BLOG ORLANDO TAMBOSI
O jantar que reuniu Lula e Geraldo Alckmin, organizado pela facção jurídica do PT, foi uma celebração da volta das práticas que pareciam ter sido erradicadas pela Lava Jato. Um mau augúrio para 2022. Fabio Leite e Helena Mader para a revista Crusoé:
Inúmeras
legendas já foram feitas para tentar descrever o abraço entre Lula e
Geraldo Alckmin fotografado no último domingo, 19, quando o petista e o
ex-tucano protagonizaram o primeiro encontro público desde o início da
articulação em torno da chapa para a eleição presidencial do ano que
vem. Para reproduzir fielmente o espírito da foto que selou a união de
dois adversários históricos, é preciso saber quem estava ao redor dela e
o que celebravam no concorrido salão de uma churrascaria de grife em
São Paulo. De cara, a julgar pelos convivas do já notório jantar na
capital paulista, é possível afirmar que a cena guarda muito mais
relação com os triunfos nos tribunais neste ano do que com a vitória que
se almeja nas urnas em 2022. Para além do cenário que emoldura a
retrato de Lula e Alckmin, a picanha e o vinho degustados ali tinham um
tempero adicional: incluía os festejos pela aparente normalização de
práticas já condenadas pela população num passado bem recente, como as
travas ao combate à corrupção, a volta da impunidade, a retaliação aos
integrantes da força-tarefa da Lava Jato e o sinal verde para as
alianças heterodoxas de objetivos, não raro, pouco republicanos.
O
evento foi organizado pelo grupo Prerrogativas, espécie de facção
jurídica petista, criado há seis anos por advogados para tentar
desqualificar a Lava Jato. Enquanto os assentos para o jantar foram
vendidos por 500 reais a empresários, a extensa lista de políticos
convidados “de graça” pareceu ter sido extraída da relação de codinomes
do departamento de propinas da Odebrecht. Perto do “Amigo” (Lula) e do
“M&M” (Alckmin), que
dividiram a mesa com o “Paris” (Márcio França), um dos articuladores
dessa chapa presidencial, sentaram-se a “Amante” (Gleisi Hoffmann), a
“Barbie” (Marta Suplicy) e o “Aracajú” (Aloizio Mercadante). O “Justiça”
(Renan Calheiros) circulou com desenvoltura pelo restaurante e
distribuiu declarações aos jornalistas presentes, ao passo que o “Forte”
(Paulinho da Força), que já abriu as portas do seu partido para o
“M&M” ser vice do “Amigo”, ficou na mesa reservada aos chefes das
legendas. Nela, sentou ainda Baleia Rossi, presidente do MDB, que,
apesar de não ter ganhado um apelido, também é investigado por suposto
recebimento de caixa dois da empreiteira baiana e da J&F, a holding
dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Outros sinais de que a festança
celebrava mais a destruição da Lava Jato do que qualquer conchavo
eleitoral foram as presenças ilustres de “Botafogo” (Rodrigo Maia) e
“Kimono” (Arthur Virgílio), respectivamente, secretário e
correligionário do governador tucano João Doria, rival de Lula na
corrida ao Planalto em 2022.
Sem
o menor pudor, o coordenador do Prerrogativas e anfitrião do jantar, o
advogado Marco Aurélio de Carvalho, ele próprio delatado pela J&F,
por ter recebido 1,4 milhão de reais sem prestar nenhum serviço,
escancarou aos presentes que as únicas “personae non gratae” no evento
seriam João Doria e Sergio Moro, maior algoz de Lula
e presidenciável pelo Podemos, porque “apoiaram Bolsonaro em 2018”. Mas
coube ao advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, um dos
inspiradores do Prerrogativas e defensor do ex-presidente Michel Temer,
cunhar a frase que seria a cereja do bolo do convescote da impunidade.
“O crime já aconteceu, o que que adianta punir? Que se puna, mas que não
se ache que a punição irá combater a corrupção, presidente”, disse
Mariz a Lula, como mostrou O Antagonista nesta semana.
Lula
era a estrela do evento, mas a presença de Alckmin na churrascaria,
obviamente, atraiu os holofotes — e esse era o objetivo político do
convescote. Bajulado por petistas que até pouco tempo atrás queriam
fustigá-lo com uma CPI para apurar desvios em obras nos governos do PSDB
— investigação engavetada neste mês sob o silêncio sepulcral do PT na
Assembleia Legislativa –, o ex-governador paulista já admitiu a aliados
que o que o aproximou do partido de Lula foi o fato de também ter se
tornado “vítima” dos “excessos” da Lava Jato. Em julho de 2020, o
ex-tucano virou réu e teve seus bens bloqueados pela Justiça Eleitoral
em uma ação de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e caixa dois
movida pelo Ministério Público, por suposto recebimento de 11,3 milhões
de reais da Odebrecht, nas campanhas de 2010 e 2014. Para Alckmin, que
ainda tenta obter as mesmas benesses de Lula nos tribunais, o jantar de
domingo trouxe uma “esperança”, palavra que ele passou a repetir nesse
novo momento político. “Não importa se no passado fomos adversários, se
trocamos algumas botinadas, se no calor da hora dissemos o que não
deveríamos ter dito. O tamanho do desafio que temos pela frente faz de
nós aliados de primeira hora”, discursou Lula diante de Alckmin, na
noite memorável.
Se
Lula não mudou, quem parece ter mudado foi Alckmin. Em 2018, o então
tucano acusou Lula de querer ser eleito para “voltar à cena do crime”.
Quatro anos depois, Alckmin parece querer não só passar pano sobre a
cena do crime como fazer parte dela – a julgar pelo que ele próprio
falou lá atrás. Guinadas ideológicas e elasticidades morais à parte, é
fato que alianças heterodoxas não são uma novidade da política nacional.
