Termos como 'criado-mudo', 'nas coxas' e 'doméstica' não surgiram da escravidão brasileira. Leandro Narloch para a FSP:
Por ocasião do Dia da Consciência Negra,
grandes jornais, portais de notícias e até agências de checagem
publicaram reportagens com mitos e erros rasteiros sobre a origem
histórica de palavras e expressões do português.
A BBC Brasil produziu o texto "Dez expressões do português de origem racista", que foi publicado no domingo por G1, UOL e site da Folha.
A
matéria reproduziu sem verificação informações de uma cartilha criada
pela Defensoria Pública da Bahia, segundo a qual a expressão "nas coxas"
teria origem racista porque remete a telhas "feitas de argila, moldadas
nas coxas de pessoas escravizadas".
A
imagem é cinematográfica, mas já foi desmentida diversas vezes. Em
2006, o arquiteto José La Pastina Filho, que foi superintendente do
Iphan do Paraná, analisou milhares de telhas coloniais.
Concluiu
que elas são em média bem maiores que coxas humanas. Escravos
precisariam ter 3,85 metros de altura para conseguir moldar as peças no
próprio corpo.
Outro
motivo para desconfiar da história é que a secagem de telhas de argila
leva diversos dias. A produção de apenas 20 telhas exigiria que dez
escravos passassem até 15 dias com as pernas imóveis, esperando o par de
telhas secar, para então levá-las ao forno.
Seria muito mais eficiente usar moldes de madeira –como, obviamente, olarias artesanais fazem há séculos.
A
Agência Lupa (uma agência de checagem de informações!) embarcou nas
mesmas fake news. Repetiu a tolice sobre a expressão "nas coxas" e
atribuiu à história do Brasil a origem do termo "doméstica", que se
referiria a mulheres negras domesticadas na casa de brancas.
Errado:
o termo vem do latim "domesticus", que já designava trabalhadores da
casa (do "domus"). Existe com o mesmo sentido em italiano e francês
("domestiques").
Tanto
a BBC Brasil quanto a Agência Lupa afirmaram que a origem da palavra
"criado-mudo" está na escravidão. Remeteria ao escravo que seguraria
objetos em "ambientes mais íntimos dos senhores e ali não podia abrir a
boca", segundo uma reportagem da CNN Brasil do ano passado.
Sério,
como alguém consegue acreditar nisso? A palavra vem de uma tradução do
inglês "dumbwaiter", o pequeno elevador de mansões usado para
transportar pratos e refeições, que chegou ao Brasil no século 19 por
influência da decoração importada da Inglaterra.
Além
disso, a primeira ocorrência do termo "criado" com o sentido de
"funcionário doméstico" data do século 13, segundo o Dicionário
Etimológico de Antônio Geraldo da Cunha.
Talvez a afirmação contrária seja mais razoável (ou menos ensandecida): racismo não
é usar o termo "criado-mudo", mas enxergar conotações raciais na
palavra "criado", que surgiu três séculos antes do início da escravidão
africana pelo Atlântico.
Diversos
leitores alertaram todas as publicações sobre esses equívocos. Até esta
terça (23), somente a agência Lupa havia respondido às críticas.
Admitiu
que "doméstica" não tem origem na escravidão e apontou argumentos
similares aos acima sobre os termos "nas coxas" e "criado-mudo", sem
admitir integralmente o erro.
Se
bastam cinco minutos de pesquisa para perceber que essas lendas não
fazem o menor sentido, por que pessoas com diploma as aceitam sem o
menor questionamento? Talvez por uma vontade irrefreável de acreditar no
que favorece uma posição política –e de continuar acreditando depois da
história ser desmentida.
É o mesmo padrão de comportamento de quem transmite fake news pelo WhatsApp.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário