É preciso pôr termo aos abusos e normalizar a situação de todos os envolvidos. O bom senso recomenda. A democracia e a justiça exigem. Editorial da Gazeta do Povo:
Se o caso de Oswaldo Eustáquio e o inquérito dos “atos antidemocráticos” merecem um adjetivo, este é o de preocupante.
Eustáquio
está preso desde o último dia 18. Quatro dias depois de sua prisão,
devido a problemas hidráulicos no encanamento da sua cela, sofreu um
acidente e perdeu a sensibilidade das pernas. Não se sabe ainda quais
sequelas o episódio deixará. Se tiver sorte, sua paralisia pode ser
apenas temporária; se não, Oswaldo pode ficar com deficiência
permanente.
Independentemente
da gravidade do ocorrido, o fato é que Oswaldo Eustáquio não deveria
estar na cadeia. E isso não tem a ver com delitos que eventualmente
possa ter cometido, ou com a forma com que pratica a atividade
jornalística, objeto de crítica da parte de muitos profissionais de
mídia, mas com os inquéritos atípicos nos quais está imbricado.
O
próprio evento que levou à sua detenção na Papuda resta envolto em
dúvidas: Eustáquio pediu uma audiência com o Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos. Segundo o jornalista, uma autorização
lhe foi concedida. Segundo a Justiça, não — o que configurou quebra das
prerrogativas da sua prisão domiciliar e o levou à cadeia, onde sofreu o
acidente.
A
prisão domiciliar de Eustáquio deve-se às investigações instauradas
pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de seu presidente, o Min.
Dias Toffoli, com relatoria do Min. Alexandre de Moraes, no âmbito do
chamado inquérito dos atos antidemocráticos. Esta não foi a primeira
vez, no entanto, que este inquérito do STF levou Eustáquio à cadeia.
Entre junho e julho, o jornalista já havia sido preso, suspeito de
“impulsionar o extremismo do discurso de polarização contra o STF e o
Congresso Nacional”. Mesmo após sua soltura, o STF o proibiu até de se
comunicar pelas redes sociais.
Ilegalidades
jurídicas não são incomuns no Brasil. Várias são cometidas diariamente.
Dos mais de 700 mil presos em nosso país, incontáveis são os que estão
em situações de vida insalubre, sofrem maus-tratos, têm seus direitos
humanos diariamente feridos e estão detidos para além do prazo razoável,
sem julgamento ou audiência. O problema é que a natureza do caso de
Oswaldo Eustáquio não é apenas de injustiça: é uma anomalia jurídica.
As
ações do STF têm sido, desde o início, questionáveis tanto neste
inquérito como no das fake news. Como já expusemos em editorial
específico sobre o inquérito dos atos antidemocráticos, os cidadãos
brasileiros estão autorizados a criticar qualquer decisão do STF, bem
como seus ministros. Por certo, crimes de injúria e difamação, mormente
se cometidos no âmbito de alguma organização criminosa com o intuito de
destruir reputações, podem e devem ser julgados por instância
competente. O mesmo pode ser dito de incitação explícita a golpes de
Estado. A Constituição Brasileira protege a liberdade de expressão, mas
não a liberdade absoluta. Da forma que a Suprema Corte dispôs o
inquérito, entretanto, o que por vezes parece é que os membros do
tribunal queriam o direito de não serem criticados. Sendo assim, a
prisão de Oswaldo Eustáquio causou espécie: o que significaria
“impulsionar o extremismo do discurso de polarização contra o STF e o
Congresso Nacional”? Seria isso criticar os ministros? Pedir o
impeachment deles? Até agora, a própria materialidade delitiva não foi
claramente exposta pelo ministro relator.
Já
no âmbito do chamado inquérito das fake news, que foi aberto em maio de
2019, a intenção do Min. Toffoli era apurar o que considerava “notícias
fraudulentas” que manchavam “a honorabilidade e a segurança do Supremo
Tribunal Federal, de seus membros e familiares”. A ação se baseia no
Art. 43 do Regimento Interno da Corte, que prevê que o presidente da
instituição pode instaurar inquérito caso haja “infração à lei penal na
sede ou dependência do Tribunal”. A letra da lei demonstra por si que os
termos “sede ou dependência do Tribunal” foram interpretados de maneira
bastante elástica na ocasião.
Alexandre
de Moraes foi escolhido como relator — sem sorteio, em contradição com o
Art. 66 do mesmo Regimento Interno. O alvo das investigações era um
conjunto de blogueiros, militantes, ativistas e apoiadores do presidente
Jair Bolsonaro que supostamente promoviam “ações antidemocráticas” e
espalhavam fake news. Em cima dessas investigações, indivíduos tiveram
celulares e computadores confiscados, alguns passaram a viver em prisão
domiciliar, com os movimentos monitorados 24h por dia, não muito
distante do que já acontecera no inquérito dos atos antidemocráticos.
