveu na grande crise de 2015 e 2016, com a qual,
diga-se de passagem, aprendemos muito pouco.
O
interessante, no caso brasileiro, é que não teríamos o menor problema
em cortar despesas perfeitamente inúteis da máquina estatal. Leio que o
Congresso quer 5,5 bilhões de reais para torrar na campanha do ano que
vem, no fundão eleitoral. É só um exemplo. Que tal fazer o que o
Congresso mesmo decidiu, na PEC Emergencial, que é reduzir os incentivos
fiscais a 2% do PIB, menos da metade do que existe hoje? Ou quem sabe
cortar todos os salários do funcionalismo acima do teto constitucional? O
CLP fala em 25 300 pessoas ganhando acima de 41 600 reais, em um país
em que 90% das pessoas ganham menos de 3 500 reais. Quem sabe também
revisamos o oceano de emendas parlamentares, orçadas em 37 bilhões de
reais, para 2024, que faz o Brasil ser um campeão global nesse tipo de
dispersão orçamentária. Só para provocar um pouco, por que não ensaiamos
uma “democracia sueca”? Algo do tipo: em vez de um chefe de poder ir
102 vezes de jatinho para casa, no fim de semana, vai em voo de
carreira. Ou, quem sabe, reduzir à metade, de 25 para doze ou treze, o
número de assessores por deputado? Um dia visitei o Parlamento sueco e
perguntei quantos assessores havia lá para cada parlamentar. “Perto de
um”, me respondeu uma deputada. Lembro que saí pelas ruas frias de
Estocolmo pensando que realmente temos um problema.
O
ponto é que o Brasil tem uma enorme oportunidade. Dado nosso incrível
volume de desperdício de dinheiro público, podemos produzir um ajuste
estrutural no gasto público sem cortar rigorosamente nada que seja
efetivamente importante para o país. Na reforma da Previdência
instituímos uma idade mínima para as aposentadorias. Alguém acha que era
importante que as pessoas se aposentassem antes dos 50 anos? De novo, é
só um exemplo. Não há bala de prata. Nosso destino é enfrentar o que o
economista Alfred Kahn chamava de “tirania das pequenas decisões”. Cada
ineficiência removida não vai resolver, isoladamente, nosso problema
estrutural. Seu custo político será alto e seu benefício, relativamente
pequeno. No conjunto, porém, as reformas apontam um caminho. Alfred Kahn
gostava de citar o exemplo da ferrovia que ligava a cidade de Ithaca a
Nova York. Nos dias difíceis do inverno, a ferrovia era a única opção
para sair ou chegar à cidade. Ao longo do ano, porém, a maioria optava
pelo transporte aéreo ou rodoviário. O resultado é que a ferrovia morreu
à míngua. Ela quebrou não porque as pessoas quisessem que isso
acontecesse, mas porque o custo de cada pequena decisão individual para
que ela permanecesse funcionando era muito alto. É a mesmíssima coisa
com as decisões que precisamos tomar. Aprovar aqueles itens da reforma
administrativa? Terminar com as “licenças-prêmio”, com as férias de
sessenta dias? Os salários fora do teto? As “progressões por tempo de
serviço”? Avaliar desempenho dos servidores? Nada disso resolve o
problema, e a cada uma dessas decisões haverá uma enorme confusão. O
ponto é o que é que precisa ser feito. É nosso caminho para Ithaca. O
caminho seguro, feito à base de infinitas pequenas decisões, e mesmo por
isso o mais difícil de trilhar.
O
Brasil tem sido um país incerto. Nos anos 90, fizemos o Plano Real, as
privatizações, as agências reguladoras, as OSs, a lei de
responsabilidade fiscal. Depois de 2016 ensaiamos um novo ciclo
reformista com o teto de gastos, a reforma trabalhista, a da
Previdência, a independência do Banco Central,
o marco do saneamento. Agora mudamos de vocabulário. Saem de cena as
reformas, entra o gasto público. E com ele a demanda por mais impostos.
Talvez seja nosso DNA. País sem convicção modernizadora, sem apetite
para perseverar em escolhas difíceis que, lá no fundo, todos sabem que
precisamos fazer.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário