BLOG ORLANDO TAMBODI
Quanto custará em tédio, aborrecimento e depressão a amputação ilusória da tragédia que revela a verdade do mundo tal qual ele é, sempre foi e sempre será? Nuno Lebreiro para o Observador:
Talvez
para surpresa de alguns mais deslumbrados, a vida moderna não
representa propriamente uma manifestação sofisticada de algum nobre
ideal, ou virtude, consubstanciada numa experiência mais aprofundada,
fecunda, escalpelizada do mundo. Pelo contrário, a existir um ideal que
norteie a modernidade esse será a afirmação do ideal da vida banal.
Hoje, não se espera do homem contemporâneo que se transcenda rumo ao
martírio ou à santidade, nem sequer, para sermos justos, que respalde um
conjunto particular de virtudes que, de forma harmoniosa, manifestem
uma particularmente complexa e difícil tradução da vida boa, um
conceito, aliás, maioritariamente interpretado pelo sentido hodierno que
o termo “bom” ganhou — agradável, prazenteiro, saboroso —, ao invés do
sentido antigo, clássico, onde o bom, a par do justo, representava a
pureza do Bem, um ideal que, como Platão explicava, “apenas no limite do
cognoscível” se poderia almejar vislumbrar. Esse periclitante “por-se
em bicos dos pés” por parte do Homem na ânsia de se ultrapassar a si
mesmo, o ancestral ideal existencial, acabou — tirando, talvez, na
competição, normalmente atlética, transmitida como entretenimento em
câmara lenta pela TV —, dando lugar ao conforto que o sofá almofadado do
IKEA veio trazer para a maioria da população. Bem alimentado, o
indivíduo moderno colhe hoje os frutos do engenho tecnológico
resfastelado em arranha-céus feitos de betão armado, servido por
elevador, uber eats e demais take-away, muito longe já das bestas do
mundo animal primitivo, isto enquanto espreita, em directo, a tragédia
do mundo que criou lá longe, do outro lado dos ecrãs azulados dos
telemóveis, iPad’s e televisores.
A
vida boa, aquela à qual o homem moderno aspira, não deixa de ser
idealizada, é certo, mas não representa hoje em dia qualquer tipo de
evocação do transcendente, nem sequer de um quadro de valores
particulares, menos ainda de um especial exercício de virtuosa acção
humana que, puxando os limites, rumo ao Cosmos, sonhe a elevação humana
face à sua condição existencial inicial. Muito pelo contrário, a
transformação, a existir, será apenas técnica e material; tal como a
afirmação da vida normal como sendo a boa vida exalta, não a
transcendência, mas sim a materialidade do mundo, hoje reduzido à
conveniência, segurança e facilidade que devem marcar um quotidiano
assente em rotina e agradável repetição. Deste modo, longe dos mitos
fundacionais, dos relatos do heroísmo ancestral na criação do mundo, o
homem moderno assume-se como o herói da normalidade, aquele que desfruta
hedonisticamente do mundo como contrapartida pelo sucesso que a moderna
tecnologia, sua invenção, lhe veio garantir. O seu poder não vem,
portanto, da sua força individual, daquilo que enquanto indivíduo faz,
ou do que poderia fazer; pelo contrário, e por paradoxal ausência,
deriva da sua capacidade, única na história do mundo, para se eximir de
sequer ter que fazer o que quer que seja. Onde, no mundo antigo, a
realidade era dura e adversa, sendo, precisamente, da dificuldade dessa
luta ancestral contra o caos que se aferia o heroísmo humano, passou-se
hoje para um mundo novo onde o valor da modernidade reside na alegada
transcendência face a essa anterior condição existencial, ou seja, na
promessa de ausência de luta, conflito ou tragédia. Assim sendo, a
grande “virtude” do homem moderno — uma virtude colectiva, partilhada,
existencial, que o orienta necessariamente para o colectivo — reside no
facto de, ao contrário dos seus antepassados, não enquanto indivíduo,
mas enquanto espécie, crer ter conquistado o “direito” a não ter que
fazer grande coisa, salvo, claro, tratar de garantir o básico, ou seja, a
tal vida normal.
O
mundo político, naturalmente, seguindo fielmente a maioria que garante a
eleição, acompanhou a moda, reduzindo a antiga realidade de desígnios,
causas e princípios a um linguarajar repetitivo, cacofónico, de
pormenorizada e aborrecida estatística doméstica que afere o estado da
Situação medindo, pressurosamente, entre outras coisas, o consumo per
capita de electrodomésticos, automóveis ou aparelhos de telecomunicação.
