A principal função a ser exercida por um ministro de Supremo não parece estar na prioridade do debate: a defesa da Constituição. Fabiano Lana para o Estadão:
Não era assim. Mas de uns anos para cá a escolha de um ministro do Supremo Tribunal Federal
se transformou em um verdadeiro frisson nacional. O que antes eram
discretos, porém ativos, lobbys de classe como, “dessa vez precisamos de
um tributarista”, se transformaram em mais uma bandeira de motivação
nacional, incluindo militantes aguerridos, opiniões apaixonadas e até
mesmo os já onipresentes discursos de ódio sobre qualquer assunto que
anime a coletividade. De pátria de chuteiras viramos a nação de toga, o
que pode significar que estamos mais interessados nos rumos Brasil, ou
sintoma de alguma doença institucional ainda não acuradamente
diagnosticada.
Há
lobbys recentes para que o novo integrante do Supremo seja mulher,
negra, seja de esquerda, ou terrivelmente evangélico. Também conta ser
amigo do presidente de plantão. Alguém com quem o executivo do Palácio
do Planalto possa tomar uma cerveja após uma extenuante jornada de trabalho.
O
curioso é que a principal função a ser exercida por um ministro de
Supremo não parece estar na prioridade do debate: a defesa da
Constituição. Ou seja, alguém que, com o maior grau possível de
objetividade, irá julgar se um ponto qualquer em discórdia está adequado
ou não à Carta Magna. Pelo menos aprendemos assim, desde a escola, que
essa é a atribuição daqueles onze togados que aparecem na televisão.
Mas
o debate de hoje mostra que ninguém mais acredita na objetividade das
leis, muito menos dos juízes. Acredita-se, sim, em valores, ideologia e
luta política. O que se quer é um ministro ou ministra que pense e aja
como um militante e estará lá para defender suas ideias. Não é uma
questão jurídica, ou moral, é de disputa de poder que se trata.
Para
a direita, os ministros do STF querem proteger os seus e estão a
serviço de alguma grande conspiração de viés esquerdista - numa teoria
que você já deve ter ouvido de um tio do churrasco. Para a esquerda,
pelo menos até há pouco, o Judiciário era um braço da burguesia a barrar
a chegada do poder daqueles que vivem no andar de baixo. Agora, para a
esquerda identitária, o Judiciário precisa ser um esquadrão avançado da
proteção de grupos determinados. Aliás, desde quando a composição do
STF, de consequência se tornou causa de nossas desigualdades?
Sociedade muitas vezes enxerga os debates no STF como parte de uma disputa, portando-se como verdadeiros torcedores
A
grande verdade nisso tudo é que a comparação com futebol é verdadeira
no sentido de que virou torcida. Ou, para dizer de modo menos rasteiro,
essa desconfiança geral da tecnicalidade do Judiciário é o triunfo
daquelas teorias pós-modernas de que não existem fatos, apenas
perspectivas sobre fenômenos; ou para usar a desgastada expressão da
moda: narrativa. Logo, invista em histórias, coloque seus amigos nos
lugares de poder certos que sua versão deve preponderar.
Há
parte de responsabilidade dos próprios integrantes do STF nesse estado
de coisas? De fato, nos acostumamos com entrevistas, palestras, presença
em eventos, palanques, recados, bate bocas públicos de integrantes do
Judiciário. Pode ficar a impressão de que gostam de aparecer naquele
sentido do Eclesiastes bíblico de que o que move o humano é a vaidade.
Há também o fato de que muitos dos que foram denunciados, presos,
expostos se tornaram vítimas de “erros judiciais”, o que dá pano para a
manga para suspeita de que juízes se movem por meio dos humores da
opinião pública. Uma dúvida sincera: quer dizer que aqueles bilhões de
reais de desvios revelados pela Lava Jato
com transmissão ao vivo por todas as TVs não existiram? É difícil não
ficar confuso com a enxurrada de informações contraditórias e o
Judiciário tem participação nisso.
Por
outro lado, o STF virou uma espécie de VAR com a decisão final sobre
lances polêmicos, daí a atenção a eles é necessária. Mas acabou aquela
imagem de o juiz ser um senhor taciturno, isolado, que não sabemos sobre
que pensa, nem mesmo o time que torce. Acabou e a Justiça deixou de ser
cega. É desde uma “corte iluminista” ou a “responsável pelos nossos
atrasos”. Nesse contexto que deve ser interpretada a frase de Lula, que
os votos deveriam ser secretos. Aquela história de que todo problema
complexo tem uma solução simples e equivocada?
Uma
razoável filosofia de vida social poderia ser: “quanto menos coisas
forem proibidas, melhor; quanto menos coisas forem obrigatórias,
melhor”. Mas a judicialização provoca um efeito contrário nessa proposta
de organização da sociedade. Um dos corolários de nossa torcida por
colocar juízes de preferência em posições de poder é o desejo por
prisões de agentes políticos que temos repulsa.
Da
mesma forma que parte do Brasil comemorou a prisão de Lula, outra
parcela sonha em ver Bolsonaro atrás das grades (mesmo que,
politicamente, uma prisão tida como política ser um trunfo pessoal no
Brasil e possibilitar reviravoltas na história). Na verdade, também
queremos censura e silêncio de quem pensa diferente e para isso um juiz
bem afinado com o que eu penso seja ótimo para calar meus inimigos reais
e imaginários.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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