O aviador inglês perdeu uma perna quando foi abatido por alemães, casou-se com uma jovem catarinense e está enterrado em Agrolândia. Mas poucos sabem disso, escreve Deonísio da Silva na última edição da revista Oeste:
O
fundador da Newsweek, outrora uma das maiores revistas de informação do
mundo e ainda em circulação, está enterrado em Agrolândia (SC),
localidade de apenas 9.323 habitantes, a 274 quilômetros de
Florianópolis.
Estive
na casa em que ele viveu, visitei o cemitério onde está enterrado,
conversei com os vizinhos e com o irmão de sua esposa, levantei
documentos pertinentes no cartório local, tudo com o fim de pesquisar
esse novo mistério catarinense.
As
minúcias são quase sempre reveladoras do essencial. Nas biografias,
certas ninharias desprezadas pelos autores irritam leitores mais
atentos. Os biógrafos do escritor judeu-austríaco Stefan Zweig, por
exemplo, deram pouca importância ao diabo das pequenas coisas, presente
na vida do casal. Caíram nessa esparrela o inglês Donald Prater e o
brasileiro Alberto Dines, ambos já falecidos. Inconformado, escrevi o
romance Stefan Zweig Deve Morrer, em que são personagens Zweig e sua
esposa, a judia-polonesa Elizabeth Altmann.
Já
se disse que a literatura é a vida secreta das sociedades. Concluí,
depois de minhas pesquisas, sobretudo em Petrópolis (RJ), onde o casal
viveu e morreu, que os dois foram executados por nazistas homiziados nos
inúmeros valhacoutos desta América. O romance já foi publicado também
em Portugal e na Itália.
O
fundador da Newswek, o aviador inglês Thomas John Cardell Martyn,
derrubado pelos alemães na Primeira Guerra Mundial, está enterrado no
Cemitério de Agrolândia (SC). Ele está enterrado ali, mas sua perna
direita, não! Ele a perdeu na queda e usava uma prótese mecânica. A
cineasta catarinense Loli Menezes dirigiu um longa-metragem sobre ele:
Tio Tommy, o Homem que Fundou a News-Week.
A
revista foi batizada com hífen ao nascer, em 1933, tornou-se sem hífen
uma das maiores revistas de informação do mundo e chegou a circular em
132 países, com edições de 3,2 milhões de exemplares. Atualmente, depois
de interromper sua impressão e ficar apenas na internet, pode ser
visitada aqui: https://www.newsweek.com/. Sua mais recente publicação sobre o Brasil, em que cita o presidente Bolsonaro, saiu em 19 de novembro.
A revista foi fundada com hífen. |
Foi
numa temporada no Rio, nos anos 1950, que o fundador da Newsweek
conheceu a catarinense com quem viria a casar-se e morar numa vila
brasileira do Sul do Brasil, depois de viver em grandes metrópoles. Ela
se chamava Irmgard Stahnke e trabalhava de empregada doméstica na casa
de um militar de média patente. Tinha sido indicada por um rapaz de
Agrolândia, que, por sua estatura e excelentes condições de saúde,
servia na guarda presidencial. A capital da República nessa época era
então o Rio de Janeiro.
O
aviador inglês e jornalista era casado nos EUA, tinha acabado de
divorciar-se ou estava se separando, essa situação, ainda cercada de
controvérsias, precisa ser esclarecida com os documentos restantes do
incêndio que deles se fez algum tempo depois de sua morte. O certo é que
Thomas Martyn e Irmgard Stahnke se casaram em São Paulo, em 8 de abril
de 1961. A linda “alemoa” tinha 40 anos; ele, 65.
Thomas Martyn e Irmgard Stahnke. |
Foram
depois de alguns anos morar em Agrolândia, para que, quando o marido
morresse, a esposa tivesse o amparo dos familiares. Não combinaram com a
morte, e a esposa, muito mais jovem, morreu primeiro, em 1973, aos 53
anos, de câncer no útero, segundo a certidão de óbito.
Não
foi bem assim a morte de Irmgard, embora no cartório de Agrolândia (SC)
os documentos atestem que ela morreu por complicações cardíacas
decorrentes de um câncer no útero. Documentos também mentem. Por isso,
desconfiado, voltei a conversar com o irmão dela, o alfaiate Afonso
Stahnke (ele estava com 79 anos, quando o visitei em Agrolândia, em
2015), que me dissera antes ter sua irmã morrido de câncer no ânus,
tendo sofrido muito nas semanas finais de sua existência com um
tratamento à base de cauterizações.
O
marido, que só chamava Irmgard de Mary — o nome alemão não lhe trazia
boas lembranças, afinal ele tinha sido derrubado por alemães, em queda
que lhe levou a perna direita —, pediu ao cunhado, que já tinha revelado
ao funcionário do cartório como morrera a irmã, que ele, “por
respeito”, mudasse a causa da morte. Quando o escrivão pediu que o
marido assinasse o termo, o inglês pediu — e foi atendido — que
constasse como declarante o cunhado.
Destaco
esses detalhes porque escritores escrevem histórias e a História de
outros modos. Para nós, os documentos não são tudo nem são provas em
muitos casos. É preciso aclará-los. E foi por isso que resolvi não só
conversar com as fontes vivas deste extraordinário acontecimento, como
voltei a conversar com o declarante designado pelo cunhado para
esclarecer este último detalhe, que muito diz do excessivo pudor epocal.
Nem sequer no registro da morte a função excretora do corpo pode ser
designada.
Martyn
morreu em 1979, aos 84 anos, também de câncer, uma das maiores causas
de morte na região. Os moradores do lugar resumem: “São esses
inseticidas nas plantações de fumo…”.
Quem
determinou que constasse Mary e não Irmgard na lápide da esposa
brasileira no Cemitério de Agrolândia (SC) foi o marido inglês. Mas por
quê? Este é apenas mais um dos mistérios na vida deste homem invulgar.
Se
são tão imprecisos assuntos como este, com testemunhas auriculares e
oculares de tudo o que aconteceu, quod erat demonstrandum, pois tantos
estão ainda vivos e falando abertamente, como é que se pode atestar a
veracidade de tantas versões, insistentemente repetidas mundo afora,
seja do suposto suicídio de Zweig, seja da devastação da Floresta
Amazônica?
Desconfiai, leitores, desconfiai de tudo, mas não de todos: li, fui a Agrolândia, ouvi e vi. Somente depois é que escrevi.
Deonísio
da Silva é professor e escritor. Seus livros são publicados no Brasil e
em Portugal pelo Grupo Editorial Almedina. Os mais recente são Stefan
Zweig Deve Morrer e De Onde Vêm as Palavras.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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