O que temos hoje, no meio desta barulheira de profetas do apocalipse, é uma cruzada que ignora os pobres e que, ainda por cima, vem carregada de um moralismo que, no fundo, não é mais que a base de qualquer totalitarismo. Nuno Gonçalo Poças para o Observador:
1 Recentemente, numa entrevista ao semanário Nascer do Sol, o professor
António Vaz Carneiro referiu-se a dois estudos que demonstram que as
opiniões, mesmo as que deviam ser técnicas e científicas, sobre a
Covid-19 estão revestidas de uma religiosidade que nos devia
impressionar: no primeiro, americano, tinham perguntado a cidadãos em
confinamento se consideravam moralmente justificável o desvio de
recursos de doentes não-covid para doentes covid; no segundo,
neo-zelandês, perguntava-se se, perante um conjunto de dados objectivos e
factuais que contrariavam a ideia de que é possível eliminar o vírus,
as pessoas aceitavam esses dados.
No
primeiro caso, ficou demonstrado que as pessoas dão prioridade à
covid-19, mesmo quando lhes explicam que o impacto dessa opção nos
outros doentes é quatro ou cinco vezes maior. No segundo caso, as
pessoas demonstram a sua convicção relativamente à possibilidade de
eliminar o vírus, mesmo quando confrontadas com dados que lhes
demonstravam o contrário.
Vaz
Carneiro parte destes dois exemplos para reconhecer que há em tudo isto
um caso muito interessante e curioso de moral cleansing (limpeza
moral), a ideia de que a uma posição, que devia ser apenas objectiva e
técnica, passa a ter, acima de tudo, um revestimento de superioridade
moral, pelo que o que temos assistido nos últimos dois anos, seja do
lado de fanáticos pró-confinamentos ou radicais anti-vacinas, é à
evolução inédita da religiosidade no campo da saúde pública. O resultado
é evidente: deste revestimento moral de posições que deviam ser objecto
de discussão e debate para alcançar um objectivo (a saúde pública),
nasce uma situação em que se torna impossível chegar a posições
profícuas, equilibradas e proporcionais, porque se considera que uns
estão a seguir a ciência e os outros estão a negar a ciência.
Muita
gente tem dito que o País (e o mundo, já agora) se encheu de
epidemiologistas, que há em cada um de nós um especialista em saúde
pública, como se as opiniões sobre a pandemia só pudessem ser expressas
por médicos, cientistas, matemáticos ou membros do Governo. Não é
verdade. O que aconteceu foi que todos passámos a estar perante um
fenómeno de natureza social, como é uma pandemia, e tirámos sobre ele as
nossas conclusões, como tiramos, enquanto cidadãos de países
democráticos, sobre outros fenómenos de naturezas diferentes. O que
interessaria, em todo e qualquer caso, era que o debate gerado fosse
feito de maneira informada, com capacidade de ouvir opiniões contrárias e
sem juízos morais.
Haverá,
por exemplo, quem ache que o vírus não existe, ou que, a existir,
chegou de Marte pelas mãos de uma farmacêutica intergaláctica que
pretende destruir a vida na Terra. Admito que sim, embora não conheça
nenhum espécime deste género. Mas num País em que a população elegível
para vacinação está praticamente toda vacinada, não será absurdo dizer
que esta é uma minoria muito, muito, muito pequenina. Por outro lado, há
pessoas que passaram um ano a achar normal coisas como: usar máscara
quando se anda sozinho na rua ou no carro; supermercados impedidos de
vender bebidas alcoólicas depois das 19h00; ser proibido comprar um
jornal ou um maço de tabaco numa bomba de gasolina ao fim-de-semana
depois das 13h00; um jovem ir sozinho à praia e ser perseguido pela
polícia no areal. O rol de medidas absurdas e desproporcionais não tem
fim. Como não tem fim a aceitação generalizada de todas elas. Há até
quem ache preferível viver num País que tem a covid-19 controlada mas um
excesso de mortalidade por outras causas nunca visto, a viver num País
que tem a covid-19 pouco controlada, mas com a mortalidade global dentro
do que é expectável – o que é preciso é olhar para a sociedade pela
lente de uma doença única. Estas pessoas, segundo a narrativa que se
tornou dominante, seguem a ciência. E como o debate está carregado deste
moralismo, quem põe estas coisas em causa não pode ser bem aceite, além
de recorrer também a uma radicalização pejada de moral. Daí à exclusão
social dos não-vacinados, vai o salto de uma pulga, depois de se terem
acusado os “incumpridores das regras”. Mesmo que estes sejam uma minoria
irrelevante, mesmo que a vacina sirva acima de tudo para proteger o
próprio vacinado do risco de doença grave e morte, os não-vacinados
passaram a ser os novos culpados morais do apocalipse que aí vem. Porque
o que aqui está em causa é, acima de tudo, uma visão apocalíptica do
mundo, mesmo que ela não seja consciente.
