O que o português não sabe é que o futuro não é, mesmo, português. Amo o Padre António Vieira mas houve um erro no que ele profetizou: o futuro não é Portugal para o mundo mas o mundo para Portugal. Tiago de Oliveira Cavaco para o Observador:
O
brasileiro não sabe que, se tivesse chegado cá nos anos 80, era rei e
senhor. Era o tempo de Portugal fechado em casa ao serão, derretido
diante das telenovelas da Globo. Quando alguém do Brasil se dignava a
pôr pés aqui, a aclamação era total. Desbravavam o nosso futuro na
televisão, na publicidade e a tratar-nos dos dentes. Nas Igrejas
Evangélicas, os brasileiros eram missionários e pastores que flutuavam
um palmo acima dos restantes mortais, santificados numa religião que não
tem santos. Portugal era todo deles. O início dos anos 90 mudou tudo. E
geralmente atribui-se essa mudança à Igreja Universal do Reino de Deus.
O
brasileiro não sabe que a IURD (como dizemos com desdém) mudou o jogo
quando se atreveu a julgar que a liberdade religiosa em Portugal era
mesmo liberdade religiosa. As pessoas cultas, que obviamente nunca
maltratam ninguém, acorrentaram-se ao Coliseu do Porto para impedir a
queda de um símbolo nacional no culto da ignorância sul-americana. Como
junto com os pastores da seita vinham prostitutas, mulheres-a-dias e
empregados de restaurantes, conseguimos com sucesso desprezar todos os
brasileiros sob a aparência de defendermos a cultura portuguesa.
O
brasileiro não sabe que os anos 90 (e o início do milénio) foram a
glória do mau-trato que lhe demos. O Herman José em prime time misturava
no mesmo sotaque pregadores e pegas e o país ria, certíssimo da nossa
superioridade. Claro que aqui e ali condescendíamos em continuar a
esgotar o Coliseu ao Caetano, em passar luas-de-mel no Nordeste e, até
permitir que alguns dos nossos (classe média a atirar para a baixa,
claro) casassem com uns quantos deles (sei do que falo porque me recordo
de dizer à minha irmã Rute que ela podia casar com quem quisesse,
excepto brasileiros). A chegada do Alessandro à Família Cavaco
demonstrou a besta que eu era e, nesse sentido, trouxe um tempo novo.
O
brasileiro não chega preparado para um mundo que suspeita daquilo que
ele idolatra: a alegria. As razões para isto são muitas mas religiosas
também. Uma vez escrevi um texto chamado “Os Evangélicos são os Pretos
do Cristianismo” (googlem) em que trato do assunto, que agora faz parte
de um livro que só está editado no Brasil mas que em breve cá chegará
pela FlorCaveira, intitulado “Arame Farpado no Paraíso—o Brasil visto de
fora e um Pastor visto de dentro”. Por exemplo, quanto mais um
brasileiro elogia Portugal à sua chegada, menos Portugal o receberá.
Como a história da nossa desconfiança lhes é desconhecida, a exuberância
que os brasileiros usam naturalmente para se quererem aproximar
torna-se o que os manterá para sempre longe, mesmo que entre nós.
O
brasileiro não sabe que, mesmo quando não tem religião, a fé que tem no
futuro é-nos blasfema. Em 2010 gravei uma canção chamada “Doutor
Soares”, dedicada à tragédia que foi termos Mário Soares como Presidente
da Comissão de Liberdade Religiosa. As vetustas e vigilantes palavras
do patrão da nossa democracia diziam que “os protestantes evangélicos
são muito fanatizados”, que são senso comum ainda em 2021 para sabermos
que esta é a religião que só com muito custo toleraremos, especialmente
aos pobres do Sul Global. Portugal tem pouco Deus porque tem pouca
gente. O Catolicismo consegue ainda no Século XXI o feito de deter o
monopólio da seriedade e todos os outros credos são corridos a banha da
cobra. A ironia é que a Esquerda, pouco inclinada a elogiar a Igreja
Romana, é hoje o capanga que mais eficazmente expulsa quem queira
quebrar a homogeneidade espiritual do nosso santo povo. O Brasil, que é
grande para xuxu, muda com facilidade (até de religião) porque o futuro
exige, ao passo que nós ainda adoramos o passado.
Mas
o que o português não sabe é que o futuro não é, definitivamente,
português. Amo o Padre António Vieira mas houve um erro no que ele
profetizou: o futuro não é Portugal para o mundo mas o mundo para
Portugal. E o mundo futuro que nos dá vida nova é, nesta época,
essencialmente o Brasil. Não é preciso alinhar no último acordo
ortográfico para entender que a nossa língua é e será maioritariamente a
língua dos brasileiros (só lá dentro são mais de 210 milhões de
falantes, caramba!). Os evangélicos portugueses não sabem que estão mais
à frente do que todos os outros portugueses pelo facto de as nossas
comunidades se abrasileirarem há décadas (isto não significa que
qualquer abrasileirização é boa mas que é, de facto, inevitável). Os
portugueses, notáveis na arte da pedinchice, vão abrindo muito
resignadamente os olhos porque descobrem muito surpreendidos os novos
brasileiros ricos que escolhem viver cá. Diante do imigrante, o
português acredita muito em Portugal até que ele tenha mais money do que
nós.
O
que eu sei é que maltratar brasileiros só rende enquanto a nossa
adoração do passado tiver mais crentes. Eu, que apenas creio na pátria
eterna, invisto em qualquer outra que conjugue a nossa língua no futuro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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