O pretexto é proteger o caráter laico do ensino e do estado, mas todo mundo sabe que é o fundamentalismo islâmico que está em disputa. Vilma Gryzinski:
“Quando
se entra numa classe, o ideal é não saber de que religião são os
alunos”. Assim o ministro da Educação, Gabriel Attal, defendeu a
proibição da abaya para as mulheres e do kamis ou djelaba para os
homens, ambos resumidamente túnicas largas e compridas usadas sobre as
roupas para disfarçar os contornos do corpo e seguir o preceito
muçulmano de modéstia no trajar — obviamente uma recomendação sujeita a
múltiplas interpretações.
A abaya segue o caminho do hijab, o lenço ou véu cobrindo toda a cabeça.
Para
parecer que são equânimes em relação a todas as religiões, também é
proibido o uso na sala de aula de cruzes e quipás, o pequeno chapeuzinho
que os judeus religiosos usam como sinal de respeito para não parecer
que nada existe entre eles e Deus.
É
claro que se uma noviça católica, um jovem judeu de cachinhos ou um
estagiário de monge budista com a cabeça raspada e túnica cor de açafrão
fossem com trajes assim à escola não provocariam a mesma reação que
acontece com os muçulmanos militantes.
Pois
essa é a questão básica: o véu na cabeça e a túnica larga são vistos
como sinais não só de rejeição, como de desafio aos valores franceses.
Em suma, são atos políticos, inseridos no grande arco que vai desde
pequenos desafios diários até atrocidades como o assassinato do
professor secundário Samuel Paty, decapitado em 2020 por um jovem
checheno que vivia como asilado na França. O “pecado” do professor foi
mostrar caricaturas do profeta Maomé numa aula sobre liberdade de
expressão. Alunos e pais de alunos foram implicados no ato terrorista.
Ter
uma minoria importante formada por franceses de primeira, segunda e até
terceira geração que detestam o país onde vivem e são influenciados, em
diversos graus, pelo renascimento fundamentalista é um pesadelo para os
franceses originais. Desde intelectuais como o escritor mais famoso da
França, Michel Houellebecq, que escreveu uma distopia sobre a consentida
tomada do poder pelos fundamentalistas, até todas as diferentes
manifestações da ideologia de direita se ocupam de um problema tremendo.
Já são 15% ou até mais os habitantes com origens no Magreb, como se
chamam comumente ou Norte da África, ou na África subsaariana. Muitos,
evidentemente, se integram, trabalham, seguem ou não sua religião e
respeitam as regras do país que os acolheu. O inferno são os outros.
Explosões
de protestos, como os decorrentes da morte de um jovem de origem
argelina que desafiou os policiais que o mandavam parar, só alimentam a
sensação de que a causa já está perdida e grandes camadas da população
de origem norte-africana jamais irão se assimilar e abraçar os valores
que fizeram da França um país excepcional.
Proibir
o uso do hijab ou proscrever a abaya na escola — na rua, obviamente,
têm livre circulação — são apenas sinais do problema — e produto de um
caldo cultural tipicamente francês, forjado na laicidade de um estado
com origens revolucionárias. A época em que instituições laicas eram
usadas para solapar o poder da Igreja Católica já passou há muito tempo.
Hoje, é o Islã fundamentalista que desafia o Estado.
Em
países anglo-saxões, como a Inglaterra ou os Estados Unidos, é quase
inconcebível que o Estado diga o que os cidadãos podem ou não podem
vestir. Na França, até prefeitos de pequenas cidades à beira mar proíbem
o uso do burquíni, o traje de banho inventado para muçulmanas devotas.
Seria
a proibição da abaya o equivalente ideológico, com sinal invertido, da
retomada da linha dura, no Irã, em relação à obrigatoriedade da cabeça
coberta para as mulheres?
É
injusto e errado comparar países democráticos com uma teocracia como a
iraniana, onde muitas jovens foram mortas em protestos contra o uso
obrigatório do véu na cabeça. Na França, as estudantes que quiserem, ou
assim forem pressionadas por seu meio social, podem sair da escola e
cobrir a cabeça e o corpo.
De
forma geral, a população tende a apoiar a “escola laica”. Uma pesquisa
mostrou maioria sólida, inclusive entre eleitores de esquerda, a favor
da proibição (de 60% a 92%, um resultado impressionante). Os políticos,
por sua própria natureza, exploram isso. Gabriel Attal, o novo ministro
da Educação que anunciou a proibição da abaya, é jovem, ambicioso e quer
mostrar serviço. Também é de origem judaica por parte de pai e vive em
união civil com outro homem.
Ninguém fala isso, por motivos óbvios, mas não são atributos que o tornam popular entre muçulmanos religiosos.
O
problema do excesso de legislação é, como sempre, quem define o quê. O
que é uma abaya? Uma camisa largona é oversized ou proibida? E um casaco
modelo saco, ao estilo consagrado por Christian Dior nos anos
cinquenta? Uma pelerine? Um moletom enorme à la Balenciaga?
Com
suas complexas relações étnicas, a França vai criando outros problemas.
Sem resolver os que a levaram a eles. Muito possivelmente porque são
insolúveis.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi

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