2
Como se refere na entrevista a Vaz Carneiro, a novidade é que esta
religiosidade no debate público chegou à saúde. Mas noutras áreas é um
fenómeno que tem feito o seu caminho. No livro ‘Apocalipse Nunca’
(editado em 2020, em Portugal, pela D. Quixote), o ambientalista Michael
Shellenberger, cansado dos constantes anúncios do fim do mundo
decorrente das alterações climáticas, propôs-se fazer uma defesa do
humanismo, na sua vertente secular e religiosa, «contra o anti-humanismo
do ambientalismo apocalíptico». É fácil perceber que Shellenberger
passou de ambientalista a negacionista das alterações climáticas – não
por deixar de revelar preocupações ambientais, não por passar a negar as
alterações climáticas, mas apenas por recusar a visão apocalíptica do
fenómeno.
Deixo, além da recomendação da leitura do livro, alguns exemplos. Shellenberger recorda, a propósito de um alegado relatório do IPCC,
as afirmações de Greta Thunberg: «Por volta do ano de 2030, daqui a 10
anos, 250 dias e 10 horas, estaremos numa posição em que desencadearemos
uma reacção em cadeia fora de todo o controlo humano e que muito
provavelmente conduzirá ao fim da nossa civilização tal como a
conhecemos. Não quero que tenham esperança. Quero que entrem em pânico.»
E recorda também declarações da congressista americana Alexandria
Ocasio-Cortez, em 2019: «O mundo vai acabar dentro de 12 anos, se não
combatermos as alterações climáticas, e o vosso grande problema é como é
que vamos pagar isto?» Parece assustador.
Shellenberger,
porém, escreve que o IPCC nunca disse que o mundo acabaria ou que a
civilização colapsaria se as temperaturas aumentassem mais de 1,5ºC, mas
sim que para limitarmos o aquecimento a 1,5ºC desde os tempos
pré-industriais, as emissões de carbono precisariam de diminuir 45% até
2030. E sustenta, sem recusar a ideia de que há problemas ambientais
sérios por resolver, a sua visão anti-apocalíptica. Refere, por exemplo,
que a taxa de mortalidade por desastres naturais desceu 92% desde o seu
pico, na década de 1920. Nesta década, terão morrido 5,4 milhões de
pessoas devido a desastres naturais; na década de 2010-2020, morreram
400 mil, com uma população mundial quase 4 vezes maior do que um século
antes. Explica que, relativamente à subida do nível do mar, esta será
sempre lenta, o que permite às sociedades um largo período de adaptação –
e fala da Holanda, um País rico com um terço do território situado
abaixo do nível do mar. Em suma, Shellenberger explica que o que
determina a vulnerabilidade dos países face às alterações climáticas é o
facto de disporem ou não de meios, isto é, de serem ou não pobres,
salientando que há mais de uma década que as emissões de carbono
diminuem nos países civilizados. Na Europa, as emissões em 2018 eram 23%
mais baixas do que em 1990; nos EUA, as emissões caíram 15% entre 2005 e
2016; a Grã-Bretanha reduziu as emissões de carbono resultantes
especificamente da produção eléctrica em 63% entre 2007 e 2018. E as
emissões totais resultantes da produção de energia na Alemanha,
Grã-Bretanha e França atingiram o pico na década de 1970, em parte
devido à mudança do carvão para o gás natural e o nuclear (a que Greta
Thunberg e Alexandria Ocasio-Cortez se opõem). Ou seja, «a maioria dos
especialistas em energia creem que, a exemplo do que aconteceu nos
países desenvolvidos, as emissões nos países em desenvolvimento
atingirão um pico e começarão a descrescer quando tiverem alcançado um
nível de prosperidade equivalente.» E defende que o que os países
ocidentais estão a fazer aos países mais pobres é uma espécie de
colonialismo ambientalista, proibindo-os de recorrer aos mesmos
instrumentos que fizeram com que a Europa e os Estados Unidos chegassem
aos actuais níveis de desenvolvimento.