Novamente, Oswaldo Eustáquio foi um deles.
Em
toda essa longa série de eventos, o próprio STF é ao mesmo tempo
vítima, investigador, juiz e carrasco. Conforme diz a defesa do
jornalista, não há nem acusação formal e nem há acesso aos autos do
processo. Não se sabe quando Oswaldo Eustáquio será julgado.
Oficialmente, ele está preso por envolvimento na disseminação de fake
news e na organização de “atos antidemocráticos”. Não está claro no que
consistem esses atos antidemocráticos e fake news não tem tipificação
criminal no ordenamento jurídico brasileiro.
Desde
há muito tempo surgiram críticas contra essas ações do STF. Há
questionamentos substanciais, por exemplo, sobre a falta de objeto do
inquérito contra as fake news. Segundo o texto do Min. Dias Toffoli, as
opiniões verbais e textuais emitidas contra o STF violam sua
“honorabilidade e segurança” — mas de quais opiniões o inquérito está
falando? Qual o fato concreto que pede essa investigação? Novamente,
portanto, a própria materialidade dos crimes é nebulosa, o que é
inaceitável.
A
condução de todo esse processo é questionável e inspira perguntas sobre
quais os limites o Judiciário possui quando decide investigar um
cidadão privado. Não estaria a Suprema Corte agindo de maneira
policialesca no presente caso?
O
caso de Eustáquio não é o único. A defesa do empresário Otávio
Fakhoury, que também é investigado no mesmo inquérito das fake news,
teve acesso apenas parcial aos autos da investigação. Das 6.500 páginas
produzidas durante o processo, Fakhoury pôde ler um apenso de 376
folhas; pouco menos de 6% de todo o material coletado. Outros
investigados, como o empresário Luciano Hang; o deputado federal Filipe
Barros (PSL−PR); o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub; os
jornalistas Allan dos Santos e Bernardo Küster; a deputada federal Carla
Zambelli (PSL−SP), dentre outros, tiveram o mesmo problema — o direito à
“meia defesa”.
É
preciso um desfecho rápido para todo esse imbróglio de duvidosa
legalidade. Além de Eustáquio, diversos outros indivíduos estão presos,
impossibilitados de seguirem uma vida regular e de exercerem suas
atividades profissionais. Investigados no inquérito dos atos
antidemocráticos, os ativistas Sara Winter, Emerson Rui Barros dos
Santos, Arthur Castro estão desde o primeiro semestre com a liberdade
restrita: primeiro na cadeia e em seguida em prisão domiciliar. O uso da
tornozeleira é obrigatório. Além disso, são monitorados 24h por dia em
suas residências, não podem sair de casa sem autorização prévia e não
podem se comunicar entre si.
Sem
direito à ampla defesa, sem saberem por quais crimes serão acusados e
julgados e sem data de julgamento, a situação a que estão submetidos,
independentemente dos delitos que eventualmente tenham cometido, é
inaceitável numa democracia constituída. É importante lembrar que esses
cidadãos não podem trabalhar, não possuem meios de sustentar suas
famílias e nem mesmo podem ter acesso a auxílios para família de presos,
disponíveis para apenados no sistema carcerário brasileiro. Para além
do fato de o STF se colocar em relação a esses cidadãos enquanto vítima,
acusador e juiz, para além mesmo de todas as questões supracitadas
referentes aos inquéritos nos quais estão imbricados, o problema adquire
tons de caráter humanitário, olhando por essa perspectiva.
É
preciso que cheguemos ao desenlace dessa situação, que não parece
completamente compatível com os preceitos da democracia e tampouco se
aproxima das exigências do correto processo legal, à luz dos direitos
humanos. Como debatido acima, ainda inexistem acusações formais e mesmo a
natureza da detenção desses investigados é estranha; tampouco é claro e
preciso o objeto dos inquéritos — tanto o dos atos antidemocráticos
como o das fake news.
O
que deixa a situação ainda mais preocupante é que não há uma previsão
para o que está acontecendo na jurisprudência internacional. Conforme a
exigência da Convenção Americana sobre Direitos Humanos da Organização
dos Estados Americanos, em seu Art. 8.º, toda pessoa acusada de um
delito terá direito “de ser informado, sem demora, numa língua que
compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação
contra ela formulada”. Mas os investigados ainda não foram formalmente
acusados. A natureza de sua prisão, atualmente, se aproxima das prisões
políticas ocorridas em regimes autoritários.
Não
estaria o STF, em sua insistência em prolongar essa situação, maculando
sua reputação, ferindo certos princípios dos direitos humanos e
produzindo uma instabilidade jurídica que pode ter consequências bem
mais graves do que o recente acidente ocorrido com Eustáquio? É preciso
pôr termo aos abusos e normalizar a situação de todos os envolvidos. O
bom senso recomenda. A democracia e a justiça exigem.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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