Uma medida tão extrema que até partidários da vacinação ficam em dúvida alimenta as reações de protesto em vários países europeus. Vilma Gryzinski:
Como
tudo o que mobiliza grandes correntes de opinião na Áustria, sempre
alguém vai fazer uma referência a “aquele” assunto – a entusiástica
nazificação do país nos anos trinta.
Alguns
militantes da corrente antivacina chegaram até a usar as estrelas de
Davi amarelas, como os judeus na tão terrível época da história do país.
Ironicamente, alguns foram presos em manifestações de rua pelo uso
indevido.
A
normalmente civilizada e até um pouco tediosa Áustria está pegando
fogo. Outros países de padrão comparável, como Bélgica e Holanda,
também. Os protestos contra o passaporte da vacina na Itália nunca
congregaram tantos adeptos. Em Melbourne, na Austrália, que de caso
exemplar na contenção da pandemia virou problema pela fadiga face às
restrições, o que era ponto pacífico virou ponto de divergência.
O
caso mais extremo é o austríaco. A partir de 22 de fevereiro próximo,
pessoas não vacinadas podem ser interceptadas pela polícia se estiverem
em qualquer espaço público ou privado, como bares, restaurantes, parques
e jardins. A punição é multa e, no caso de quem não quiser pagar,
detenção. Cumulativamente, as multas podem chegar a 3.800 euros.
Tirar o parque e, principalmente, o bar de um austríaco não é coisa pouca.
As
questões éticas e sociais são muito mais sérias do que brincadeiras
assim. É admissível que um governo criminalize os não vacinados? Onde
está o limite menos prejudicial, já que não dá para falar em ideal, em
termos de direitos do indivíduo e de garantias à sociedade?
“A
sociedade está sendo maciçamente dividida e dirigida contra um grupo de
pessoas que estão sendo isoladas da vida pública e obrigadas a fazer
coisas que não queremos fazer”, disse ao New York Times uma participante
dos protestos, Katja Schoissenger, que levou um cartaz muito direto,
com três palavras que demandam reflexão: “Liberdade, Paz e Humanidade”.
Pessoas
como Katja são do bem ou são do mal? São “idiotas”, como qualificou o
primeiro-ministro holandês, Mark Rutte? Temos o direito de fazer esse
julgamento?
Um
detalhe importante: o governo austríaco é de direita, qualificada como
extrema quando foi eleito. O primeiro-ministro original, Sebastian Kurz,
teve que renunciar no mês passado ao ser flagrado usando dinheiro
público para pesquisas de opinião que o favoreciam. O governo hoje é
chefiado por Alexander Schallenberg, ex-titular das Relações Exteriores e
substituto legítimo pelo sistema parlamentarista, mas sem a força do
mandato das urnas.
Para
complicar, Schallenberg decretou um novo confinamento coletivo para
enfrentar a quarta onda. Ou seja, vacinados e não vacinados estão, no
momento, na mesma situação: trancados em casa.
A
Áustria, com 66% da população duplamente imunizada, é o país com o
maior número de novos casos de Covid-19 na Europa (990 por 100 mil
habitantes).
A
doença é tão insidiosa que dá nó na cabeça dos especialistas. Entre os
países menos afetados pela quarta onda, no momento, estão Itália e
Espanha, os pioneiros europeus no lockdown e medidas seriamente
restritivas, e a “rebelde” Suécia, que seguiu uma política bem mais
light. Vizinhos escandinavos como Noruega e Dinamarca, com números
comparativos menos negativos em termos de mortes, agora estão em posição
mais exposta.
A
revolta da vacina no coração civilizado da Europa evoca, curiosamente, o
movimento similar ocorrido no Rio de Janeiro em 1904, quando foi alta a
rejeição à vacinação compulsória contra a varíola (boato da época: as
pessoas imunizadas com vacinas feitas a partir do líquido das pústulas
de vacas contaminadas ficavam com feições bovinas).
“Não
queremos uma quinta onda, não queremos uma quinta ou sexta onda”,
apelou Schallenberg, cujo cargo, como na Alemanha, é chamado de
chanceler. Os não vacinados, e não convencidos pelo argumento, acham em
grande parte que o fato da vacinação não impedir novas ondas funciona a
favor de suas desconfianças, mesmo com o número de casos graves e mortes
drasticamente diminuído.
A
queda no número de mortes, tão auspiciosa mesmo com o aumento de
contaminações, também foi colocada em dúvida pela Organização Mundial da
Saúde. Num prognóstico extremamente pessimista, o responsável pela
divisão europeia da OMS, Hans Kluge, disse que até março do ano que vem
poderá haver mais 500 mil mortes na região (pelos critérios da
organização, ela inclui todos os membros da União Europeia, Reino Unido,
Rússia, Turquia, alguns países centro-asiáticos e Israel).
“A Europa está de volta ao epicentro da epidemia”, resumiu Kluge.
“Provavelmente
até i fim desse inverno, todos os alemães, como alguns dizem
cinicamente, estarão vacinados, recuperados ou mortos”, ecoou,
sinistramente, o ministro da Saúde da Alemanha, Jens Spahn.
Nos
Estados Unidos, onde a obrigatoriedade da vacinada defendida por Joe
Biden está tropeçando em decisões judiciais, o número de mortes pela
Covid esse ano, já com imunização disseminada da população, ultrapassou
os 385 343 casos fatais registrados em 2020.
Quanto mais rezamos, mais a assombração do vírus aparece.
Dizia
a Gazeta de Notícias de 14 de novembro de 1904, reproduzida no site da
Fiocruz: “Houve de tudo ontem. Tiros, gritos, vaias, interrupção de
trânsito, lampiões quebrados a pedrada, árvores derrubadas, edifícios
públicos e particulares deteriorados”.
Dá para acreditar que a Europa está chegando perto disso?
blog orlando tambosi
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