Estudiosa do chamado RNA mensageiro (mRNA), plataforma utilizada nas vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna, Katalin Karikó, hoje com 65 anos, passou a maior parte da sua carreira recebendo recusas de financiamento para os seus projetos. Reportagem da Gazeta do Povo:
A
tecnologia que propiciou o desenvolvimento de vacinas altamente
eficazes contra a covid-19 em tempo recorde é novidade para a maioria de
nós, leigos, mas já faz parte da vida da bioquímica húngara Katalin
Karikó há décadas. A cientista que hoje é aclamada internacionalmente
como uma das pesquisadoras que pavimentaram o caminho para os
imunizantes contra o coronavírus foi, por anos, alvo de descrédito
daqueles que achavam que a técnica pesquisada por ela não tinha futuro.
Estudiosa
do chamado RNA mensageiro (mRNA), plataforma utilizada nas vacinas da
Pfizer/BioNTech e da Moderna, Katalin, hoje com 65 anos, passou a maior
parte da sua carreira recebendo recusas de financiamento para os seus
projetos.
O
mRNA é um material genético sintetizado em laboratório que tem a função
de "levar instruções" para as células agirem. No caso da vacina contra a
covid-19, ele induz as células a produzirem uma proteína do vírus que
será reconhecida pelo sistema imunológico como uma ameaça, o que levará à
produção de anticorpos.
A
descoberta do mRNA, na década de 1960, foi recebida com entusiasmo pela
comunidade científica, mas sua possível aplicação em pesquisas com
humanos foi perdendo força por dois problemas: sua instabilidade e sua
toxicidade, como explica Luís Carlos de Souza Ferreira, responsável pelo
laboratório de desenvolvimento de vacinas do Instituto de Ciências
Biomédicas da USP. "É um material que se degrada muito fácil e é muito
reativo, causa uma reação inflamatória exagerada. Naquela época, você
aplicava em animais e eles morriam. Então, era arriscado testar em
humanos", explica o pesquisador.
Apesar
dos desafios no uso da tecnologia, Katalin decidiu migrar da Hungria
para os Estados Unidos em 1985, na esperança de encontrar um ambiente
científico mais propício a seus estudos inovadores. A descrença, no
entanto, se repetiu. Sem recursos para suas pesquisas, ela foi ameaçada
de deportação por desentendimentos com um dos seus chefes, na
Universidade Temple, na Filadélfia.
Em
seguida, foi trabalhar na Universidade da Pensilvânia, mas sua
insistência em um tema de pesquisa considerado fracassado fez com que
ela fosse rebaixada de cargo em 1995. "Geralmente, nesse ponto, as
pessoas simplesmente dizem tchau e vão embora, porque é muito horrível",
disse ela ao site Stat News. "Eu ganhava menos do que o técnico do
laboratório", contou Katalin, que na época já era pós-doutora.
Mas
a cientista não desistiu. Estava empenhada em descobrir uma forma de
driblar os problemas de instabilidade e toxicidade do RNA mensageiro e
tornar seu uso viável em humanos.
Nos
anos 2000, conseguiu se associar a Drew Weissman, um renomado
imunologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade da
Pensilvânia. Juntos, eles descobriram qual nucleotídeo (conjunto de
moléculas do RNA) provocava a reação inflamatória exagerada e o
substituíram por uma molécula sintética sem o mesmo potencial tóxico.
Nos
testes em animais, não houve reação inflamatória significativa, o que
indicava que a dupla finalmente havia descoberto uma forma de usar o
potencial do mRNA sem causar dano. A instabilidade do RNA foi
solucionada com o encapsulamento do material em uma camada de lipídios
(células de gordura). Os achados foram publicados em revistas
científicas a partir de 2005, mas demorou até que outros pesquisadores
dessem a devida atenção ao tema.
Nova fase
Somente
a partir de 2010, duas biotechs fundadas por acadêmicos, uma na
Alemanha e outra nos EUA, decidiram apostar na ideia. Seus nomes?
BioNTech e Moderna, justamente as primeiras empresas a apresentarem
resultados extraordinários de eficácia de uma vacina contra a covid-19
(95% e 94%, respectivamente).
Em
2013, Katalin, perto dos 60 anos, foi convidada a trabalhar na
BioNTech, que testava a tecnologia de RNA em tratamentos contra o
câncer. Com a chegada da pandemia, a húngara, já no cargo de
vice-presidente da empresa, participou do desenvolvimento da vacina
feita em parceria com a Pfizer. Não havia nenhum imunizante registrado
no mundo usando a tecnologia do RNA.
Redenção
Os
resultados de eficácia acima de 90%, anunciados em novembro,
surpreenderam até mesmo cientistas envolvidos no projeto. "Foi uma
surpresa para todo mundo. A gente esperava uma vacina de 60% a 70% de
eficácia, o que já é um índice excelente, mas ter mais de 90% foi muito
gratificante, o que, até anos atrás, seria impossível se não fossem
esses estudos de biologia molecular", diz Cristiano Zerbini, diretor do
Centro Paulista de Investigação Clínica e pesquisador principal do
estudo da vacina da Pfizer/BioNTech em São Paulo.
