Dizer a verdade não é dizer qualquer coisa que venha à cabeça. Vilma Gryzinski para a edição impressa de Veja:
O
Partido Socialista de Salvador Allende “era mais de esquerda do que o
Partido Comunista” (palavra de um general da KGB). O presidente
intrigava os cubanos por seus hábitos caros e provocou deliberadamente
extremos de radicalização do Chile. Quando tudo deu errado, suicidou-se.
Podem apostar que ninguém vai dizer isso nos cinquenta anos do golpe
militar no Chile. Ao contrário, todos estarão dedicados a acender velas
no altar do martírio de Allende, sem aproveitar para entender como os
dois blocos da Guerra Fria disputaram cada centímetro do território
chileno, tirando todos os truques sujos da caixa de ferramentas. Os
Estados Unidos ganharam, por pouco — e em questão de anos a atuação do
governo Nixon foi vasculhada no Senado americano, propiciando até leis
que proibiam esse tipo de intervenção. Nada nem remotamente parecido
aconteceu em Cuba ou na União Soviética, que perderam o Chile, mas
ganharam a narrativa, ajudados por um regime simplesmente bárbaro e uma
ditadura personalista, ao contrário dos comparativamente legalistas
militares brasileiros que jamais escorregaram para uma figura como a de
Augusto Pinochet.
O
golpe no Chile deixa assim de servir como um dos exemplos mais trágicos
do que acontece quando a radicalização se infiltra e uma parte do país
passa a ver a outra como o inimigo a ser eliminado — sendo plenamente
correspondida. A redemocratização latino-americana abrandou os discursos
e fez ressurgir a procura por consensos, o caminho nada sexy dos
praticantes da conciliação política. O discurso brutalista em que cada
palavra é um punhal à procura da garganta do inimigo ressurgiu nos
últimos anos e envenena até chefes de Estado que deveriam pelo menos
fingir respeito pelos cargos em que se encontram. A ascensão de Javier
Milei na Argentina é exemplo de como os profetas dos palavrões
destruidores confundem “dizer a verdade” com dizer barbaridades. Numa
entrevista a uma rádio colombiana, Milei caprichou: “Que é no fundo um
socialista? É um lixo, um excremento humano que, por não suportar o
brilho de outro ser humano, está disposto a que todos fiquem na
miséria”. O presidente Gustavo Petro, que se considera um gênio do
ex-Twitter, qualificou: “Isto é o que dizia Hitler”. É um exemplo de
como até a sardônica lei de Godwin, aquela segundo a qual tende a 100% a
probabilidade de que em discussões na internet surja uma comparação
envolvendo Hitler ou os nazistas, deixou de ter efeito dissuasivo. Os
partidários de Milei (mileinaristas?) e de Petro acharam o máximo.
“A
obstinação e a convicção exagerada são a prova mais evidente da
estupidez”, dizia Montaigne. “Existe algo mais convicto, resoluto,
desdenhoso, contemplativo, grave e sério do que um asno?”. O fino
Montaigne largou tudo e passou anos trancado na torre do castelo da
família, longe do horror das guerras religiosas que assolaram a França.
Parece incrível que esse conflito grassou nos países mais adiantados do
mundo à época, da mesma forma que soa absurdo o universo tétrico da
tortura e das execuções secretas das ditaduras latino-americanas de
apenas cinquenta anos atrás. Não podemos esquecer como foi custoso sair
disso e como não foram os palavrosos, mas os negociadores que
conseguiram navegar com humildade para o outro lado.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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