MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

As imagens do Natal

 



Em pleno “período de festividades”, no meio dos enfeites e dos embrulhos, há uma tradição do Presépio, presente, desde Francisco de Assis, nos grandes mestres da Pintura e na nossa memória coletiva. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:


O Natal, como memória viva do nascimento de Cristo, da Encarnação de Deus, do Acontecimento que divide em dois a História e o calendário, foi um dos grandes temas da Arte ocidental. Terá sido em Greccio, uma cidadezinha do Lazio italiano no alto de uma colina, que, na noite de Natal de 1223, Francisco de Assis armou o primeiro presépio:

“Gostaria que colocassem uma manjedoura com feno numa das cavernas da montanha, e trouxessem um boi e um burro, exactamente como em Belém. Na véspera de Natal subirei até lá e, todos juntos, rezaremos na gruta.”

Escrevia o Santo a Giovanni Velita, o senhor da terra.

Francisco de Assis queria voltar à pureza desse primeiro Natal, reencenando-o “exactamente como em Belém”, para que nós, cristãos, nós, Igreja (que, tal como Israel, continuávamos a “nada entender” e a não “conhecer o nosso Senhor”) saíssemos do conforto das nossas sobrelotadas hospedarias para contemplar o Menino “envolto em panos, numa manjedoura”; e para que puséssemos também os olhos no boi e no burro, ou na vaca e no burro, que os evangelistas não mencionavam mas que, no Antigo Testamento, o profeta Isaías plenamente justificava: “O boi conhece o seu dono, e o jumento, o estábulo do seu senhor; mas Israel, meu povo, nada entende” (Isaías 1,3).

Entre Pastores e Magos

Oitenta anos depois, talvez entre 1303 e 1306, Giotto retrataria, num fresco, uma das primeiras representações pictóricas do nascimento de Cristo: A Adoração dos Reis Magos. Na “Adoração” de Giotto, o presépio não é uma gruta, mas uma pequena construção de madeira, onde estão um S. José velho, com a idade a confirmar, simbolicamente, a castidade, e uma Virgem jovem, segurando o Menino Jesus. Um Anjo Guardião, de pé, faz o séquito e a segurança. Um dos Magos, o mais velho, está de joelhos e beija a perna do Menino, os outros dois, de pé, esperam a sua vez. Atrás, um servo atento ao camelo, segura-lhe a rédea, e entreve-se um outro camelo, também distraído da cena principal, a conferir a origem exótica, oriental, dos Reis. No azul do Céu, passa um cometa. Giotto tem uma outra Natività di Gesú na Cappella degli Scrovegni, em Pádua, integrada na História da Encarnação. É um pintor metafísico e dispõe ali a Sagrada Família de modo singular: a Virgem deitada com o Menino num leito diáfano, sob uma espécie de dossel, ajudada por uma mulher, e S. José sentado, em baixo, apartado. A vaca e o burro espreitam e as ovelhas estão prostradas no chão. Há dois pastores de costas a olhar para cima, para os anjos, em festa sobre o presépio.

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Num fresco encomendado por Cosme de Médicis, entre 1438 e 1445, para o Convento de S. Marcos, em Florença, Fra Angelico (1395-1455), outro pintor religioso do Quatrocento, acrescenta Santa Catarina de Alexandria e S. Pedro à sua Adoração do Menino. Ao fundo, emergindo das portas entreabertas do Presépio, estão o burro e o boi e, no telhado, os eternos anjos, em oração.

Anjos que Piero della Francesca, por volta de 1470, pinta já mais humanos e maduros, a tocar e a cantar para uma Virgem séria, ajoelhada, de manto azul, contemplando um menino-boneco num chão de areia. Há três homens ao fundo, que ficamos sem saber se são os reis do Oriente ou S. José e dois dos Magos. Os animais estão atrás dos anjos e o chão é árido, com tímidas plantas. Ao fundo, veem-se uns montes e as torres de uma cidade. O presépio lembra um pré-fabricado: Della Francesca introduz a perspectiva e dá-nos as figuras hieráticas em vestes polícromas, como figurantes recortados, arrancados a um futurismo neoclássico.

