O que é o “centro”? Na ausência de qualquer caracterização política digna desse nome, só há uma definição possível: é ele. É ele o “centro”, a existência da sua própria pessoa, que englobaria a do PSD. Texto do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Procuro,
em geral, não me repetir. Variar de assunto. Falar de coisas
diferentes. Não me armar em especialista. Sobretudo em matérias nas
quais o meu conhecimento não difere em sofisticação do cidadão comum,
que são quase todas. E, em política, não afectar paixões excessivas,
sejam ódios ou amores, como quem usa as palavras para excitar em si,
entusiasmado, convicções à prova de bala. Mas a verdade é que, com estas
precauções todas, às vezes – poucas, graças a Deus -, deixo-me apanhar
por um assunto ou outro. Desta vez é Rui Rio.
Confesso
que não o percebo, por mais que tente o velho truque de me pôr, num
exercício de simpatia, no lugar do outro. “Não o percebo” quer aqui
dizer: não percebo o lugar em que ele se coloca. Tento, mas, por mais
que a imaginação se empenhe, sinto-me no vazio. Como se a sua identidade
não fosse capturável através da descrição de um ponto de vista sobre a
sociedade portuguesa, mas apenas por meio da afirmação pura e simples da
sua identidade pessoal, invariavelmente apresentada como magnífica e
excelsa. Fora disso, não consigo encontrar nada: uma visão, um projecto,
uma identidade que não seja apenas uma afirmação do Eu, mas algo
corporizado num sistema de ideias, boas ou más, que iluminem um
bocadinho o mundo através do lugar onde está.
Esse
lugar, ele define-o orgulhosamente como o “centro”. E no outro dia, na
Madeira, lá voltou a expô-lo pela milésima vez. O PSD, disse ele, é “um
partido de centro”. Não disse, notem, um partido “moderado”, que
significaria, com propriedade, uma recusa de extremismos, de que se
podem dar variados exemplos: disse “centro”. O que é o “centro”? Na
ausência de qualquer caracterização política digna desse nome, só há uma
definição possível: é ele. É ele o “centro”. Recusando, aparentemente,
qualquer necessidade de oferecer um conteúdo político substantivo a esse
lugar, define-o apenas e unicamente pela existência da sua própria
pessoa, que englobaria a do PSD. Ficamos, assim, apenas a saber que o
centro, de acordo com a sua identidade inabalável, é virtuoso.
A
partir desse lugar, um significado político vazio, disparou na Madeira
contra os seus adversários políticos internos, presumivelmente
descentrados, isto é, diversos dele. O que não deixa de ser curioso para
quem declarou altaneiramente que se absteria de participar no debate
interno com Rangel para se dedicar unicamente ao combate a António
Costa. Não vou comentar o que, mesmo aos olhos mais desprevenidos, foi
esse combate nos últimos anos: com a maior das boas vontades, foi o mais
invisível que imaginar se possa. Em contrapartida, vale a pena reparar
que, na frente interna, onde sente a sua identidade pessoal ameaçada,
cultiva o conflito permanente, e mais ainda, se possível, desde que se
declarou indisposto a conceder-lhe qualquer atenção.
Os
descentrados, vistos por ele, só sabem “dizer mal” de Costa. Esta
expressão é significativa. Criticar é, para Rui Rio, “dizer mal”. Esta
redução da crítica à maledicência – curiosamente reminiscente de José
Sócrates – é esclarecedora. A maledicência dirige-se às pessoas, não às
ideias e às políticas. No fundo, é o Eu de novo a falar, o Eu que se
sente atacado. Por interposta figura de Costa, é dele que “dizem mal”.
E, com efeito, a partir de um lugar vazio, despido de visão e projecto,
que pode ser atacado senão o Eu? O psicodrama substitui em permanência o
conflito político, essencialmente desordeiro, e, portanto, a seus olhos
aberrante. Costa, é claro, agradece, até porque, do fundo do seu
próprio vazio de ideias, é a política, concebida como puro exercício de
conquista e manutenção do poder, a única coisa que lhe interessa. Um
líder da oposição que vive num psicodrama permanente dá-lhe todo o
espaço e mais algum para fazer o que quer e sabe fazer. Não admira que
os costistas não lhe poupem elogios, que Rio recebe com evidente prazer.
É do PS, no fundo, que ele quer o amor: “tenho ouvido muita gente do PS
a dizer que se for eu o candidato do PSD não vota no PS e vota no PSD”.
Que doce ilusão!
A
recusa da política como conflito de ideias e projectos, que o lugar
vazio do “centro” epitomiza, não é algo de próprio a Rio. É qualquer
coisa que vem de muito atrás, de tempos prévios à fundação da democracia
e que, é verdade, teve sempre no PSD inúmeros representantes, ainda
hoje expondo a sua sabedoria na televisão, o mais das vezes mansos e
submissos. O conflito aterra-os, até porque risca abalá-los, e essa
recusa untuosa e vegetal integra a sua visão do mundo. Como diz Dâmaso
Salcede, numa cena memorável d’Os Maias: “Eu não quero problemas! Eu não
quero problemas!”. O suave acordo, quaisquer que sejam as
circunstâncias, é que é “chique a valer”. O que torna Rui Rio singular, e
que faz dele uma figura quase trágica, distinguindo-o dessa gente que
sobrevive a tudo, é esse desejo de acordo ser vivido acompanhado por uma
afirmação do Eu, que os outros, por receios sortidos, se abstêm
cuidadosamente de cultivar. No resto, é igual. A política, para ele, não
é conflito. A diferença é que o Eu, o detestável Eu, é. Pode ser
trágico, e até humanamente credor de compreensão. Mas politicamente é um
desastre.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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