Meu gosto pessoal é pela Bahia e pelo centro histórico. Como o Centro Histórico de Salvador tem pouca residência e, embora ele mesmo seja bem policiado, está encravado numa região cheia de cracudos. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Com
a pandemia, os patrões descobriram que os empregados não saem para
comprar cigarros e nunca mais voltar caso não trabalhem sob os seus
olhos. Não só o empregado trabalha quando está em casa com internet,
como o patrão ainda corta uma baita despesa com prédio. Assim, creio que
o home office tenha vindo pra ficar. O empregado vive de cuecas
defronte do computador e o empregador deixa de ter gasto com aluguel,
água, luz, computador etc.
Desses
empregos, nem todos podem ser feitos totalmente pelo computador. Os
advogados, por exemplo, volta e meia têm de ir ao fórum. Mas alguém que
trabalha com TI ou com textos não tem que ir a nenhum lugar específico
com frequência. Por isso mudar-se das metrópoles é uma tendência
racional.
Se
as pessoas seguem tendências racionais, são outros quinhentos. Creio
que seja mais factível, por exemplo, sair da capital de São Paulo ou do
Rio de Janeiro, cujos preços são notoriamente altos. Já na Bahia (e
talvez nos estados da região Nordeste e do Sul), os preços da capital
não são exorbitantes, e há um fator cultural relevante em sentido
contrário ao racional: é bonito morar na capital e feio morar no
interior. Em Salvador temos uma palavra para designar pejorativamente
quem vem do interior, que é “tabaréu”. Não designa um tipo cultural,
como "gaúcho" ou "caipira". É meramente pejorativo. Esse preconceito tem
uma razão de ser no Nordeste, já que a região só ganhou eletricidade em
seu interior com Lula. Quanto ao Sul, vemos que há um preconceito
contra os “colonos”, que são uma população de origem rural – sinal de
que entre eles a coisa também não é muito bem vista. Exceção parece ser a
área de histórico bandeirante, com São Paulo cheia de cidades com
classe média no interior. O uso estritamente ofensivo da palavra caipira
em declínio.
Há
um estranhamento mútuo e uma implicância entre o paulista do interior e
o paulistano, mas, creio, não um desprezo por quem mora no interior
pelo mero fato de morar no interior. Ao contrário: é até possível o
paulistano sair da capital e ir para o interior em função da qualidade
de vida, aceitando o preço de se submeter ao convívio com caipiras. É
mais ou menos como o inglês se mudar para a França apesar dos franceses.
O Rio de Janeiro
O
interior do Rio de Janeiro é pequeno demais para que os cariocas possam
formar um preconceito homogêneo contra fluminenses em geral. Há os
municípios que sabidamente são favelões tomados por tráfico, há os
municípios com praias paradisíacas que paulista adora (mas nordestino
não vai achar grande coisa, já que a água é gelada), há a região serrana
(que é turística), há os municípios que já têm jeito de Minas. O estado
do Rio é pequeno, tem bastante turismo interno e as partes urbanas de
fora da capital têm má reputação não por causa de um prestígio especial
da capital, e sim por causa de seu notório status de terra de
bangue-bangue com fuzil. Então o fluminense endinheirado vive zanzando
entre essas zonas de bangue-bangue; no verão vai à região de Búzios ou
Angra, no inverno segue o costume da Família Real e vai à Serra. Seu
contato maior com a anomia é quando pega a Linha Vermelha (se sai da
Zona Sul) ou a Amarela (se sai da Zona Oeste) e passa por uma imensidão
de favelas. Na parte do aeroporto internacional, algum prefeito achou
uma boa ideia botar uma contenção com desenhos feitos pelas crianças do
local. Talvez seja uma boa ideia mesmo. Fosse apenas uma contenção, e
não uma contenção piegas, ficaria evidente o propósito prático de
impedir arrastões. Mas impedir bangue-bangue, não serve. Às vezes
traficante fecha o trânsito para trocar tiro, razão pela qual a minha
tia me aconselha a pegar metrô para chegar à Zona Oeste e evitar a Linha
Amarela.
Noto
na classe média a tendência de querer “sair do Rio” (isto é, da
capital) e se mudar para a região serrana, onde o custo de vida é mais
baixo e o ritmo é mais sossegado. O estado do Rio, sendo pequeno,
conhecido de sua população e heterogêneo, não tem uma noção de “o
interior”.
A Bahia
Na
Bahia, percebi que fiz uma excentricidade ao me mudar para o interior.
“O interior”, no Nordeste, é visto como um lugar atrasado e pobre, onde
só faz sentido morar caso se tenha propriedades. Concursados muitas
vezes moram em Salvador e pegam a estrada para ir trabalhar no interior.
