Nos cinco séculos da morte de D. Manuel I, o que é que nos diz a Aventura e a Grandeza do Portugal e dos portugueses de então. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Gaspar
Correia diz que a 6 de Dezembro de 1521 D. Manuel foi apanhado por
“doença mortall e se achou muito mal o que sempre foy em crescimento”. O
crescimento duraria uma semana, ao fim da qual, a 13 de Dezembro, o rei
Venturoso expirava.
E
expirava, segundo Damião de Góis, rodeado pelas ordens – clero, nobreza
e povo – e consciente de que, quando chegara ao trono, “achara muito
menos rendas do que aquelas que agora deixava em outros muitos reinos e
senhorios”. Rendas que “gastara conquistando os inimigos da nova Santa
Fé ganhando-lhes vilas, castelos e mares e terras até às partes da Índia
e terras do cristianíssimo Preste João”.
Palavras do próprio Rei, juiz em causa própria, mas que não andavam longe da verdade.
Bafejado pela sorte
O
Venturoso foi bafejado pela sorte: desde logo, a Sorte, o Destino, o
que fosse, trouxera-lhe o trono por uma rara convergência de acasos : o
seu antecessor, D. João II, que era seu primo e cunhado, tivera, do
casamento com D. Leonor, um único filho, o infante D. Afonso de
Portugal, que nascera em 18 de Maio de 1475. Esse D. Afonso, segundo as
crónicas, era cheio de perfeições morais e físicas, pensante e
reflectido, caçador e nadador. Casou com 15 anos, como era costume nos
da sua condição, e casou com uma princesa: D. Isabel, filha dos Reis
Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Mas D. Afonso morreu
em 13 de Julho de 1491 de uma queda de cavalo, em Santarém. Havia ainda
um outro filho do Rei, o bastardo D. Jorge, filho de D. João II, o
Príncipe Perfeito, e de uma Senhora, Dona Ana de Mendonça, “muito
fidalga e de mui nobre geração”.
O
bastardo real fora criado e educado na Corte, entregue à tia, a
princesa D. Joana. Depois da morte de D. Afonso, D. João II tentou que o
Papa legitimasse D. Jorge de Lancastre. O Rei quereria, com essa
legitimação, ser sucedido pelo filho e evitar que lhe sucedesse o seu
cunhado e primo, D. Manuel, duque de Beja, irmão do duque de Viseu, D.
Diogo que tinha conspirado contra ele e que o próprio Rei matara à
punhalada. Embora D. Manuel não estivesse envolvido na conspiração, a
sua ascensão ao trono traria para o poder a casa Beja-Viseu, que lhe
fora hostil. Mas D. Leonor opôs-se, com o apoio de parte da Corte e
contando, em Roma, com a poderosa influência de D. Jorge da Costa, o
célebre Cardeal de Alpedrinha; e os Reis Católicos também terão jogado
contra a legitimação do bastardo. E D. Jorge, afastado do trono,
investido nos mestrados de Santiago e de Avis e feito duque de Coimbra
por D. Manuel I, morreria já velho, em 1550.
Assim,
não estando, na altura do nascimento, na primeira linha da sucessão, o
duque de Beja acabaria por ser aclamado rei à morte de D. João II, em
1495.
D.
Manuel herdou um Reino estabilizado, com o poder real bem centralizado
por um antecessor que soubera pôr termo às ambições feudalizantes da
alta nobreza e “atar ao leme” um homem, todo um povo, que, vencendo o
medo, tomara o Mar ao “Mostrengo”. Tal como El-Rei D. João II, o novo
Rei não mostraria grandes inclinações para a partilha do poder, e poucas
vezes iria reunir as Cortes.
Iria,
sim, retomar a expansão marítima que, em 1487-1488, ficara, com
Bartolomeu Dias, um pouco para nordeste do Cabo da Boa Esperança.
Impondo-se ao Conselho Régio, D. Manuel manda seguir adiante a expedição
de Vasco da Gama. Como esclarece Luís Filipe Thomaz na sua magnífica
síntese A Expansão Portuguesa – Um prisma de muitas faces (Gradiva,
2021), o novo Rei mostrara-se, desde logo, um monarca idealista “ligado
às ideias da Cruzada e do Império”.
No
seu clássico The King’s Two Bodies. A Study in Medieval Political
Theology, Kantarowitz estuda profunda e minuciosamente a hagiografia
político-dinástica. As segundas exéquias de D. João II, a jornada solene
de trasladação do corpo do Rei para a Batalha, terão inspirado algumas
ilustrações do Livro de Horas de D. Manuel, manifestando também,
avant-la-lettre, a ideia de Kantarowitz de que os reis podiam morrer,
nos seus corpos físicos, mas que “o Rei” não morria nunca. Assim, D.
Manuel promove o culto do antecessor, mas também do Rei Fundador, cujo
túmulo, em Coimbra, visita em 1503, evocando o milagre de Ourique.
Afirmar a sacralidade da monarquia era importante para a imposição às
ordens – ao clero, à nobreza e ao povo.
D.
