Vamos receber 2021 como vivemos este ano, em casa. Uma prisão domiciliar sem direito a recurso e com uma única instância de apelo, que não é deste mundo. E é de lá que virá o consolo: “aceitaremos o bem dado por Deus, e não o mal?" (Jó 2,10). Alexandre Borges para a Gazeta:
Nascido
e criado em Copacabana, descobri a vida entre o Morro da Babilônia e o
Oceano Atlântico, com suas avenidas barulhentas, confeitarias charmosas,
padarias caóticas e botecos sujos que fazem dela um dos locais mais
polifônicos que existem. A imagem que veremos hoje à noite, com a festa
oficial cancelada, é uma síntese dolorosa de 2020 e um chamado à
responsabilidade para o novo tempo que começa.
Passei
quase todas as minhas comemorações de réveillon com os pés descalços em
meio a milhões de turistas vestidos de branco na areia gelada de
Copacabana, entre fogos de artifício e barraqueiros que fazem seus
cercados ilegais na praia, ambulantes com isopor e o lixo que insiste em
ser lançado nas calçadas. Um ritual de início de ano poucas vezes
interrompido e, quase sempre, contra a minha vontade. Já disse,
irresponsavelmente, que um ano novo só pode começar se for recebido em
Copacabana. Que Deus não ouça.
O
bairro, nas últimas décadas, já não tinha nada de princesinha do mar.
Refúgio dos idosos que alimentam pombos e jogam dama no Posto 6, do
nascimento da Bossa Nova (desculpe, Ipanema), dos 18 revolucionários do
Forte, do Copacabana Palace, o edifício mais bonito do Brasil, dos
turistas bêbados de camisa florida abraçados com mulatas na Prado
Júnior, dos anônimos e inacreditáveis escultores na areia, dos judeus do
CIB e dos nordestinos da Serzedelo Corrêa, da molecada livre e solta do
Chapéu Mangueira, da classe média aposentada que trocou a missa do
domingo pelo chope da tarde de segunda. Um pouco de tudo, um
buffet-degustação da humanidade.
Não
existe consenso sobre a origem do nome do bairro, mas a hipótese mais
aceita é que, em algum momento do séc. XVI, um dos contrabandistas que
faziam a rota Brasil-Peru trouxe uma imagem de "Nossa Senhora de Kopa
Kawana”, referência ao deus inca homônimo, uma síntese perfeita do
sincretismo religioso dos cristãos que pulam as sete ondas e jogam
flores para Iemanjá nesta noite.
No
último dia da desastrosa gestão Marcelo Crivella, milhares de vagas de
estacionamento no bairro foram suspensas, a queima de fogos proibida e
grande parte do transporte público, vans e ônibus de turismo, impedidos
de entrar. Os milhões de forasteiros que todo 31 de dezembro prestigiam
Copacabana não são bem vindos em 2020.
A
última noite do ano da pandemia colocou a mais famosa comemoração de
réveillon do país na UTI. A decisão, inédita e extrema, é o certo a
fazer, e o sacrifício do setor hoteleiro e quiosqueiros, dos vendedores
de cerveja, das floristas e dos motoristas de peruas, dos mendigos e
organizadores de eventos, não pode ser em vão. A cidade vai pagar um
preço alto por muita irresponsabilidade que não é culpada, mas que sirva
de lição para quem acha que um país se administra com bravatas.
Vamos
receber 2021 como vivemos este ano, em casa. Uma prisão domiciliar sem
direito a recurso e com uma única instância de apelo, que não é deste
mundo. E é de lá que virá o consolo: “aceitaremos o bem dado por Deus, e
não o mal?" (Jó 2,10).
A
vida de Jó, uma festa de riqueza, paz e felicidade, foi também
cancelada sem que ele fosse culpado, muito pelo contrário. Seus amigos e
sua esposa tentaram que ele se voltasse contra a fortuna e contra Deus,
mas não conseguiram. Jó resistiu às mais extremas privações e, com fé
inabalável, foi recompensado ao final. Um recado de mais de três mil
anos que nunca perdeu a atualidade.
No
Eclesiastes, outra lembrança eterna: “para tudo há uma ocasião, e um
tempo para cada propósito debaixo do céu”. Que esta noite seja a última
deste tempo de tantos sacrifícios, perdas e dores. Que a festa cancelada
seja a chance de arrumar a casa para o novo, com mais responsabilidade,
prudência e maturidade. Estamos todos juntos nessa e, cuidando uns dos
outros, ressurgiremos. 2020 foi uma doença, mas tem cura. Ela se chama
2021.
Feliz Ano Novo!
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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