Na última década, a psicologia passou por um grande problema de credibilidade. Muitos estudos falharam nos resultados obtidos quando outros pesquisadores - que não os autores originais - tentaram refazê-los. O problema foi chamado de crise da replicação. Eli Vieira para a Gazeta do Povo:
Na
última década, a psicologia passou por um grande problema de
credibilidade. Muitos estudos falharam em ter seus resultados obtidos
quando outros pesquisadores que não os autores originais tentaram
refazê-los. O problema foi chamado de crise da replicação. Resumindo o
problema em seu livro Science Fictions, o psicólogo britânico Stuart
Ritchie declara que “com um estalar de dedos, cerca de metade de todas
as pesquisas da psicologia foram varridas do mapa”.
Este
ano, o entendimento da crise se aprofundou: Marta Serra-Garcia e Uri
Gneezy, da Universidade da Califórnia, mostraram na revista Science Advances
que os estudos que falham em ter resultados repetidos são citados 153
vezes mais do que os bem-sucedidos na replicação. Os autores interpretam
esse desnível como um indicativo de que os estudos irreplicáveis
apresentam resultados mais interessantes, fazendo com que os revisores
baixem a guarda e aceitem pesquisas de menor qualidade.
O
problema começou a ser notado por volta de 2012, quando falhou em ser
replicado um estudo que alegava que, ao ler palavras relacionadas à
velhice, as pessoas passam a andar mais lentamente, ou seja, a se
comportar como velhinhas. Esse fracasso iniciou um efeito dominó, e logo
os outros resultados também caíram, como os que sugeriam as seguintes
ideias:
*
Após lerem a respeito de ações antiéticas, as pessoas ficam mais
propensas a querer comprar sabonete para se lavarem da “sujeira”
psicológica.
* Ao ver dinheiro, as pessoas passam a se afastar das outras e a querer trabalhar sozinhas.
* Quando seguramos uma bebida quente, em vez de uma fria, consideramos menos ‘frias’ as pessoas com quem conversamos.
*
Quando são lembradas do estereótipo de que mulheres não são boas em
matemática, as mulheres se saem pior em testes de matemática (efeito
chamado de “ameaça de estereótipo”).
*
Antes de uma entrevista de emprego ou outra situação de teste, faça
antes ou durante poses com uma ‘postura de poder’: aberta, expansiva,
não tímida, com pernas separadas, mãos na cintura. Assim você ganhará
confiança e um impulso hormonal: mais testosterona, menos cortisol.
A
replicação do estudo da “velhice” refez o experimento recrutando mais
pessoas que o estudo original e, o que foi crucial para revelar que os
resultados originais não paravam em pé, com precauções metodológicas
como medir a velocidade com um aparelho automático que utiliza luz
infravermelha, em vez de confiar em pesquisadores com cronômetros.
Removido o fator humano na medição, sumiu o efeito.
Já
a promessa da ‘postura de poder’ caiu em descrédito em 2015, mas até
hoje é uma favorita de influenciadores e alguns políticos. Pode ser
verdade que as pessoas se sentem mais confiantes subjetivamente ao
ajustar a postura, mas isso não se reflete em seus níveis hormonais ou
no sucesso financeiro.
É
importante saber que as falhas de replicação não são o mesmo caso de
fraudes. Enquanto fraudes geralmente envolvem, por exemplo, a fabricação
de dados falsos, nessas falhas revelam-se erros não propositais
ocasionados por deficiências metodológicas, coincidências estatísticas e
pesquisadores inconscientemente empurrando os resultados que querem
ver, como no caso dos pesquisadores empunhando os cronômetros.
Qual
é o tamanho da crise da replicação? Para medi-lo, um consórcio de
cientistas escolheu 100 estudos de três revistas respeitadas em
psicologia. Publicaram suas conclusões em 2015 na revista Science: 61%
dos estudos não sobreviveram à tentativa de replicação.
Milgram e Zimbardo: desvendando a semente da crueldade?
Dos
estudos mais famosos em psicologia, a principal exceção à crise da
replicação é o realizado em Yale por Stanley Milgram em 1961. Meses após
o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel, Milgram queria
descobrir se a desculpa dada pelo nazista, de que estava só seguindo
ordens, fazia sentido. No primeiro experimento, 40 voluntários em
sessões separadas foram ludibriados por um “experimentador” e um
“aprendiz” a atuarem como “professores” administrando choques elétricos
que o aprendiz, um ator, fingia receber. 65% dos participantes
administraram, com algum remorso, o choque máximo de 450 volts, que
seria letal, seguindo as ordens do experimentador.
Apesar
de ter sido replicado com sucesso, Milgram ganhou críticos. “Alguns
defendem que a interpretação de que as pessoas obedecem cegamente a
autoridades malévolas não foi justificada porque, supostamente, os
participantes não acreditavam realmente que estavam machucando alguém”,
disse à reportagem o psicólogo social Lee Jussim, chefe do Laboratório
de Percepção Social da Universidade Rutgers.
Gina
Perry e seus colegas revisaram em 2019 as críticas ao experimento. A
mais frequente explicação dada pelas pessoas obedientes às ordens, após o
experimento, foi que não acreditavam que o aprendiz estava realmente
sentindo dor com os choques.
Milgram,
nos debates após o estudo, dispensou o ceticismo dos participantes
obedientes como uma defesa psicológica deles contra o incômodo de
pensarem na maldade de que são capazes. Entre os participantes,
diferentes motivos para duvidar que estavam diante de uma sessão real de
tortura foram dados: a impassividade do experimentador, a
improbabilidade de Yale permitir um experimento desse tipo, entre
outros. Porém, com algumas ressalvas, a conclusão de Milgram de que uma
parte preocupante das pessoas segue ordens antiéticas passou pela
replicação.
Inspirado
no estudo de Milgram, o Experimento da Prisão de Stanford, realizado em
1971, foi conduzido por Philip Zimbardo e é discutido em quase todo
curso de psicologia. O estudo, planejado para duas semanas, mas
interrompido no sexto dia, consistiu em separar os 24 sujeitos
envolvidos em guardas e prisioneiros. A conclusão do autor foi que o
tratamento cruel dado pelos guardas aos prisioneiros — como tirar as
roupas dos rebeldes e obrigar alguns a fazer necessidade em baldes — vem
da situação em si, e não de outros fatores como personalidade. Zimbardo
tornou-se uma celebridade da área, chegou a depor como perito nos
julgamentos dos guardas da prisão de Abu Ghraib, que torturaram presos
iraquianos na guerra do começo dos anos 2000, traçando paralelos entre
seu experimento e o que ocorrera lá.
Como
revelou em 2019 o documentarista e pesquisador Thibault Le Texier,
usando transcrições inéditas de fitas gravadas no experimento, Zimbardo
chegava a sugerir diretamente como os guardas deveriam atuar contra os
prisioneiros, por exemplo negando-lhes acesso ao banheiro. O
“experimento”, portanto, era mais semelhante a um teatro guiado por
parte dos guardas. Outro sinal disso era que Zimbardo levava um repórter
de TV a tiracolo durante o experimento, um sinal de interesse em causar
uma sensação midiática. “Os ‘resultados’ não têm significado
científico”, decreta Stuart Ritchie.
Palavra de especialista
Todo
o problema da crise de replicação da psicologia está em sua parte mais
científica, quantitativa. Ele serviu para motivar investigações de
replicabilidade em outras áreas, incluindo pesquisa com câncer, com
resultados preocupantes.
No
Brasil, o problema se soma a outros. Nos cursos de psicologia ainda é
popular um ensino com ares de relativismo, que apresenta diferentes
escolas de pensamento incompatíveis entre si sem ranqueá-las pela sua
base de apoio em evidências — na crise, a psicologia cognitiva sofreu
menos que a psicologia social.
Por
aqui, o padrão da evidência com frequência é relativizado, também, com
uma utilização frequente de estudos qualitativos (como entrevistas com
um grupo pequeno de pessoas) em questões que poderiam ser tratadas com
métodos quantitativos mais rigorosos.
“Eu
quase não dou crédito a estudos qualitativos”, diz o dr. Lee Jussim,
que é psicólogo social, “porque são sujeitos em grande medida aos vieses
de confirmação e interpretação do pesquisador e não são sujeitáveis a
qualquer coisa que possamos chamar de replicação. Não chego a dizer que
não dou crédito nenhum a eles porque, no seu melhor, eles podem
constituir uma base preliminar para dar credibilidade a uma hipótese que
então poderia, em tese, ser testada com mais rigor.”
Para
Jussim, o cientificismo, que é o preconceito de atribuir credibilidade a
algo porque tem sinais superficiais de respeitabilidade científica,
como ter sido publicado em periódico acadêmico com revisão por pares, “é
um problema sério no entendimento de resultados científicos tanto de
leigos quanto dos próprios cientistas”. A popularidade dos resultados
sem replicação, no entanto, “é mais provável que venha de os artigos
publicados dizerem algo que as pessoas já querem acreditar, de forma que
podem exibi-lo em alguma versão de ‘eu avisei’”.
Como
avisou o filósofo Francis Bacon ainda em 1620, “é um erro peculiar e
perpétuo do entendimento humano comover-se e estimular-se mais por
afirmativas do que por negativas”. Há esperança para a psicologia, se
ela estiver ciente dos vieses humanos que servem como obstáculo ao rigor
metodológico.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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