Dicotomia entre apocalíticos e negacionistas, a coisa mais anticientífica que existe, me fez torcer pelo cometa. João Pereira Coutinho via FSP:
Houve
um tempo em que os filmes satíricos não eram óbvios. Deixemos de lado
os nomes sagrados de Hollywood –Ernst Lubitsch, Howard Hawks, Billy
Wilder.
Nos
anos mais recentes, assistir a "Clube da Luta", de David Fincher, ou ao
primeiro "Borat", com Sacha Baron Cohen, era comprovar que o gênero
estava vivo.
O diretor Adam McKay não pertence a esse restrito clube. O seu "Vice", paródia do ex-vice-presidente Dick Cheney, só tinha salvação por causa de um ator de gênio, Christian Bale. "Não Olhe para Cima", que agora estreou na Netflix, está uns pontos abaixo de "Vice". O que significa que não tem salvação alguma.
Eis
a história: um cometa gigante está em rota de colisão com a Terra. Os
cientistas fazem os cálculos e vaticinam: a humanidade tem 6 meses e 14
dias até à aniquilação total. Mas como é possível salvar a espécie
humana quando ela persiste em não olhar para os fatos?
Pior, muito pior: a presidente dos Estados Unidos, uma espécie de Donald Trump de saia, despreza o conhecimento científico e opta por embusteiros high-tech, que colocam o lucro fácil acima da sobrevivência humana.
Para
que nenhum clichê seja esquecido, a mídia também não ajuda: os temas
científicos perdem no ibope para os dramas das celebridades. Será que
vale a pena salvar um mundo assim?
É
essa a pergunta que formulei durante todo filme, o que me levou a
sentir uma simpatia imediata pelo cometa. Até torci por ele: "Vem, meu
bem, e destrói tudo."
Não é piada. É um pensamento bem funesto e bem sério, que se aplica às alterações climáticas que o filme pretende evocar.
Existem
os fatos: o planeta aquece, a humanidade contribui para esse
aquecimento, e a Terra pode virar inabitável no médio prazo. Mas nós,
pecadores, não queremos expiar esses pecados. Se assim é, será que
merecemos salvação?
Como
é evidente, não só merecemos como, pelo menos no Ocidente, fazemos
incomparavelmente mais pela sustentabilidade do planeta do que países
como a China, a Índia ou a Rússia.
Refiro
esses três, especificamente, porque eles são citados no filme como a
última esperança da Terra para que o fatal cometa seja destruído. É o
único momento de genuíno humor em todo filme. O fato de ser humor
involuntário não desqualifica as gargalhadas que eu dei.
Sem
falar das outras. Uma sátira, para ser bem-sucedida, implica uma adesão
mínima à realidade. Mas onde está a realidade de "Não Olhe para Cima"?
Para
começar, a dicotomia primitiva entre "apocalíticos" e "negacionistas" é
a coisa mais anticientífica que existe. A discussão científica sobre o
clima faz-se com modelos hipotéticos, dos mais extremos aos mais
moderados, e não com dogmas infantis de "vamos todos morrer" ou "vamos
todos ficar bem".
Além
disso, se Adam McKay acredita mesmo que a mídia ou o establishment
político não dedica ao assunto a seriedade que ele merece, é legítimo
perguntar em que planeta o diretor vive.
Se
existe tópico que congrega as atenções da mídia, das instituições
internacionais, das ONG’s e dos governos é precisamente as alterações
climáticas.
Isso
coloca o filme numa situação paradoxal: como é possível apresentar os
cientistas do filme como a minoria iluminada quando as preocupações que
os animam são, na verdade, as preocupações da maioria que tem voz e
poder?
A
sátira, por definição, incomoda os poderosos. Mas, excetuando os órfãos
de Donald Trump ou os zumbis de Bolsonaro, quem se sente incomodado com
a mensagem do filme?
"Não
Olhe para cima" é mera pregação aos convertidos. Tivesse Adam McKay
optado por um filme sobre os crimes ambientais de Vladimir Putin,
Narendra Modi ou Xi Jinping e talvez a sua sátira fosse a denúncia
corajosa que o tema merece.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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