BLOG ORLANDO TAMBOSI
Opondo-se à visão universalista de King, a visão iliberal tem moldado a luta contra o racismo nos Estados Unidos. É uma visão que nos encerra em identidades tribais e inibe a possibilidade de diálogo. Patrícia Fernandes para o Observador:
O discurso de Luther King
O
dia 28 de agosto ocupa um lugar central na história dos Estados Unidos:
foi nesse dia, em 1963, que teve lugar a célebre March on Washington
for Freedom and Jobs, que juntou mais de 250 mil pessoas em frente do
Lincoln Memorial com o objetivo de apoiar a legislação de direitos civis
que o Presidente John F. Kennedy procurava aprovar no Congresso.
Esta
mobilização resultou da intensificação da luta dos afroamericanos que,
nos últimos anos, reivindicava o reconhecimento de uma igualdade efetiva
perante a lei e a superação das chamadas leis Jim Crow, que mantinham
nos estados do sul a segregação racial desde o final do século XIX.
Apesar das emendas à Constituição que foram aprovadas após a guerra da
secessão (a 13.ª emenda aboliu a escravatura em 1865; a 14.ª emenda
garantia cidadania e igual proteção da lei a todos aqueles que nasçam ou
sejam naturalizados nos Estados Unidos, incluindo antigos escravos, de
1868; e a 15.ª emenda garantia o direito de voto aos homens negros),
muitos estados do sul mantinham leis que limitavam ou impediam o
exercício do direito de voto dos afroamericanos, permitiam o
funcionamento de escolas segregadas e admitiam a discriminação em função
da raça em hotéis, restauração ou autocarros.
As
leis Jim Crow foram legitimadas pela decisão Plessy v. Ferguson, de
1896, que estabeleceu o princípio “separados mas iguais”, considerando
que tais leis não violavam a constituição norte-americana desde que os
serviços fossem igualmente oferecidos a negros e brancos. Esta cláusula
injusta foi alvo de contínuo protesto judicial, nomeadamente pela maior e
mais antiga organização de direitos civis dos afroamericanos: a NAACP
(National Association for the Advancement of Colored People), criada em
1909. Mas apenas em 1954 a NAAPC pôde reivindicar a sua grande vitória
com a famosa decisão Brown v. Board of Education, na qual o Supremo
Tribunal proibiu a segregação racial nas escolas públicas. Foi um passo
decisivo para o início dos anos de luta pelos direitos civis que duraria
praticamente até ao final dos anos de 1960 com a morte de Martin Luther
King Jr.
Luther
King assumiu protagonismo com o chamado Montgomery Bus Boycott (que
começa com a história lendária de Rosa Parks), protesto que durou mais
de um ano, entre o dia 5 de dezembro de 1955 e o dia 20 de dezembro do
ano seguinte, até finalmente ser decidida a proibição da segregação
racial nos autocarros. O talento oratório de Luther King tornaram-no uma
figura de referência durante aquele protesto, e foi ele que assumiu o
protagonismo na Marcha sobre Washington, quando proferiu aquele que se
tornaria um dos discursos mais importantes da história ocidental: “I have a dream”.
O daltonismo liberal
Apesar
de curto, encontramos em “I have a dream” as principais linhas
orientadoras do pensamento de Martin Luther King, sedimentadas na
tradição evangélica do cristianismo (King era pastor batista) e que o
levou à defesa de um princípio de não violência e da doutrina da
fraternidade e do amor na política. Filosoficamente, King assume-se como
herdeiro dos valores do liberalismo filosófico que orientavam os
Founding Fathers e é nessa medida que exige as consequências últimas e
efetivas daqueles valores:
“Quando
os arquitetos da nossa República escreveram as magníficas palavras da
Constituição e da Declaração de Independência, eles estavam a assinar
uma nota promissória de que todos os americanos seriam herdeiros. Esta
nota era uma promessa de que a todos os homens – sim, tanto negros como
brancos – seriam garantidos os direitos inalienáveis à vida, liberdade e
busca de felicidade. É hoje óbvio que a América está em falta quanto ao
pagamento desta nota promissória no que diz respeito aos seus cidadãos
de cor. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu à
população negra um cheque sem cobertura, um cheque que tem sido
devolvido com a indicação de fundos insuficientes.”
King
não hesita, por isso, em citar as palavras da Declaração de
Independência, que estabelecem os princípios liberais do sonho
norte-americano: “Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas,
que todos os homens são criados iguais”. Em causa estão direitos iguais
perante a lei e as mesmas liberdades e oportunidades para todos os
cidadãos. É nesse sentido que segue aquela que será a frase mais citada do discurso:
“Eu
tenho o sonho de que os meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa
nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo
do seu caráter.”
É
essencial considerar esta argumentação liberal de King, uma vez que
este período de luta social é marcado por uma enorme complexidade,
contando com a mobilização de vários grupos de protesto, desde o
movimento Black Power aos projetos de nacionalismo negro, que defendiam
formas violentas de luta e visões políticas de separatismo racial.
Luther King manteve-se afastado destes movimentos separatistas, apelando
à não-violência e defendendo sempre a possibilidade da criação de um
país pós-racial.
