Em vez de informar e oferecer orientações seguras para a população, o presidente Bolsonaro optou pela desinformação, politizando as questões. Mas a sociedade reage. Editorial do Estadão:
A
edição brasileira de novembro do Journal of Democracy publica o artigo A
cartilha populista brasileira, de Amy Erica Smith. Ao analisar os
efeitos da pandemia e a reação do governo Bolsonaro sobre o
funcionamento das instituições democráticas, a professora de ciência
política da Universidade Estadual de Iowa apresenta reflexões
pertinentes. A resposta do presidente Jair Bolsonaro à crise sanitária
deixou muito a desejar, mas suas evidentes deficiências parecem ter
contribuído para uma maior resistência de outras lideranças e para uma
reação da sociedade civil.
“Apesar
das consequências humanas trágicas e incomensuráveis da covid-19 no
Brasil, a doença está provocando um impacto mais ambíguo na saúde da
democracia do País”, diz Amy Erica Smith. “Ao evidenciar as fraquezas de
Bolsonaro, a pandemia parece ter favorecido um movimento de resistência
por parte de outros representantes eleitos.”
Segundo
o artigo, “não é simplesmente que a incapacidade de Bolsonaro de conter
o coronavírus fortalece o sistema de freios e contrapesos. Os
acontecimentos dos últimos meses parecem ter revelado que algumas das
ameaças de Bolsonaro eram vazias. (...) À luz desses não acontecimentos,
o golpismo de Bolsonaro – ou seja, seu apoio ideológico aberto à
intervenção militar – parece cada vez mais ser apenas jogo de cena, uma
ameaça que ele faz como aceno a parte de sua base e intimidação da
oposição”.
A
respeito do comportamento de Bolsonaro na pandemia, a professora de
Iowa diz: “Em vez de repressão autoritária, Bolsonaro escolheu uma
estratégia mediada que acentua a polarização política e a ‘guerra
cultural’ nas redes sociais. Seus objetivos são controlar a informação e
promover uma narrativa alternativa da pandemia”.
Como
exemplo, Amy Erica Smith cita a defesa que Jair Bolsonaro fez da
hidroxicloroquina. “O objetivo de sua gestão ao promover o remédio não
parece ser melhorar a saúde pública, mas encorajar os cidadãos a
associar suas lealdades afetivas e identidades políticas ao
processamento de informações, transformando o julgamento de fatos em
questão de intuições e desejos subjetivos.”
Em
vez de informar e oferecer orientações seguras para a população, o
presidente Bolsonaro optou pela desinformação, politizando as questões.
Até mesmo a competência constitucional relativa à saúde pública,
compartilhada entre os entes da Federação, foi transformada por Jair
Bolsonaro em embate de forças políticas. “Bolsonaro tratou a pandemia
menos como uma crise de saúde pública e mais como um desafio de relações
públicas”, diz o artigo.
Ao
comentar a hostilidade presidencial às medidas de prevenção, que levou a
um “tipo peculiar de crise de governança”, a professora de Iowa recorre
ao conceito “carências do Executivo”, de David Pozen e Kim Lane
Scheppele, em contraste com os “excessos do Executivo”, quando o
presidente excede os limites legais às atribuições de seu cargo. Segundo
o artigo, “no longo prazo, essa tendência poderá não prejudicar as
eleições democráticas, mas afetará a capacidade dos cidadãos de
monitorar e responsabilizar seus representantes eleitos”.
Entre
os efeitos da pandemia, Amy Erica Smith destaca a reação da sociedade
civil. “Sem apoio governamental efetivo, grupos locais em comunidades
pobres tiveram que desenvolver redes de auxílio mútuo e regras informais
sobre máscaras e isolamento social. A imprensa registrou um
florescimento desse tipo de atividade entre associações de bairro,
movimentos sociais, igrejas e até mesmo gangues”, diz. Mesmo rejeitando a
ideia de uma idealização das instituições comunitárias, a professora de
Iowa reconhece que “tais movimentos podem servir de apoio a uma forma
de democracia local, participativa e não oficial”.
Na
pandemia, Jair Bolsonaro fez o oposto do que lhe cabia fazer. Esse modo
de agir suscitou a reação da sociedade. Melhor seria que o governo
cumprisse seu papel, mas isso não impede de reconhecer que a sociedade
reagiu. E essa reação, mesmo com todas as limitações, é sempre um óbice
aos populismos e autoritarismos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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