Para
Jorge Kalil, professor titular da Faculdade de Medicina da USP e
diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), a
história das vacinas de RNA demonstra a importância do investimento em
ciência básica.
"As
pesquisas de Katalin e de outros colegas, que avançaram no conhecimento
do RNA mensageiro, foram fundamentais para que conseguíssemos chegar
tão rápido a uma vacina eficaz. É comum que temas disruptivos gerem
desconfiança da comunidade científica porque vão contra os conhecimentos
que existem na época. Como aconteceu com ela, acontece com muitos
cientistas. É preciso ser perseverante", diz ele.
Próximos passos
Mesmo
após participar da descoberta que pode ser uma das mais importantes do
século, Katalin continua na missão de ampliar o uso da tecnologia.
"Estou esperançosa de que, agora, que há tanto interesse e entusiasmo
por esta pesquisa, será possível desenvolver e testar a tecnologia para
prevenção e tratamento de outras doenças", declarou ao site da
Universidade da Pensilvânia. Ela disse ainda que só conseguirá comemorar
a conquista quando a pandemia for controlada. "Vou celebrar de verdade
quando todo esse sofrimento humano e esses tempos terríveis acabarem",
disse.
Ao
menos uma luz no fim do túnel já começa a aparecer. Em menos de um mês,
3,2 milhões de pessoas no mundo foram imunizadas com a vacina da
Pfizer/BioNTech. No último dia 18, a própria Katalin entrou para esse
grupo. Ao lado de Weissman, seu parceiro de pesquisa, ela recebeu a
vacina que ajudou a criar. "Estou feliz e honrada. Sou mais uma
cientista básica, mas sempre quis fazer algo para ajudar os pacientes."
Depois de tanta espera, Katalin finalmente conseguiu.
Outras vacinas beneficiadas
Não
foram apenas as vacinas de RNA mensageiro que tiveram seu
desenvolvimento acelerado por pesquisas prévias, feitas anos antes do
primeiro caso de covid-19. Outros imunizantes com eficácia já anunciada
ou que estão na fase final dos testes clínicos foram beneficiados por
estudos iniciados para outros fins.
"Como
já tínhamos tido outros dois surtos de coronavírus no mundo, o de Sars
(Síndrome Respiratória Aguda Grave), em 2002, e o de Mers (Síndrome
Respiratória do Oriente Médio), em 2012, isso permitiu que fossem feitas
pesquisas na área que adiantaram algumas descobertas, como a de qual
proteína é responsável por se ligar ao receptor da célula humana. Isso é
fundamental para descobrir a forma de neutralizar o vírus", explica
Jorge Kalil, professor titular da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e
diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor).
A
vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com a
farmacêutica AstraZeneca - que no Brasil será produzida pela Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) - usa uma tecnologia criada para responder a
outras doenças que assustaram o mundo: MERS e ebola. Trata-se da
plataforma de vetor viral, quando um outro vírus, com menor potencial de
causar doença, é usado como vetor para levar o material genético do
novo coronavírus para dentro das células humanas, passando as instruções
para produção de uma proteína que vai provocar a resposta imune.
A
mesma técnica é usada na vacina Sputnik V, desenvolvida pelo Instituto
Gamaleya, da Rússia. Em ambos os casos, o vetor é o adenovírus, causador
de resfriado comum.
Os
testes de uma vacina contra a Mers utilizando essa plataforma já haviam
sido iniciados anos atrás pelos pesquisadores de Oxford, mas não foram
finalizados porque o vírus praticamente desapareceu, tornando difícil,
portanto, a comprovação da eficácia.
"Como
a Mers é causada por um coronavírus, foi muito fácil aproveitar a
plataforma e inserir o SARS-CoV-2 (causador da covid-19) nessa
plataforma para se chegar à vacina. Muitos estudos de fase pré-clínica
já estavam feitos", explica Sue Ann Costa Clemens, coordenadora dos
centros de pesquisa da vacina de Oxford no Brasil e diretora do
Instituto para a Saúde Global da Universidade de Siena.
A
Coronavac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria
com o Instituto Butantã, foi colocada rapidamente em testes com humanos
também graças a estudos prévios feitos pela companhia asiática de um
imunizante contra o coronavírus causador da Sars. Na época do surto,
entre 2002 e 2003, a companhia chegou a realizar a fase 1 de testes
clínicos do imunizante, o que acelerou as pesquisas de uma vacina contra
a covid-19.
Investimento
Além
das pesquisas prévias, foi fundamental no processo um investimento
pesado nas pesquisas de covid-19 e em estudos anteriores que já previam o
surgimento de novas doenças.
Uma
das iniciativas foi a criação, em 2017, da Coalizão para Inovações em
Preparação para Epidemias (Cepi). A organização, criada por governos,
fundações e empresas, tem como objetivo financiar pesquisas para novos
patógenos que podem representar uma ameaça global. No caso da covid-19,
já foi investido US$ 1,1 bilhão para o financiamento de pesquisas de dez
vacinas. "Esse investimento foi crucial porque pesquisa custa caro",
diz Sue Ann.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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