Há
uma longa tradição nas análises sobre o desenvolvimento brasileiro que
aposta, com aderência quase religiosa, no estabelecimento de pares
dicotômicos como parâmetros tanto do sucesso quanto dos identificáveis
fracassos em nossa trajetória.
É
assim na oposição entre metrópole e colônia, litoral e interior, campo e
cidade, mercado externo e interno, matérias-primas e indústrias, estado
e mercado, latifúndios e reforma agrária. Todas elas amplamente usadas
como fundamentos em nossas muitas vezes caóticas tentativas de
entendermos, afinal, os motivos de nossa baixa compatibilidade histórica
com o desenvolvimento. Anos atrás esta versão apareceu na insana aposta
de que reservar mercado para elementos nacionais voltados à exploração
do pré-sal, inclusive mão de obra, era o melhor a fazer ante o
‘entreguismo’ que arruinaria nossa oportunidade de desenvolvimento a
partir do ‘ouro negro’ enterrado sob o Oceano Atlântico.
Embora
muitas vezes este modo de entendimento ainda se sobressaia, certamente
muito já se avançou nas tentativas de flexibilizar tais amarras — até
porque não só as pesquisas ficam cada vez mais profissionalizadas, mas
também porque basta que avancemos um pouco em nossa capacidade de
pensarmos criticamente para percebermos o quão distantes ficaremos de
nossos objetivos se continuarmos a insistir com essas falsas oposições.
Uma
interessante flexibilização reside na identificação e compreensão de
certo ‘transbordamento’ entre as atividades e regiões. Por exemplo, a
ampliação da produção açucareira teria ‘expulsado’ o gado de dentro ou
do entorno dos engenhos litorâneos de modo que a criação animal, ainda
que mantivesse — e reforçasse — seus vínculos com a produção agrícola,
se deslocava para regiões interioranas do sertão do nordeste ao longo
dos séculos XVII e XVIII. Ou quando a exploração aurífera de Minas
Gerais possibilitou a formação de uma hinterland fundamentalmente
comercial que a ligava ao extremo meridional da colônia, passando por
São Paulo e Paraná. A mesma mineração que justificou a intensificação do
relacionamento entre o litoral — o Rio de Janeiro, distribuidor de
escravos — e o interior. E assim podemos identificar o transbordamento
do café do interior de São Paulo em direção à indústria. Ou da indústria
estatal que promoveu, entre outras coisas, o ‘transbordamento’ da mão
de obra do norte e nordeste para centros urbanos do centro-sul; e mesmo
da indústria multinacional de Juscelino que ‘transbordou’ para a
indústria privada e doméstica de autopeças e de construção civil —–
empreiteiras inclusas — nos anos 50 e 60 do já longínquo século XX.
A
lista é imensa, tanto quanto a de patetices que ainda dominam salas de
aulas pelo país afora (ou adentro) e que repetem, como papagaios, a
velha e boa — mais velha do que boa — dicotomia ‘colônias de exploração’
e ‘colônias de povoamento’ para explicar a instransponível diferença
entre os resultados brasileiros em longo prazo e os dos nossos vizinhos
do norte do continente. Contudo, o tempo da atualidade parece ser
adequado para um questionamento dos itens que compõem tanto nosso
viciado olhar de ‘oposição’ quanto o mais complexo do ‘transbordamento’.
Isso
porque os resultados de médio prazo do que chamamos de globalização e
os de curto prazo impactados pela pandemia nos pressionam por outras
interpretações ou, no mínimo outros ‘transbordamentos’, se quisermos ter
o mínimo de dignidade no futuro próximo.
Entre
eles está o avanço do eixo que integra o interior de São Paulo, o
centro-oeste e partes do nordeste, incluindo o sul da região norte. Ele
é, contraditoriamente, o sucesso e o fracasso dos efeitos da
reorganização da economia internacional nas últimas décadas. Sucesso
porque é ele que se mantém, junto com a incrível consolidação do setor
bancário-financeiro após a ‘limpeza’ de meados dos anos 90, como não só a
maior resistência, mas como a liderança da participação nacional no
sistema econômico ampliado pela globalização. Fracasso porque demora
demais para ‘transbordar’ seu sucesso para outras atividades e setores
que serão ainda mais fundamentais para a perenidade desta posição.
A
dúvida é sobre os motivos de tamanha demora. Apostaria um dedo das mãos
na hipótese de que ela se deve à insistência da mentalidade de
‘oposição’, que não deixa muitas brechas para que identifiquemos,
entendamos e projetemos as relações positivas entre os setores
econômicos, políticos, e também dos planos culturais e mentais, que
podem surgir do ‘transbordamento’ deste novo eixo em direção aos outros
que podem daí surgir. E, mais importante ainda, entre os ‘antigos’
eixos, setores e mentalidades que lideraram o desenvolvimento no século
passado e este que vem pedindo passagem, com acelerada velocidade, nas
últimas três décadas. Ou seja, de que não é tempo de pensarmos como o
setor primário- agrícola vai ‘transbordar’ em favor da indústria, dos
serviços e da educação como, em tese, ocorreu no último século e meio.
Mas, ao contrário: como a indústria, os serviços e a educação vão
‘transbordar’ o que acumularam e concentraram em regiões urbanas e
metropolitanas em direção e benefício deste outro eixo
agrícola-exportador.
Os
outros nove dedos das mãos apostaria na hipótese de que, em consonância
com a anterior, não há nenhuma liderança sendo preparada para assumir
esta reorganização estratégica do país. Entre as lideranças empresariais
e econômicas sobra reclamação — muitas vezes coberta de razão — do
custo Brasil. E, com especial dedicação, desejos voltados à reedição de
estratégias protecionistas que, se no papel ou em experiências práticas
de outros países foram bem-sucedidas, no Brasil promoveram tanto ou mais
regresso e manutenção de práticas nefastas do que resultados positivos.
A lista é imensa e passa pelas velhas, viciadas e, temo que para muitos
perdoáveis, políticas de campeões nacional, rent-seeking e relações
obscuras entre a iniciativa privada e a pública.
No
plano político, compreensivelmente tomado pelos debates de curto prazo,
não se conjuga a possibilidade de que esta reestruturação econômica e
regional possa precipitar uma reorganização dos acordos e alianças de
modo a rompermos a armadilha preparada com o caldo do populismo mais
mesquinho que nos sobrou das experiências autoritárias do século XX. Ou
seja, o varguismo lulista e o udenismo bolsonarista que, por ora, nos
emparedam em um corredor estreito em direção às eleições do ano que vem e
também, possivelmente, às próximas.
Esta
incapacidade do espectro político-partidário de reposicionar suas
lideranças neste sentido apenas confirma, entre partes das elites
culturais e intelectuais, a versão de que a explicação para nossos
históricos problemas continua vinculada à abordagem da ‘oposição’. E que
insistir nessa gangorra é justificável desde que o ‘lado certo’ se
imponha. Assim, ela dá continuidade a seu tradicional entendimento
binário e dicotômico sobre nossa trajetória, não percebendo — ou se
negando a perceber — que esta abordagem, não obstante sua relevância,
não dá conta dos problemas atuais e, por isso, não nos ajudará a
resolvê-los.
A
qualidade da sobrevida que teremos dependerá do modo como, agora,
estabeleceremos um entendimento e, a partir dele, ações e projetos, que
relativizem a ‘oposição’ em beneficio do ‘transbordamento’ e de suas
direções. Caso contrário, perderemos mais uma vez a oportunidade de
perenizar as poucas boas oportunidades que temos. Ou alguém ainda se
lembra do pré-sal?
Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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