Poucos anos depois de Piero della Francesca, Leonardo da Vinci pinta A Adoração dos Magos. A “Adoração” de Leonardo é uma obra inacabada, que dispõe a Virgem e o Menino ao centro, e não de lado, como era então costume. Ao fundo, há ruínas e agrupam-se figuras mais esboçadas do que pintadas. O Menino Jesus abençoa um dos Magos. O quadro, talvez por estar incompleto, evoca também a ruína do mundo e do tempo, o fim do mundo antigo e pagão que a vinda do Menino traz.

A Natividade Mística, de Botticelli, de 1500, mantém a centralidade do Menino Deus. O presépio destaca-se de um fundo de árvores frondosas e é pródigo em anjos. Há anjos no telhado do presépio, serafins que recebem, cá em baixo, os Magos e que encaminham os pastores, e outros que pairam no céu, dançando de roda, num conjunto ambíguo, que parece misturar a alegria do Natal com a tensão da Grande Tribulação.


Botticelli pintou esta Natividade em tempos atribulados, depois da invasão da Itália pelos franceses e da passagem por Florença do governo de Savonarola. Savonarola procedera a todo um programa de cancelamento cultural, banindo obras de arte e artistas contrários à austeridade puritana que queria impor em Florença. Em 7 de Fevereiro, de 1497, no último dia do Carnaval, promoveu na cidade uma monumental “Fogueira das Vaidades”, destinada a queimar objectos de pecado: de espelhos e perfumes a livros de Ovídio e Boccaccio, ou a pinturas de Lorenzo de Credi e de Botticelli. Mas o zelo fundamentalista do austero e piedoso Savonarola tinha tudo para indispor o Papa Bórgia, Alexandre VI (e os patrícios florentinos do Frade-Tirano, já saudosos de algum colorido mais humano e menos austero); um ano depois da queima, Savonarola cai em desgraça. O Papa convoca-o a Roma, para que se explique, e o frade recusa, desculpa-se e mantém a sua república popular democrática. Acaba excomungado, afastado do poder e condenado à morte, depois de uma ordália falhada. É enforcado e queimado, com dois seguidores, na Piazza della Signoria, conforme registado numa pintura anónima, que alguns atribuem a Francesco Rosselli.

De Bosch a Grão Vasco

No painel central do tríptico da Adoração dos Magos de Bosch há um ou dois dos enigmas a que nos habituou o autor do Jardim das Delícias e do Carro de Feno, no esoterismo da sua terrível simbologia: a Virgem Maria está ao lado direito da cena, tendo nos braços um minúsculo Menino, e os Magos já não são os três caucasianos: além do rei calvo, ajoelhado, e de um outro, de pé, há um rei negro, jovem, grande, imponente, vestido de branco, com uma pequena escrava atrás, também negra. Entretanto, à porta, semi-nu, espreita o Anti-Cristo, outra novidade. A gruta é uma velha cabana e há pastores empoleirados numa árvore, à espreita, e em cima do telhado de colmo. Ao fundo, para lá do muro, há uma cidade mítica, sob o azul do céu; mais perto, dois exércitos parecem prontos a enfrentar-se, um homem puxa um burro, um casal contempla uma casa à beira do rio. Nas imagens laterais do tríptico, ficam, à esquerda, S. Pedro e o doador, e à direita, Santa Inês e a doadora.


O rei negro, Baltazar, que aparece claramente em Bosch e em Dürer, vai ter uma representação original na Adoração dos Reis Magos, de Vasco Fernandes, o “Grão-Vasco” de Viseu, o grande nome da pintura portuguesa quinhentista. Na Adoração de Grão-Vasco, Baltazar é um índio do Brasil, semi-vestido à europeia mas com um toucado de penas. O painel deve ter sido pintado na Capela Mor da Sé de Viseu, entre 1501 e 1506, e é notável como o pintor integrou, no terceto visitante, o então exótico personagem. A moeda de ouro que o Menino português segura na mão é símbolo das riquezas da Expansão. As viagens de longo curso dos Portugueses estavam a trazer para a Europa a notícia de novas terras, novos produtos e novas gentes. Era uma revolução que também se reflectia na representação das cenas tradicionais da Vida Cristã, integrando um novo mundo, a descobrir, a explorar e a evangelizar.


