Que maravilha: no Metaverso, as pessoas viverão em bolhas e poderão eliminar qualquer desafeto com um simples comando no teclado. Luciano Trigo via Gazeta do Povo:
Nesta
altura do campeonato, mesmo gente totalmente desinteressada no assunto
já ouviu falar no Metaverso. É a nova grande aposta de Mark Zuckerberg,
que anunciou recentemente que o Facebook passará a se chamar “Meta”
(pronuncia-se “Méta”, não confundir com o imperativo do verbo “meter”).
Trata-se, basicamente, de uma plataforma que almeja “duplicar” a
realidade, proporcionando a gente frustrada, fracassada e infeliz uma
segunda chance na vida, ainda que no ambiente virtual.
Aliás,
a ideia nem é tão nova ou original: o início dos anos 2000 testemunhou a
ascensão e rápida queda da plataforma “Second Life”, da qual hoje quase
ninguém se lembra. Sobre o Second Life e as razões do seu fracasso,
escreverei em outro artigo. Hoje vou comentar uma notícia sobre o
Metaverso que li na semana que passou: “Metaverso já tem denúncia por
assédio sexual”.
Imediatamente
me veio à memória um trecho de um conto de Jorge Luis Borges que
classificava como abomináveis os espelhos – como a cópula – por
multiplicarem os seres humanos. Seguramente, o escritor argentino
sentiria a mesma repulsa pelo conceito do Metaverso: para que duplicar,
virtualmente, as misérias e neuroses da vida real? Já não temos
problemas bastantes no mundo material, palpável, que nos cerca?
(Parênteses:
desnecessário dizer, assédio sexual é algo grave, que deve ser
combatido com rigor. Não deixa de ser preocupante, por outro lado, a
frequência com que reputações são destruídas no tribunal da mídia e das
redes sociais, sem qualquer apuração e sem que o acusado tenha chance de
se defender.
Conheço
mais de um caso de indivíduos que foram expostos e acusados
injustamente. Porque basta que três ou quatro pessoas se unam para
afirmar que foram assediadas 10 anos atrás para colar na testa do
cidadão – quanto mais famoso, melhor – o carimbo de assediador, ou coisa
pior.
Fato:
nem sempre a acusação é verdadeira, as pessoas mentem, exageram e
distorcem os fatos, muitas vezes de má-fé. Quando não é verdadeira, quem
vai reparar os danos causados à imagem do acusado? Ninguém. É muita
irresponsabilidade, mas os tribunais da lacração não param.
Agora
mesmo, um conceituado obstetra de São Paulo está sendo trucidado na
internet porque teria usado “frases desrespeitosas” durante um parto.
Denunciado por uma influenciadora nas redes sociais, logo apareceu outra
vítima, que fez nova acusação gravíssima: durante o trabalho de parto, o
médico teria feito uma brincadeira sem graça com seu marido, dessas
que, imagino, devem ser feitas aos milhares por obstetras. Bastou para o
caso ganhar novas manchetes escandalosas.
Mas
aí você vai ler a matéria e descobre que a brincadeira foi: “[A
vítima] diz ter ouvido perfeitamente [o médico] dizer a seu marido, em
tom de ‘brother’, que tinha ‘feito um ponto ali, que ele não ficasse
preocupado, porque tava tudo bem’.” Aparentemente, isso gerou um trauma
horrível na parturiente - nos nossos dias, motivo mais do que suficiente
para encerrar a carreira do médico.
Além
do risco de prejudicar a vida e a carreira de profissionais competentes
e pessoas honestas, quando é estimulado como vem sendo (“Denuncie!” é a
palavra de ordem do momento), o denuncismo, na internet e fora dela, se
transforma facilmente em ferramenta de vingança de gente ressentida ou
mesmo de perseguição por motivação política: o linchamento moral serve
para calar tanto desafetos pessoais quanto quem ousa desafiar o
pensamento hegemônico de gente “do bem”, das pessoas virtuosas que
adoram apontar o dedo, esfolar e destruir. Fecho parênteses.)
Voltando
à notícia que li. O episódio aconteceu dentro do “Horizon Worlds”,
segundo entendi uma parte do Metaverso na qual avatares digitais
interagem socialmente com avatares de outros usuários. Pois bem, uma
usuária afirmou que seu avatar foi “apalpado” por um desconhecido no
ambiente virtual. A mulher também denunciou os outros usuários que
circulavam pela plataforma, testemunharam o “incidente”, mas não
prestaram ajuda.
Mas
isso é só o começo. Em breve o Metaverso também contará com a sua
própria cultura do cancelamento e com manifestações identitárias de
avatares de minorias: avatares trans farão passeatas contra a
transfobia, e avatares gordos contra a gordofobia. Avatares
conservadores serão classificados como negacionistas e defensores do
avatarcídio. E todos os avatares terão que tomar pelo menos cinco doses
da vacina virtual - e postar foto da carteirinha de vacinação, para
mostrar como são virtuosas.
Aliás,
após a repercussão do episódio, o vice-presidente do Horizon Worlds
explicou que a usuária poderia ter recorrido à “Safety Zone”, um recurso
que permite a criação de uma bolha em torno do avatar, que
impossibilita que outros usuários interajam com seu personagem. no
ambiente virtual. É claro que o mesmo também poderá ser feito por
motivação política ou ressentimento pessoal.
Que
maravilha: no mundo ideal as pessoas viverão em bolhas e poderão
excluir qualquer desafeto com um simples comando no teclado. Isso é
apenas uma fantasia paranoica de segurança, reveladora da intolerância e
do autoritarismo daqueles que sempre gostam de gritar que defendem a
democracia No limite, o mecanismo de cancelamento do Metaverso
representa, justamente, o atestado de óbito da democracia e da vida em
comunidade, já que uma e outra pressupõem o convívio civilizado com a
diferença.
Mas
a insanidade não para. Já apareceu um especialista apontando a
“necessidade de regular o ambiente virtual” . E uma advogada aproveitou
para denunciar a “flagrante desigualdade de gênero” e a “naturalização
da violência” no Metaverso.
Ora,
é óbvio que qualquer forma de violência, seja ou não baseada em gênero,
na vida real como no Metaverso, precisa ser combatida. Mas também
parece óbvio que a pandemia de bom-mocismo fake, de vitimização como
estratégia de vida, de patrulha moralista, de ostentação de virtude de
rede social e de lacração identitária está transformando o mundo em um
lugar insuportavelmente chato de se viver.
E o pior é que nem vai adiantar tentar escapar da chatice fugindo para o Metaverso: os chatos já terão chegado lá também.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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