Incapazes de enfrentar o lobby da educação, o MEC e o presidente praticamente pedem desculpas diante de acusações de interferência no Enem. Paulo Polzonoff para a Gazeta do Povo:
O
tema da redação do Enem deste ano, “Invisibilidade e registro civil:
garantia de acesso à cidadania no Brasil”, é o exemplo perfeito de tudo o
que há de errado não só com o exame como também com a educação
tupiniquim. E o mais curioso é que vi conservador celebrando o fato de
não ter sido uma pauta explicitamente progressista como, sei lá,
linguagem neutra ou outras quimeras. Para se ter uma ideia do nível a
que chegou a doutrinação por aqui.
Nem
vou falar da rima evidentemente indesejada no enunciado do tema.
Afinal, estamos muito, muito, muito distantes (distantes mesmo, caso
você tenha ficado em dúvida) de formar professores capazes de entender e
repudiar esse tipo de problema, quanto mais de admirar quando o
escritor faz malabarismos para criar uma frase sem ecos ou outros vícios
de linguagem. O interessante é que é esse mesmo grupelho de sempre que
exalta a genialidade de uns escritores que vou te contar, hein?
O
primeiro problema de verdade que vejo no tema da redação do Enem, bem
como no Enem em si, é a aposta do país, enquanto sociedade, numa
educação planificada e igualitária – e, por consequência, nivelada por
baixo. Quando o Enem foi criado, lá no remoto ano de 1998, me lembro de
ver educadores enchendo a boca para falar numa verdadeira revolução
educacional no Brasil. Eles até tinham razão, mas por outros motivos.
Como toda revolução, essa também deixou para trás um cenário de terra
arrasada.
Tecnocrata,
quando dá para sonhar, acontece isso. O Enem é a concretização
tecnoideológica de uma educação utilitarista, que vê no diploma o ápice a
que pode chegar o intelecto humano. Perversamente, os defensores dessa
ideia reduzem as possibilidades dos indivíduos, condicionando-os a
pensarem dentro de limites bem estabelecidos. É como se nada houvesse
para além da educação formal de um currículo desenvolvido pelo Estado a
fim de criar dóceis cidadãos. Não seres humanos; cidadãos.
Daí
porque muitos nem percebem que, ao se associar a falta de um registro
civil à invisibilidade e propor que o aluno resolva esse “grave problema
social”, o Enem está contaminadíssimo pela ideologia progressista que
limita a capacidade de raciocínio das pessoas. Aliás, o próprio objetivo
da redação do exame – propor que o aluno resolva um problema de
interesse social – está carregado de ideologia. Afinal, ele pressupõe
que problemas complexos podem ser facilmente resolvidos, desde que bem
argumentados, em 30 linhas. Trinta linhas!
Não
se pode sequer contestar a existência do problema – e é justamente o
que eu faria se fosse o jovem rebelde de cabelos fartos que já fui um
dia. Porque não passa pela cabeça de quem elaborou a prova (e, pelo
jeito, também de quem a aplicou – o Ministério da Educação da
administração de Jair Bolsonaro) a possibilidade de um aluno com alguma
inteligência não enxergar na “invisibilidade cidadã” necessariamente um
problema, e sim uma escolha. Que tal, hein?
Eu,
se obrigado a escrever essa redação, iria por esse caminho. E, já me
alertou uma colega especialista no assunto, isso provavelmente
resultaria numa nota zero. Afinal, o examinador (provavelmente um
professor entediado, cria dessa mesma educação limitante) não está
minimamente preparado para se deparar com um argumento que derrube o
castelinho de cartas erguido ao longo de anos e anos de educação
esquerdista. Na alminha dos corretores, até por causa das dimensões
gigantescas da prova, não há espaço para a contestação ou a dúvida mais
sincera: e se o problema proposto não for um problema?
Pastelão
Ah,
agora vai me dizer que é fato dado que um ser humano não existe se não
for reconhecido pelo Estado! Há um enorme potencial metafísico e até de
filosofia política por trás da ideia de que o homem só é um ser político
se o Estado o reconhecer como tal. Por acaso não existe existência
(sic) sem o reconhecimento do Estado? Por acaso é um pedaço de papel que
determina quem sou e minhas possibilidades de agir no mundo? E por que a
alternativa “abdicar da cidadania” não está sobre a mesa?
Poderia
ficar aqui por horas e horas brincando com a ideia de que o problema
proposto pela redação do Enem não é um problema. E, no entanto, minha
recompensa por isso seria provavelmente um zero. Meu acesso ao
ensino-oh-superior seria impedido. Porque é da natureza das políticas
planificadas e igualitárias eliminar o diferente. Por mais que vivamos
na Era da Inovação (pelo menos é o que me garantem os coaches), o Enem
mostra que, enquanto sociedade, optamos pelo conformismo. Dá menos
trabalho, né?
Pior
ainda é ver o ministro da Educação quase implorando desculpas e negando
enfaticamente que tenha havido qualquer interferência na prova do Enem.
Que me perdoem os moderados mais exaltados, mas uma das plataformas da
campanha de Jair Bolsonaro não dizia respeito justamente ao fim da
doutrinação nas escolas? Por que, então, a vergonha de impor uma
política de educação neutra – tão neutra quanto pode ser uma educação
orientada pelo Estado?
(Em
tempo, e antes que algum espertinho venha me passar uma rasteira
retórica, não estou propondo que as questões do Enem substituam o olhar
progressista pelo reacionário. Combater a doutrinação esquerdista na
educação não significa substituir as menções ao “golpe militar” por
“revolução gloriosa” ou outra cafonice do tipo).
O
Enem é uma desgraça. Uma tragédia. Um câncer cujos efeitos nesse
organismo naturalmente debilitado chamado “educação” um dia ainda serão
estudados com espanto pelos acadêmicos do futuro. Que, como numa
coreografia de filme pastelão, levarão a mão à testa e dirão em
uníssono: “Mas o que foi que nós fizemos, hein?!”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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