Na belíssima Adoração dos Magos de Dürer, a Virgem, vestida de azul, tem ar de senhora importante, segura nos braços um Menino loiro e gordo e recebe os três Reis do Oriente: um deles velho, ajoelhado, o outro alto, com um ar nórdico, e o último um jovem negro, Baltazar. O presépio surge entre ruínas. No topo de uma colina, ergue-se uma cidade.

Muitos outros artistas do Quatrocento e do Cinquecento – Mantegna, Giorgione, Tintoretto – representaram a entrada de Deus na História, o mistério da Encarnação; a alegria do Natal, sempre, de alguma forma, ensombrada e iluminada pela tragédia da Crucificação e a Glória da Ressurreição.

Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569), é símbolo de um certo “Renascimento Nórdico”. Nasceu em Breda, no Brabante, andou por Roma, voltou a Antuérpia. Vindo depois do fantasmagórico Jerónimo Bosch, Bruegel, o Velho, começa por ter reminiscências do surrealismo apavorante do Jardim das Delícias e tem uma Adoração dos Magos com figuras que, excluindo a Virgem e Cristo, podiam ser arrancadas a Bosch. Mas assume depois um estilo único, com os Caçadores na Neve. A sua grande versão do Natal é o Censo em Belém: na neve – que não caía na Judeia, mas no Norte da Europa – S. José conduz a Virgem no burro, os três perdidos na pintura e na multidão de uma aprazível cidadezinha dos Países Baixos.

A Luz de Caravaggio

Na Contra-reforma pós-tridentina, Caravaggio surpreende pelo intenso realismo e pela violência expressiva da luz. Foragido, marginal, extremo, excêntrico, Caravaggio tudo pintou – dos mais crus temas bíblicos (as decapitações de Holofernes e Golias, por Judite e David) a cenas evangélicas e a deuses e demónios pagãos. Para a sua Natividade, não escolheu os Magos, mas os Pastores, iniciando uma escola de “Natività povera”, que progrediria no Seicento e no Setecento. A Igreja perdera parte do seu poder temporal e as consequências da Reforma e da Contra-Reforma também a chamariam a ser mais “igreja dos pobres”, mais evangélica. Caravaggio tem uma outra pintura de Natal, famosamente roubada, em que a Virgem é uma mulher jovem e bela que medita sobre o Menino deitado, e José, ao contrário do seu S. José velho de A Adoração do Pastores, é loiro, novo e está de costas. S. Lourenço aparece à esquerda e S. Francisco de Assis à direita, e há um anjo a descer a pique sobre o presépio.


Ao longo do século XVII, Guido Reni, Murillo, George de La Tour, Gerard van Honthorst e muitos outros, mais ou menos ilustres, foram pintando presépios e natividades. O processo de produção destas pinturas sagradas começava, geralmente, com uma encomenda, de um príncipe, de um mosteiro, de uma comunidade, de um burguês. A Encarnação, era, para todos, um tema central e a tradição variava entre a “Adoração dos Magos” e a “Adoração dos Pastores”, ou então abarcava todo o conjunto: um intenso microcosmo, irmanando magos e pastores, todos os homens e toda a criação, no intenso momento em que o divino irrompe na História e se juntam céu e terra, transcendência e humanidade, eternidade e vida quotidiana, Criador e mundo criado.

A interpretação de fundo é quase sempre ortodoxa, canónica; mas como é da mistura da divindade com a humanidade que se trata e o encontro se repete e renova no tempo, há na arrumação, nos cenários, nas vestes e nas atitudes, peculiaridades e originalidades, segundo o espírito do tempo e o génio do intérprete. Os pintores religiosos, tardo-medievais, como Giotto e Fra Angelico, são mais estáticos e simbólicos nas figuras; figuras a que a revolução do Renascimento traz humanidade e realismo, dando mais força às cores e encorajando a audácia. Caravaggio que, para Simon Schama, foi o artista que “produziu a pintura mais intensa da Cristandade”, representa esse limite.

