Via FSP, artigo de Lygia Maria sobre a lógica puritana dos movimentos identitários:
Há
uma relação curiosa entre os movimentos identitários e o puritanismo: a
obsessão pelo detalhe. Segundo Max Weber (1864-1920), no catolicismo,
as práticas ascéticas eram hierarquicamente superiores a qualquer
atividade secular. Já no protestantismo de linha puritana, ocorreu um
vazamento do ascetismo para a vida cotidiana (secular).
Surge,
assim, um ascetismo laico, não mais restrito a monges enclausurados em
monastérios. As atividades do dia a dia transformam-se em formas
legítimas de dar glórias a Deus. Diz Weber: "Uma vida livre de todas as
tentações do mundo e dedicada, em todos os PORMENORES, à vontade de
Deus". Esse aspecto do puritanismo incentiva, portanto, a uniformização
da vida diária dos fiéis, conformando corpos e mentes.
Verificamos
essa mesma obsessão moralista pelos PORMENORES diários nos movimentos
identitários. Palavras, por exemplo, são alvo constante. Que palavras são machistas ou racistas?
Quais podem ou não ser ditas? Há quem considere a palavra "mulher"
transfóbica (o correto seria "pessoa com vagina"), outros querem proibir
"criado-mudo" porque seria racista.
Cada
conversa de botequim vira uma ocasião para dar glórias —agora não mais a
Deus— a uma determinada visão política. Cada indivíduo é militante de
uma causa e censor daquilo que a desvirtue. O pecado político está
sempre à espreita: surge um puritanismo secular e, com ele, vários
problemas.
Por
exemplo, o termo "criado-mudo" também existe em inglês (dumbwaiter) e
em alemão (Stummer Siener), e não se tem comprovação alguma de que haja
ligação com racismo. Palavras têm etimologia e a linguística é uma área
do conhecimento. Ao desvirtuá-las, a fim de encaixá-las em uma causa
político-ideológica, espalha-se ignorância e desrespeita-se o patrimônio
histórico de um povo: sua língua.
Além
disso, mesmo quando a origem da palavra é preconceituosa (como o termo
"judiar"), o uso não necessariamente o é: quem ouve a canção "Judia de
Mim", de Zeca Pagodinho, num churrasco de domingo e pensa na perseguição
sofrida por judeus durante o nazismo? Palavras não estão presas no
dicionário, os significados pragmáticos se constituem a partir de
interações em atos de fala; daí a impossibilidade de afirmar que uma
palavra sempre é racista ou machista, pois apenas o contexto in loco de
fala pode atestar a ofensa.
Isso
não quer dizer que não haja demandas legítimas dos movimentos
progressistas identitários, e sim que não faz sentido usar a mesma
lógica totalitária e moralista puritana que se pretende combater.
Questão de estratégia discursiva: afinal, como libertar dominados se
valendo da mesma lógica dos dominadores?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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