É necessário criar uma base comum de resistência e, sobretudo, algumas razões para acreditar em mudanças. Fernando Gabeira para O Globo:
‘É tudo um tecido de mentiras.’
Essa
frase de um personagem de Ingmar Bergman às vezes me vem à cabeça
quando tento sintetizar a política do governo Bolsonaro contra a
pandemia.
Noutros
momentos, procurei destacar a base dessa atitude devastadora, que é a
negação de fatos. A negação como fenômeno psicológico foi teorizada por
Freud em 1923. Sua filha Anna Freud ampliou os estudos do tema,
sobretudo em crianças.
Não
ver ou ouvir certos fatos às vezes é uma tentativa de evitar a dor ou o
desafio que abale nossas convicções do mundo. Nas crianças indefesas,
até que isso, em determinadas condições, tem um lado positivo e permite
seguir adiante apesar de experiências traumáticas.
Em
política, esse conceito de negação foi usado também para definir as
teses que negam o Holocausto e as atrocidades do regime nazista.
Mas
às vezes essa tendência se infiltra na sociedade. Michael Milburn e
Sheree Conrad escreveram um livro sobre as principais políticas de
negação na sociedade norte-americana.
Bolsonaro
se recusou a aceitar a existência da pandemia. Da célebre comparação do
vírus a uma gripezinha a todos os passos posteriores, sua atitude foi
negar.
No
auge da pandemia, já com 480 mil mortos, ele ainda fez uma tentativa
desesperada de negar que todas essas mortes foram causadas pela
Covid-19. Para isso, um auditor amigo produziu um relatório fake e o
introduziu no sistema do Tribunal de Contas da União.
No
entanto, na CPI da Covid, onde se apuram as responsabilidades, a
tendência do governo é negar sua política de adesão à hidroxicloroquina e
recusar a vacina. É a negação da negação.
O
que fazer com tanta mentira? Para a CPI, a tarefa é simples: alinhar
declarações, atitudes e documentos e provar que esse tipo de política
causou mortes.
No
campo político, entretanto, coloca-se uma questão importante: como
atuar na vida pública com um país tão intoxicado pela mentira?
Não
tenho ilusões de que o clima será muito melhor no futuro. O crescimento
da internet mostra como os grupos se atacam: como enxames de abelhas,
parecem morder diante de um pensamento que lhes desagrada.
Outro dia, questionado sobre a possibilidade de atenuação do clima, respondi longamente. Percebi como o tema me preocupa.
Um
dos caminhos é unificar o campo da oposição e reduzir a hostilidade
mútua diante do adversário comum. Coalizões mais heterogêneas, como em
Israel, surgiram da necessidade.
Para
reduzir a hostilidade no campo de oposição, não basta boa vontade. É
preciso reconhecer que existem candidaturas diferentes, representando a
esquerda, o centro e até a direita.
Os
que afirmam que não querem nem um nem outro, nem Lula nem Bolsonaro,
precisam avançar nessa forma simplificada, reconhecendo que não são
forças equivalentes; existe uma diferença de qualidade entre elas.
Isso
seria um primeiro passo. O centro seria criticado apenas por pensar de
forma diferente, mas não por estabelecer uma equidistância artificial
entre esquerda e extrema-direita.
Outra
ideia que me parece válida é reconhecer que Bolsonaro pode perder
apoio. A tática correta não é estigmatizar seus mais de 50 milhões de
eleitores. Erros históricos coletivos acontecem. A tarefa principal é
tornar leve o caminho de volta para uma posição mais sensata. O estigma,
pelo contrário, dificulta a vontade de mudar.
São
ideias iniciais. Quando as exprimi numa conversa com Fernando Henrique
Cardoso, Sergio Fausto lembrou o plebiscito no Chile e como uma posição
mais solar, mais leve, acabou derrotando a herança de Pinochet.
São
ideias iniciais, mas uma reflexão sobre o caminho. É insatisfatório
apenas denunciar as mentiras do governo Bolsonaro e seus passos rumo a
um golpe.
É
necessário criar uma base comum de resistência e, sobretudo, algumas
razões para acreditar em mudanças. Isso não purifica a atmosfera
política, mas pelo menos ajuda a respirar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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