As festividades da descrença

Depois da Revolução Francesa, enquanto na Literatura, de Dickens a Tolstoi, a Encarnação e o Natal continuam vivos, a grande pintura parece abandonar o Natal. No quadro de Gauguin de 1896, Te tamari no atua (“o Filho de Deus”), Maria, com o Filho nos braços, e José, sentado ao seu lado, com um estábulo e duas vacas ao fundo, são relegados para segundo plano por uma jovem taitiana adormecida, espojada em primeiro plano com um gato aos pés. Nos “séculos da descrença”, Gustave Moreau e George Rouaut aparecem talvez como os últimos pintores europeus a manter uma temática espiritual cristã explícita. O Cristo e sua Mãe Estudando as Escrituras de Henry Tanner, do princípio do século XX, fora como que uma despedida. Matisse pintaria ainda, em 1952, Nuit de Noel, um vitral encomendado, todo ele estrelas; e Dali, centrado na cruz, teria por único devaneio natalício os cartões de Boas-Festas. Tal como Andy Warhol que, longe já de burros, vacas, pastores, magos e anjos – e mais longe ainda da Virgem e do Menino-Deus –, inauguraria, nos seus cartões, o fim da era das imagens e o princípio da era dos enfeites: das árvores, dos elfos, dos arlequins, das bailarinas, das bolas e da ocasional estrela. Era essa, já claramente ultrapassada pelos embrulhos de coisa nenhuma e as anémonas ou alforrecas festivas que agora decoram as nossas inclusivas ruas.

Entre Auschwitz e os Goulags, a crença num Deus bom e todo-poderoso, num Deus infinitamente misericordioso, capaz de nos conceder o livre arbítrio e de se fazer Homem para nos resgatar e nos mostrar o caminho sem nunca se impor, foi sendo progressivamente apresentada como um atentado à lógica.

Agora a hegemonia cultural da “lógica” não se abate só contra a Fé cristã: luta contra a própria matriz cristã e até contra a narrativa e a mitologia do cristianismo.

Com as imagens (que valiam mil palavras) já devidamente canceladas e substituídas, Helena Dali, Comissária para a Igualdade na Comissão Europeia, viu chegada a a hora de banir a palavra que valia mil imagens, oferecendo em troca aos nativos um inofensivo embrulho de coisa nenhuma: por que não abolir a palavra Natal, substituindo-a por “período de festividades”?

“O Espírito sopra onde quer”

No Natal de 1940, Jean-Paul Sartre, internado no Stalag XIID, perto de Trèves, escreveu uma peça de teatro para os 4500 prisioneiros que ali estavam, como ele. Sartre, que não era de enfeites nem de embrulhos, defendeu sempre que o lado místico, cristão, da peça em nada o traía: era apenas uma expressão da “mitologia do Cristianismo” e da “narrativa da Natividade cristã”; uma forma (combinada com os padres também ali de detidos) de unir cristãos e descrentes na noite de Natal.

A peça chamava-se Bariona, ou le fils du tonnerre e nela Sartre pinta Maria e José no momento em que contemplam o filho, um filho que é também Deus encarnado. É uma reflecção sobre o Mistério da Natividade e também sobre o mistério da vida, da vida que nos cai do céu e nos braços e que nos remete, inevitavelmente, para o sagrado; a vida que começa, a vida sempre nova, única, surpreendente e irrepetível, a vida que é nossa e independente de nós, a vida que tocamos, mas que nos transcende:

“…Noutros momentos, Maria só pode permanecer em silêncio e pensar: ‘Deus está aqui’; e invade-a um religioso temor face a este Deus mudo, face a esta criança…porque todas as mães ficam assim, em êxtase, por momentos, diante deste fruto das suas entranhas, da sua carne, e sentem-se como que exiladas perante esta nova vida feita com as suas vidas. E nenhuma outra mulher teve Deus assim, só para si. Um Deus pequenino que se pode envolver nos braços e encher de beijos, um Deus tão cálido, que sorri e que respira, um Deus que se pode tocar e que vive… e é nesses momentos que eu pintaria Maria, se eu fosse pintor (…) E José, José? Eu não o pintaria. Mostraria apenas como que uma sombra ao fundo, de olhos brilhantes, pois não sei que dizer sobre José. E o próprio José não sabe o que dizer sobre ele … Ele adora e sente-se feliz por adorar.”

Estas palavras de Sarte, filósofo existencialista e ateu, só seriam surpreendentes se não soubéssemos, com S. João, que “O Espírito sopra onde quer”. Não foi esta Virgem Maria e este S. José e este mesmo Menino que, ao longo dos séculos, os grandes pintores foram redescobrindo e repintando, para nosso renovado encanto, surpresa e salvação?

Um Santo Natal, junto ao presépio.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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