Ao mesmo tempo, afirmando o valor supremo da vida normal, espera-se
erradicar toda e qualquer dificuldade, ou sequer angústia, por forma a
garantir o direito inalienável ao pleno usufruto da normalidade humana —
que de tão “normal” deverá ser igual para todos. Daí, nasce também o
conceito do “safe space”, aquela área do mundo onde o humano moderno se
sente completamente livre para exercer de forma completa e desimpedida a
sua particular versão da normalidade — ganhando esta aqui o seu
significado máximo como o arauto da auto-expressão subjectiva no mundo,
uma manifestação banal tão vazia de conteúdo real na sua pretensa
individualidade quanto é colectivamente oferecida, garantida mesmo, a
todos, por igual, bastando para essa “conquista” ser-se eficaz na arte
da birra, da lamúria, do queixume ou da histérica indignação.
No
entanto, e apesar de quase despercebida, esta componente da revolução
moderna é avassaladora na medida em que é a própria valoração do Homem
perante o mundo que foi invertida: onde antes era das dificuldades
particulares que se mediam os sucessos necessariamente individuais de
cada um, hoje o sucesso implementa-se garantindo que não existem
dificuldades individuais algumas, algo que se verifica transversalmente
na sociedade, invariavelmente acoplada com a progressiva substituição do
esforço individual pelo mérito colectivo — assim justificando o enorme
paradoxo dos dias de hoje que vê as sociedades mais liberais do Ocidente
culminarem naquelas que são igualmente as menos livres.
Assim
também é na escola, por exemplo, onde o chumbo é já tão anacrónico
quanto a angústia criada pela incapacidade de resolver um problema de
trigonometria. Mas nem de outro modo poderia ser, pois que, em boa
verdade, a escola de hoje não está orientada para gerar sumidades
capazes de virtuosa excelência matemática, uma vez que, lá está, tal
coisa não seria uma afirmação de normalidade. Pelo contrário,
normalidade, na realidade, implica nivelar por baixo — ou seja,
banalizar — por onde todos podem ser normais, onde todos se podem
exprimir em igual e fraterna normalidade, nunca por cima, onde apenas o
simples facto de alguém alcançar o que poucos conseguem alcançar acaba
por revelar a desigual anormalidade que uma vida humana orientada para a
excelência, por definição, significaria.
Na
universidade, o exemplo é ainda mais flagrante: onde a dificuldade do
acesso e do triunfo antes revelava a medida do sucesso, sempre do
próprio, individual, tanto maior quanto maiores as dificuldades
enfrentadas, hoje o sucesso mede-se pelo facto de todos terem acesso e
de vermos toda uma geração “encartada” — “a mais preparada de sempre” —,
ainda que essa preparação seja em inutilidades, ou apenas no papel.
Ainda assim, também aqui não apenas o sucesso é de todos, logo coletivo,
como se desvaloriza o individual na medida em que todos o conseguem
fazer, incluindo os loucos e os histéricos — a banalização,
inevitavelmente, revela-se sempre como sendo a outra face da moeda da
afirmação da normalidade. Mas, tomem-se outros exemplos, como nas artes
onde nos últimos anos a quimera da auto-expressão subsidiada, garantida,
substituiu o outrora imortal grito humano pela excelência por um charco
de lixo ininteligível, quando não simplesmente animalesco, mundano,
porco em muitas circunstâncias, ao qual ninguém liga salvo os próprios,
sempre incapaz de inspirar seja quem for. Ou, noutro campo, na
arquitectura, com o triunfo máximo do funcionalismo onde a normalidade
se revela pela geometria repetitiva dos caixotes funcionais, do
minimialismo, branco, asséptico, reflectindo ainda hoje a idealização,
já démodé, de Kubrick, em 1968, sobre o que seria o ano 2001.
Também
no campo dos valores o mesmo se passa com a crescente subjugação de
tudo, incluindo a vida, face ao expediente e ao interesse banal do
momento. Aqui veja-se como se transformou o aborto numa questão de
conveniência económica doméstica que decide a vida e a morte de
terceiros sem qualquer enfoque no valor da vida gerada, ou potencial,
mas muito mais no nível da funcionalidade imediata, prática, material;
tal como a eutanásia, repare-se, glorifica também ela a vida normal, sem
qualquer sofrimento, pois que este, sendo trágico, logo não-moderno,
não deverá ter lugar na vida banal, significando também que mais vale
morrer por vontade própria, no controlo do “safe space”, do que
enfrentar a dor, a angústia e o natural sofrimento do mundo. Isto,
claro, enquanto o Estado, progressivamente, e em nome do ideal da vida
normal, acaba chamado para decidir sobre a vida e a morte das pessoas — o
Estado que salva, o Estado que mata, tudo rápido, tudo indolor, tudo
funcional, tudo normal.