Manuel fora educado pelos franciscanos na escola de S. Boaventura, num
cristianismo voltado para ideais universalistas, como a reconquista de
Jerusalém e o combate aos Muçulmanos. Não admira, pois, que
impulsionasse a continuação da expansão, mesmo em permanente tensão com o
Conselho Régio. E a expansão, por descoberta e conquista, tinha uma
complexidade de causas ou razões, tanto comerciais, do ouro da Mina às
quintaladas da pimenta, como estratégicas e ideológicas (ou religiosas);
sendo talvez estas últimas as que mais motivavam e impulsionavam o
Venturoso.
No
século XV, depois da vitoriosa guerra da independência, os reis de Aviz
tinham, inteligentemente, mantido a paz com Castela na Península,
condição para que a expansão se fizesse tranquilamente. Só a aventura de
D. Afonso V com a Beltraneja, paralisada em Toro, quebrara essa paz.
Outro momento quente fora resolvido por arbitragem papal em Tordesilhas.
Mas, para lá da independência conseguida por Afonso Henriques e
confirmada por D. João I e Nun’Álvares, subsistia o ideal da cruzada.
Ideal que D. Manuel vai retomar.
Os dois impérios
A
expedição de Vasco da Gama foi de uma dimensão material modesta, em
naus, tripulações e homens de armas; Cabral, em 1500, já levava 13 naus e
Vasco da Gama, em 1502, levava 20. Foram aumentando os recursos em
naus, marinheiros, soldados e artilheiros, enquanto se construíam
fortalezas na costa do Índico. Para comandar e coordenar tal operação,
D. Manuel nomeia Vice-Rei D. Francisco de Almeida, com amplos poderes,
como representante do próprio Rei.
Era
um poder centralizado, com competências político-militares e de
controle económico-financeiro. Os inimigos de fundo eram os Turcos – e
os Venezianos, vítimas colaterais da nova rota marítima Lisboa-Índico no
seu comércio das especiarias.
Afonso
de Albuquerque, nomeado por um D. Manuel confrontado por alguma
indisciplina de D. Francisco de Almeida, vai ser o homem da consolidação
estratégica do Oceano Índico como “Mare Clausum” português. Para tal,
conquista Ormuz, Goa e Malaca, mas não consegue tomar Aden. Desde o
princípio – com a rivalidade entre o Rajá de Cochim e o Samorim de
Calecute – os portugueses perceberam a importância da natureza
fragmentada dos espaços de conquista, que, de resto, se restringiam às
zonas costeiras estratégicas, que serviam de base aos navios que
patrulhavam o Índico. A artilharia naval era um grande trunfo e os
potentados locais viam vantagens em ter como aliados estes europeus
barbudos e cristãos que tinham canhões e pareciam não ter medo de nada.
Quantos
eram? Vitorino Magalhães Godinho estudou o assunto: segundo os registos
da época, entre 1497 e 1540 partiram para a Índia 73.500 portugueses e
de lá regressaram 33.700. Quer dizer que por lá ficaram, vivos ou
mortos, 40.000. Também sabemos que, desses, havia, em 1513, 2.500 homens
de armas, em 1516, 4.000 e em 1540, 7.000. Também se mantinham umas
dezenas de barcos de guerra, grandes e pequenos.
“De
vós tão longe sempre obedientes” – diria Camões, resumindo a profunda
disciplina que marcava este império marítimo e comercial, a milhares de
milhas do Reino, a dezenas de semanas de distância do poder central. Há
conflitos de poder – D. Francisco de Almeida mandou deter Afonso de
Albuquerque quando ele lá chegou, e Albuquerque foi afastado por
intrigas – mas não há guerra aberta, como em alguns episódios da América
colonial espanhola.
Paralelamente
a este império formal, oficial, nos limites do Índico, entre a costa
oriental africana e o estreito de Malaca, havia outro império – o
império sombra, informal, que não era de Portugal mas que era dos
portugueses, dos aventureiros, dos comerciantes, dos piratas, dos
mercenários. Enquanto Albuquerque fora um governador concentrado nos
problemas político-militares, exercendo um controle apertado sobre
navios e fortalezas da Índia, Lopo Soares de Albergaria, que lhe
sucederia, deixaria que o império informal se alargasse e desse lugar a
“um movimento irreversível de colonização espontânea”.
No
final do reinado de D. Manuel, os impérios formal e informal estavam de
pé: Diogo Lopes de Sequeira, governador da Índia, iniciou as relações
com o Preste João da Etiópia, por onde já andava Pero da Covilhã.
Tinham-se feito já contactos com o Império chinês. Para lá de Malaca,
havia uma diáspora portuguesa de missionários, aventureiros, guerreiros,
piratas, que convertiam, empreendiam, lutavam, saqueavam, comandavam
milícias ou traficavam tudo. D. Manuel, que em 1518 surpreenderia e
escandalizaria a Corte, casando com a infanta D. Leonor – a irmã do
futuro Carlos V, destinada ao seu filho e sucessor, D. João III –, fora o
inspirador e o regedor, a partir de Lisboa, do grande império português
do século XVI, da grande Aventura Portuguesa, formal e informal.
Hoje,
a milhas, não só dessa grandeza e do ímpeto que a tornou possível, mas
também da memória dessa grandeza como grandeza, é bom lembrar os
portugueses e os governantes de então – entre todos, D. Manuel, o
Venturoso, nos 500 anos da sua morte.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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