As composições de José Sarney, então presidente da Arena, com a Frente
Liberal, a união entre o PSDB e PFL para eleger o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, são casos emblemáticos da história recente do país.
Ocorre
que as parcerias celebradas por Lula, para variar, costumam embalar
propósitos muitas vezes inconfessáveis. Em 2002, ao convidar José
Alencar para sua chapa, o petista pretendia se tornar mais palatável ao
empresariado, que à exceção dos donos da Odebrecht, com quem Lula àquela
altura já cultivava uma relação simbiótica, sempre desconfiou de suas
reais intenções. Soube-se depois, e não muito tempo depois, que o apoio
de Alencar e do seu então partido, o PL, ao governo petista seria a
gênese do mensalão – o PL, então presidido pelo ínclito, reto e vertical
Valdemar Costa Neto, hoje aliado de primeira hora do presidente Bolsonaro, negociou um milionário financiamento de campanha para aderir à chapa de Lula.
Passados
quase 20 anos, ninguém sabe de que maneira o ‘chuchu’ irá agregar à
aliança petista, para além de tentar fingir para parte do eleitorado
refratário ao PT que a união terá o condão de “moderar” o cabeça de
chapa, mentor intelectual do ainda presente na política nacional “nós
contra eles”.
Em
termos de voto, o desempenho do ex-tucano nas urnas nas últimas
eleições dá a medida do seu prestígio entre os eleitores. Com 4,7%, em
2018, ele amargou o pior resultado da história do PSDB. Fora do tucanato
e ainda sem partido, Alckmin nem sequer tem um grupo político. Ou seja,
o que ele representará num eventual governo do PT é um mistério.
O
mesmo não se pode dizer de José Dirceu, que já foi preso e condenado no
mensalão e no petrolão, e deixou a cadeia junto com Lula, há dois anos.
Dirceu tem rodado o país na tentativa de robustecer o palanque lulista.
Se Lula voltar ao poder, claro, o ex-capitão do time voltará a dar as
cartas em Brasília. Em encontro com o presidente do PV, José Luiz Penna,
há duas semanas, em Brasília, Dirceu alinhou a adesão da sigla que já
abrigou Marina Silva à coligação do PT. “Ele (Dirceu) faz alguma
prospecção importante para os caminhos do Lula e me pareceu estar
afinado (com o ex-presidente) tanto quanto a Gleisi”, relatou Penna a
Crusoé. Em junho, Dirceu já havia discutido o cenário eleitoral com
Gilberto Kassab, em um jantar na casa do advogado Roberto Podval, na
capital paulista. Alguns meses depois, foi a vez de o próprio Lula
sentar-se com o dono do PSD, a quem ainda tenta atrair para a sua
“frente ampla”.
Por
ora, o PT ainda esconde José Dirceu dos holofotes, mais ou menos como
tem feito com Dilma Rousseff, que não foi convidada para o jantar de
domingo e ficou fula da vida. Petistas acreditam, no entanto, que é
questão de tempo para Lula e seu entourage naturalizarem a atuação do
ex-ministro, assim como Jair Bolsonaro perdeu completamente o pudor e se associou a Valdemar Costa Neto, igualmente condenado no mensalão, para tentar a reeleição.
O
clima do acordão em favor da impunidade há tempos contagiou Brasília e
tem provocado um efeito deletério sobre os instrumentos capazes de impor
algum limite ou temor aos desmandos e desvios praticados pelas
autoridades. A manobra para desmontar o trabalho desenvolvido pela
comissão da PEC da Segunda Instância exemplifica – e explica – esse
fenômeno. Durante dois anos, parlamentares que defendem a prisão após a
condenação em segunda instância costuraram acordos para viabilizar sua
aprovação. No último dia 8, quando o colegiado se encaminhava para votar
o relatório do deputado Fábio Trad, do PSD, partidos do Centrão mudaram
17 integrantes da comissão e indicaram nomes declaradamente contrários à
PEC. Na iminência de ver o relatório rejeitado, Trad retirou o texto de
tramitação. Com isso, o assunto pode ser enterrado de vez. Antes da
pandemia, a estratégia dos deputados contrários à PEC era evitar a
votação a qualquer custo. À época, se posicionar contra a prisão em
segunda instância era visto como suicídio político e, portanto, a saída
era manobrar para evitar o debate – assim como a Câmara faz há quatro
anos com o fim do foro privilegiado. Agora, o jogo virou: os
parlamentares perderam o pudor de se posicionar publicamente contra a
proposta.
O
menosprezo por alguns valores basilares e pelo que pensa uma expressiva
parcela do eleitorado lembra uma passagem que ficou registrada na
história da política brasileira por uma célebre declaração do
ex-deputado Sérgio Moraes, do PTB gaúcho. Em 2009, ao ser questionado
pelo arquivamento do pedido de cassação do deputado mineiro Edmar
Moreira, por ter ocultado um castelo de 20 milhões de reais do seu
patrimônio, Moraes escandalizou o país ao dizer, em tom de indolência:
“Estou me lixando para a opinião pública”. Somente após as manifestações
de 2013, que sacudiu a classe política, é que os parlamentares passaram
a temer o ronco das ruas. Com os podres tirados debaixo do tapete pela Lava Jato,
os poderes se viram obrigados a aprovarem novas legislações, como a lei
anticorrupção e até o fim do foro privilegiado, um marco da moralização
da gestão pública. De lá para cá, porém, o Brasil enfrentou uma
escalada de retrocessos desencadeados pela reação do establishment –
para o deleite dos políticos encrencados e advogados de criminosos, como
os que se reuniram domingo numa churrascaria de São Paulo, entusiastas
da volta do “velho normal”.
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