Em
1967, na celebração dos dez anos sobre a criação da Southern Christian
Leadership Conference, Luther King discursa a pensar no futuro: “Where do we go from here?”.
Reconhece as conquistas realizadas na última década, mas aponta que
ainda há muito a fazer, pelo que recorre à lição de Jesus a Nicodemos
para traçar o desafio norte-americano: “a América deve nascer de novo”. E
embora aponte o dedo ao sistema económico, que se traduz em exploração e
condena tantos dos seus cidadãos à pobreza, mantém a mensagem
pós-racial e universalista.
O novo racismo
O
sonho de direitos e oportunidades iguais expresso por King, a partir de
uma tradição universalista cristã, espelhava o espírito liberal que fez
os Estados Unidos acreditarem ser possível tornarem-se uma sociedade
pós-racial, isto é, uma sociedade onde a cor de pele deixasse de ser
relevante, o mesmo é dizer, onde o racismo fosse erradicado ou, pelo
menos, minimizado. Quando Barack Obama foi eleito em 2008, muitos viram
nesse momento a concretização de uma sociedade pós-racial, construída
desde a longa década de luta pelos direitos civis. Finalmente o país
teria conseguido sarar as feridas de um nascimento marcado pela
escravatura; finalmente poderia proclamar, apesar dos problemas ainda
remanescentes, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
Não
é este, porém, o entendimento dos autores e ativistas que, a partir da
teoria crítica da raça, continuam a denunciar um racismo profundo que
marcaria a sociedade norte-americana, sem reconhecer quaisquer melhorias
recentes. Mais do que isso, parecem considerar que as condições estão
ainda piores e que o daltonismo ou cegueira de cor é uma ideologia
racista, e ainda mais perigosa do que o racismo das leis Jim Crow. Por
que razão?
Robin DiAngelo, em Fragilidade Branca, diz-nos que,
“[e]mbora
a ideia de cegueira cromática possa ter começado por ser uma estratégia
bem-intencionada para romper com o racismo, na prática ela serviu para
negar a realidade do racismo e, assim, perpetuá-lo.”
Isso acontece porque, como diz Eduardo Bonilla-Silva, no livro Racismo sem racistas:
“Enquanto
para o racismo Jim Crow a posição social dos negros se devia à sua
inferioridade biológica e moral, o racismo da cegueira de cor evita tais
argumentos simplistas. Em vez disso, os brancos racionalizam o status
contemporâneo das minorias como o produto da dinâmica de mercado, de
fenómenos que ocorrem naturalmente e das limitações culturais imputadas
aos negros.”
“Os
brancos” explicariam então a atual desigualdade racial como resultado
de razões não raciais, menosprezando o papel do racismo na produção
dessas desigualdades – e, assim, a ideologia da cegueira de cor, longe
de ser um comportamento não racista, é na verdade “fundamental para
preservar o privilégio branco”.
Embora
este argumento tenha algum mérito, importa não esquecer o seu
pressuposto identitário: estes autores exigem, na sua argumentação, que
reconheçamos uma determinada identidade (branca ou não branca) e
condicionemos a nossa visão do mundo, dos dados e da experiência a essa
identidade. A consciencialização da identidade branca (“nomear a
branquitude”) é particularmente importante para “os brancos”, uma vez
que estes resistem a compreender que não falam por todos, mas apenas
pelo seu grupo e pelos seus privilégios (é a ilusão liberal da
universalidade). Como diz DiAngelo:
“Dizer
que a branquitude é uma perspetiva a partir da qual as pessoas brancas
olham para si mesmas, para os outros e para a sociedade é dizer que um
aspeto importante da identidade branca é vermo-nos a nós mesmos como
indivíduos, fora da raça ou inconscientes dela – “apenas humanos”. Este
posicionamento vê as pessoas brancas e os seus interesses como centrais
para a humanidade e como representativos dela. Os brancos também
produzem e reforçam as narrativas dominantes da sociedade – como a do
individualismo e a da meritocracia – e usam-nas para explicar as
posições dos outros grupos raciais. Estas narrativas permitem-nos
congratularmo-nos pelo nosso sucesso dentro das instituições da
sociedade e culpar os outros pela sua falta de sucesso.”
Opondo-se
à visão universalista de King, esta visão iliberal tem moldado a luta
contra o racismo nos Estados Unidos e vai chegando à Europa, apesar de
as condições serem aqui substancialmente diferentes. É uma visão que nos
encerra em identidades tribais e inibe a possibilidade de diálogo. E
embora quase sempre reclamem a herança de Luther King, têm na verdade
pouca relação com o seu pensamento. Basta recordar como King termina o discurso de 1967:
“Continuaremos insatisfeitos até ao dia em que ninguém gritará “Poder
branco!”, nem ninguém gritará “Poder negro!”, mas todos falem do poder
de Deus e do poder humano.” Já os novos ativismos remetem-nos para
identidades e para o conflito. Ou como diz Michel Onfray, em Autos-de-Fé:
“Doravante,
o novo horizonte inultrapassável é o da regressão no sentido das hordas
primitivas de que Darwin falava n’A Origem do Homem: lugar às tribos,
às etnias, às raças, ao sangue, às pigmentações.”
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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