No
livro, são referidos estudos que concluem que o alarmismo climático tem
contribuído para o aumento da ansiedade e da depressão, particularmente
entre as crianças: «Em 2017, a American Psychological Association
diagnosticou um aumento da eco-ansiedade e apelidou-a de “medo crónico
do juízo final ambiental”. Em Setembro de 2019, psicólogos britânicos
alertaram para o impacto sobre as crianças dos debates apocalípticos
sobre as alterações climáticas. Em 2020, um amplo inquérito descobriu
que uma em cada cinco crianças britânicas tinha pesadelos sobre as
alterações climáticas.»
3
No último Expresso da Meia-Noite, da SIC Notícias, o presidente da
Iniciativa Liberal disse que na reunião do Infarmed da passada
quinta-feira tinha sido partilhado um estudo feito recentemente em
Portugal que indicava que cerca de metade dos alunos do ensino
secundário têm problemas psicológicos decorrentes da pandemia – ou,
melhor, das medidas tomadas para responder à pandemia. A UNICEF
apresentou, por sua vez, um relatório que indicava que, na sequência das
medidas tomadas para fazer face à pandemia, havia, em 31 países pobres,
cerca de 200 milhões de crianças sem acesso ao ensino. Mas que
interessa tudo isto, afinal, se nós estamos focados em combater o
extermínio da humanidade (quer no caso da pandemia, quer no das
alterações climáticas)? Nós estamos a fugir ao juízo final, estamos a
renegar o “velho normal” e a abraçar uma vida nova, pura e casta, sem os
vícios do passado e a imoralidade dos negacionistas, para que havemos
de estar preocupados com a geração seguinte?
Num dos episódios do seu podcast no Público, Rui Tavares dizia,
em Abril de 2020: «Entre [os anos] 500 e 1500 não há praticamente
geração que não acredite ser a última, e o mais notável é que quem faz
essas previsões não são só profetas loucos ou marginais, mas os mais
importantes bispos, teólogos e autores de três religiões, duas delas
cada vez mais dominantes desde a Ásia Central até à Europa Ocidental. A
crença no fim do mundo para breve, para hoje, não é uma maluqueira das
franjas da sociedade mas um facto perfeitamente assumido por estas
sociedades a partir do topo da sua hierarquia religiosa, num tempo em
que a religião se foi tornando o discurso determinante, ou até mesmo o
pensamento único.»
É
muito curioso que este tipo de discurso fanático-religioso tenha
regressado em força no nosso tempo, sobretudo numa época em que a
religião no mundo ocidental não tem o peso social que tinha na Idade
Média. E voltou, logicamente, ao colo de dois fenómenos naturais: uma
pandemia e alterações ambientais. E, mais uma vez, não são profetas
loucos ou marginais quem partilha a sua visão do fim do mundo: são
chefes de Governos, são intelectuais reputados, são artistas de dimensão
planetária, é o Secretário-Geral da ONU. Recentemente, Greta Thunberg
apontou o dedo aos ingleses, culpando-os pela Revolução Industrial – o
que, na opinião da jovem sueca, foi o primeiro passo no sentido do fim
do mundo. O historiador britânico David Starkey rebate
o argumento: renegar a Revolução Industrial é, na verdade, renegar o
mundo moderno. Um mundo que nos trouxe vacinas, cuidados médicos,
bem-estar, educação, maquinaria, toda a espécie de tecnologia que
permitiu à humanidade ser cada vez menos pobre. E o que temos hoje, no
meio desta barulheira de profetas do apocalipse, é uma cruzada que
ignora os pobres e que, ainda por cima, vem carregada de um moralismo
que, no fundo, não é mais que a base de qualquer totalitarismo. Não
penso que já lá estejamos, não. Não é preciso entrar em pânico. Mas
talvez devêssemos começar a pensar nisto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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