Por essas e outras, o senso de distância de um nordestino é bem
diferente do de um carioca. “Lá longe” para o baiano é Barreiras ou
Conquista, que requerem uma viagem de mais de dez horas para chegar. (E
eu já conheci funcionário público que morasse em Salvador trabalhando em
Barreiras. Vivia na estrada e tinha esperanças de conseguir uma
transferência. Na verdade, quase todo funcionário público da capital que
passa em concurso no interior vive ansiando pela bendita transferência)
Enquanto isso, Paracambi é “lá longe” para o carioca, que nem teria
como viajar dez horas em linha reta dentro do próprio estado.
Dada
essa noção de distância, não acreditei ter feito nada de muito
excêntrico ao me mudar para uma cidade a apenas duas horas da capital. E
acreditei ter feito algo de muito racional, já que conciliei um custo
de vida inferior ao de Salvador com o meu gosto pessoal e, de quebra,
melhoria da qualidade de vida.
Meu
gosto pessoal é pela Bahia e pelo centro histórico. Como o Centro
Histórico de Salvador tem pouca residência e, embora ele mesmo seja bem
policiado, está encravado numa região cheia de cracudos, o que me
obrigaria a me deslocar de carro. Só nisso os custos já sobem, e viver
com medo de cracudo é ruim. No mais, eu gosto de fazer as coisas a pé.
O
núcleo urbano de Cachoeira é um grande Centro Histórico com as fachadas
tombadas pelo Iphan, com umas favelinhas nas bordas. A cidade é pequena
o bastante para eu poder fazer tudo a pé nela; e, se eu quiser ir a
Salvador, basta pegar uma condução fora de horário de pico, e chego
aonde quero em menos tempo do que quem usa carro e fica preso em
engarrafamento.
Ainda
assim, cometi uma excentricidade porque fui morar num lugar mais pobre
do que minha cidade de origem. Sendo racional, morar num lugar pobre faz
de você um rico relativo, o que é bom para o bolso. Mas as pessoas não
são tão racionais assim; e, exceto quando são pressionadas por custos
exorbitantes, tendem a querer não ficar numa cidade “atrasada” ou
“pobre”. Prestígio é um fator de peso ao se decidir pela cidade onde
morar.
Padrões elevados
Nisso,
o interior do Nordeste preserva uma cultura e um estilo de vida mais
antiquados, já que pouca gente se muda para lá. Assim, minha mudança
para o interior trouxe uma grata surpresa que são padrões muito mais
elevados do que os meus.
O
exemplo mais fácil de explicar é o ambiental. O Rio Paraguaçu, que
banha a cidade, é bonito e piscoso. Mas quem ouvir um morador da cidade
falando do rio vai achar que se trata do Tietê. Uma fábrica de couros
foi instalada nas cercanias e, segundo dizem, desde então a água não é
mais potável. Além disso, parece que há um ponto em que as pessoas jogam
lixo. E tudo isso faz do Rio Paraguaçu um “rio poluído” segundo a boca
do povo. Eu acho ótimo que os parâmetros deles sejam assim. No que
dependesse de gente com parâmetros similares aos meus, metropolitanos,
só ia estar poluído quando começasse a feder.
A
questão do prestígio afeta também as vizinhanças. Nas metrópoles, o
corte é por mera renda: cidade boa é cidade cara, bairro bom é bairro de
rico. A única má surpresa de Cachoeira para mim foram os preços dos
imóveis, consequência do tombamento pelo Iphan. Assim, o povo pede
quatrocentos mil por casinhas regulares dos anos 50 em área contígua a
favela. Por outro lado, uma casa melhor do que essas, numa área sem
espaço para sequer surgir favela, tem o preço despencado em função da
presença tradicional de cabarés na rua. As pessoas não têm problemas em
morar perto de favela, mas acham um absurdo morar na rua do cabaré mais
tradicional. Ou seja: eles têm outro parâmetro que não a renda para
decidir se um local é bom ou ruim. Como na rua dos cabarés não tem
cracudo, para meus parâmetros metropolitanos está tudo muito melhor do
que a encomenda. De quebra eu fico espiando a vida alheia e catando
assunto para escrever. Se você é escritor, morar junto de cabaré faz bem
à profissão.
Por
último, há a segurança. Os peões que fizeram cara de enterro quando me
mudei para junto do cabaré me advertiram muito que Cachoeira está
impossível e me mandaram fechar a porta. Elementar, eu sempre tranco a
porta. Demorei a entender que estavam me recomendando não deixar a porta
da rua escancarada, como fazem ainda alguns velhos pobres. Dados os
meus parâmetros metropolitanos, nunca houve a possibilidade de deixar a
porta da rua escancarada. Eu tranco a porta com naturalidade ao entrar;
cresci assim. Mas em Cachoeira a visita pode ficar assustada, achando
que estou com segundas intenções.
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