O
prático, o seguro, o confortável, tudo variantes da afirmação da vida
normal, eis a verdadeira expressão máxima do materialismo moderno
progressista: o ideal assente no pressuposto de que a vida realiza-se
materialmente pela capacidade de evitar a adversidade, seja esta uma
divisão arquitectónica menos ampla, uma prova académica mais difícil, um
novo serviço menos verificado, uma polémica social qualquer que crie
angústia, ansiedade ou simples ofensa, assim é o mundo moderno —
ridículo, absurdo, tristemente cobarde. Transversalmente, a afirmação da
banalidade flui ora por todos os componentes políticos, desde os
conservadores preocupados com a economia doméstica, aos liberais
obcecados com o “safe space” dos direitos individuais, culminando com os
marxistas e seus sucedâneos que, a cada novo escândalo e indignação,
aproveitam para vender mais e mais Estado. Hoje, a afirmação da
banalidade, coerente e pleonasticamente, tornou-se ela própria banal e
hegemónica, tudo arrasando à passagem da vaga estandardizadora da
normalidade repetitiva, imitadora, histérica na exigência conformadora —
e enjoativa de tanta falta de originalidade.
No
entanto, por trás da fanfarra ufana e de toda a mise en scène, a
modernidade apenas promete uma utopia que, no deslumbre brilhante da
abundância material, mais não visa que substituir o ideal da
transcendência espiritual pelo materialismo puro e duro. No primeiro,
próprio do mundo antigo, a natureza trágica do mundo era aceite como uma
inevitabilidade cujo enfrentar conferia valor, sentido e significado à
vida humana; no segundo, imagina-se agora um mundo novo onde a tragédia,
numa extrapolação abusiva do paraíso Cristão para o mundo terreno do
aqui e agora, é simplesmente abolida como algo social e politicamente
inaceitável.
A
questão que sobra será até que ponto este desígnio da modernidade, hoje
cada vez mais reflectido num optimismo progressista que não encontra
barreiras nem limites, será concretizável. Devemos imaginar Sisifo
feliz, escreveu Camus nas linhas finais do seu Mito, mas será mesmo que
Sisifo seria mais feliz se tivesse um robot telecomandado para empurrar a
pedra montanha acima por ele? Ou se, por força de algum instrumento de
levitação electromagnética, conseguisse Sisifo perpetuamente empoleirar a
imensa pedra no topo, resolvendo de facto a sua situação, e mudando-se
para uma cabana no sopé da montanha, com jacuzzi e Netflix, estaria ele
mais satisfeito na sua eternidade? Por outras palavras, quanto custará
em tédio, aborrecimento e depressão a amputação ilusória da tragédia que
revela a verdade do mundo tal qual ele é, sempre foi e sempre será?
A
modernidade progressista e a sua deslumbrada crença na afirmação da
vida normal parece ter esquecido que o Homem desde sempre se mediu pela
forma como enfrentou a tragédia do mundo, não pela cobardia com que se
escondeu dela. A vida com significado, plena de sentido e sensação de
satisfação individual, a pedra de toque da felicidade humana, sempre se
fez enfrentando o mundo, nunca, como hoje, pela exaltação de um modelo
de vida relapso, diletante, ordinário — e vazio —, onde a problemática
no mundo rico e opulento do Ocidente parece ser a de como permanecer
perpetuamente entretido, para não dizer alienado.
O
erro, naturalmente, está na base, no pressuposto materialista de que o
mundo se resolve, ou poderá ainda vir a resolver, materialmente.
Esquecendo o aborrecimento entediante que tal solução materialista
traria consigo, a modernidade e os seus acólitos têm progressivamente
intentado fazer esquecer que o mundo não se limita à sua cambiante
material e alegadamente científica. Não obstante, a verdade intemporal
continua hoje, como sempre, a ser apenas uma: é da relação com o
mistério, com o Cosmos assente no infinito desconhecido, no abismo do
divino, que, espreitando, a medo, com coragem, o Homem sonha servir para
alguma coisa — e é desse sonho trágico que ele se consola na aridez
solitária do mundo material.
A
modernidade ao esquecer isto — e o “isto” é o essencial — corre o risco
de esbanjar em frívola banalidade a melhor oportunidade material que
ocorreu na história da Humanidade para almejar dar um salto, quem sabe
rumo ao Cosmos e às estrelas. Ainda assim, como se isso já não nos
bastasse de trágico, com os seus gritinhos ululantes, os acólitos do
absurdo, em uníssono, que nem autómatos com pilhas, não descansam na sua
incessante e fanática patrulha pela nova moral e os novos costumes,
assim infernizando a vida de todos aqueles que não se deslumbram com os
brinquedos do admirável mundo novo. Haja paciência, no mundo real uma
tragédia nunca vem só.
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