Alexandre II, depois da derrota na guerra da Crimeia, concentrou todos os esforços em reformas para modernizar o Império Russo. Putin simpatiza mais com Nicolau I, conhecido como o “polícia da Europa”. José Milhazes para o Observador:
É
muito pouco provável que a União Soviética ressuscite 30 anos depois do
seu desaparecimento físico, mas estamos a assistir ao ressurgimento em
força da sua política externa, que, por sua vez, foi herdada do Império
Russo.
Quando
estudei História na Universidade de Moscovo (1977-1984), havia
numerosos enigmas que só consegui alguns esclarecer depois de Mikhail
Gorbatchov, primeiro e último Presidente da URSS, chegar ao poder e
permitir o acesso a muitos dos livros e documentos que não alinhavam com
“verdade ideológica” do Partido Comunista da União Soviética.
Nem
Marx, nem Engels, nem Lenine escaparam à censura dos seus seguidores e
camaradas. Por exemplo, os soviéticos não podiam saber o que pensavam os
dois primeiros clássicos do marxismo sobre a política externa do
Império Russo.
Um
dos artigos de Friedrich Engels proibidos na URSS foi escrito em 1890 e
chamava-se: “A política externa do czarismo russo”. Ao abordar a
possibilidade de deflagração de um conflito mundial no continente
europeu, ele afirma: “Todo este perigo de uma guerra mundial
desaparecerá no dia em que as coisas na Rússia tomarem um rumo tal que o
povo russo possa pôr fim à política tradicional de conquista dos seus
czares e, no lugar de fantasias sobre o domínio mundial, ocupar-se dos
seus próprios interesses vitais no interior do país, interesses
ameaçados por um extremo perigo”.
Pelos
vistos, os camaradas soviéticos de Engels não gostaram deste parágrafo
do artigo, pois, como é sabido, a política tradicional de conquistas e
as fantasias sobre o domínio mundial continuaram a dominar na era
soviética (1917/22-1991), mudando apenas o rótulo para
“internacionalismo proletário”.
Verdade
seja dita, a política externa soviética fez com que a influência da
URSS chegasse mais longe do que a do Império Russo, a todos os
continentes do planeta. Porém, essa ânsia de expansão foi uma das causas
da queda de um império que controlava metade da Europa. A União
Soviética não conseguiu atingir níveis económicos e financeiros capazes
de manter a sua política externa expansionista.
A
política externa de Mikhail Gorbatchov visava precisamente pôr fim às
fantasias expansionistas com vista a libertar meios económicos e
financeiros para resolver os graves problemas internos do seu país.
Porém, eram tantas as dificuldades e obstáculos difíceis que se
colocavam perante ele que o seu país acabou por sucumbir a 25 de
Dezembro de 1991. Nesse dia, Gorbatchov renunciou ao cargo de Presidente
da URSS perante as câmaras de televisão e a bandeira vermelha soviética
foi substituída pela tricolor russa no Kremlin.
Nas
palavras, era isso que Boris Ieltsin pretendia fazer depois da Rússia
se tornar independente, mas, na prática, observámos uma política que
levou o país à bancarrota. As experiências económicas, muitas delas
incentivadas pelo Ocidente, tiveram resultados catastróficos, foi
perdida uma oportunidade para aproximar a Rússia da União Europeia e da
NATO.
Foram
muitos os russos que ficaram desencantados com a política dos países
ocidentais, considerando que eles não só queriam humilhar o seu país,
mas também fazer dele uma potência de segundo ou terceiro grau.
Estava
lançada a passadeira vermelha para que Vladimir Putin, coronel do KGB
soviético, entrasse no Kremlin e começasse a erigir um regime
totalitário que parece não ter fim.
Em
prol da verdade, após a chegada de Putin ao poder, a política de
aproximação entre a Rússia, por um lado, e a NATO e a União Europeia,
por outro, continuou até 2014 e com resultados visíveis. Porém, a
anexação da Crimeia e a invasão militar do Leste da Ucrânia pelas tropas
russas fizeram recuar as relações aos tempos mais dramáticos da guerra
fria.
Vendo-se
perante vitórias fáceis e enfrentando uns Estados Unidos e uma União
Europeia mergulhados em fracassos militares significativos no Iraque,
Síria, Líbia e, especialmente, no Afeganistão, Vladimir Putin tenta
reforçar as suas posições no mundo e apresenta aos seus potenciais
adversários um verdadeiro ultimato, que, a ser aceite, significaria um
aumento abismal das suas zonas de influência.
Resta
saber até onde o autocrata russo poderá ir para alcançar objectivos
claramente inatingíveis. A julgar pela propaganda russa, os desideratos
são faraónicos. Piotr Akopov, comentador político da agência oficial
russa Ria/Novosti, publicou um artigo com um título muito sintomático:
“A vergonha espera os Estados Unidos: terão de pedir perdão à Rússia”.
Entre
outras coisas, ele descreve as regiões onde a Rússia tem interesses: “A
Rússia tem interesses não só no espaço post-soviético, simplesmente em
relação a ele nós traçamos com a máxima rigidez as linhas vermelhas.
Temos interesses praticamente em todas as regiões do mundo e, se
tivermos em conta a nossa localização geográfica, essas regiões são, na
sua maioria, nossos vizinhos. Na realidade, a Rússia não é simplesmente
uma potência euro-asiática, que faz fronteira com a Noruega e a
Mongólia, mas também pacífica. Por outras palavras, não só a China e o
Japão, mas igualmente toda a região do Sudeste Asiático – países da
ASEAN estão próximos de nós”.
E
os apetites do propagandista não se ficam por aqui: “O Médio Oriente é
mesmo uma região fronteiriça, porque somos vizinhos do Irão no Cáspio.
Longe das nossas fronteiras estão apenas a América do Sul (embora
sejamos separados apenas pelo Oceano Pacífico) e a África, mas lá temos
interesses e laços históricos sérios”.
Propaganda
à parte, seria importante saber com que meios económicos e financeiros
irão os dirigentes russos realizar semelhantes “fantasias”. Claro que a
Rússia é uma potência militar capaz de pôr fim à Terra com as suas armas
nucleares, mas, em termos económicos, continua a ser um gigante com pés
de barro. Segundo dados do Banco Mundial, o seu Produto Interno Bruto é
cerca de vinte vezes menor do que o dos Estados Unidos, aparecendo no
12º lugar atrás de países como a China, Índia, Itália, etc.
Por
conseguinte, a história ameaça repetir-se e a Rússia poderá ter o mesmo
destino da União Soviética. É verdade que o país obtém fortes
rendimentos com a exportação de gás e petróleo, mas estes meios são
gastos na corrida aos armamentos, desaparecem nas “areias” da corrupção,
restando apenas migalhas para melhorar o nível de vida população e
investir na modernização.
Nunca
é demais recordar a política do czar russo Alexandre II que, depois da
derrota da Rússia na guerra da Crimeia (1853-1856), concentrou todos os
esforços nacionais na realização de reformas com vista a modernizar o
gigante Império Russo. Vladimir Putin simpatiza mais com Nicolau I, que
ficou conhecido como o “polícia da Europa”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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