Em entrevista exclusiva à revista Veja, o ex-ministro da Justiça diz que o governo nunca priorizou o combate à corrupção:
Quando Sergio Moro decretou as primeiras prisões da Operação
Lava-Jato, em 2014, ninguém imaginava que começaria ali uma revolução
de consequências históricas para a política, a economia e o combate à
corrupção no Brasil. Em quatro anos, as investigações revelaram a
existência de uma monumental estrutura que tinha como membros ativos as
maiores empreiteiras do país, altos dirigentes de empresas estatais e
políticos de todos os quilates — de deputados a presidentes da
República. Todos se nutrindo da mesma fonte de um esquema que, durante
anos, desviou mais de 40 bilhões de reais dos cofres públicos, dinheiro
convertido em financiamento de campanhas eleitorais e propina. O caso
fulminou biografias, quebrou empresas, arrasou partidos políticos e
desmascarou muita gente que se dizia honesta. A histórica impunidade dos
poderosos levou uma surpreendente rasteira — e abriu caminho para que
um outsider chegasse à Presidência da República. Com a eleição de Jair
Bolsonaro e a nomeação de Sergio Moro para o Ministério da Justiça,
muitos apostaram que a corrupção sistêmica sofreria o golpe de
misericórdia no país — uma tremenda ilusão, segundo o próprio Moro.
“O combate à corrupção não é prioridade do governo”, revela o agora ex-ministro da Justiça, que foi descobrindo aos poucos que embarcara numa fria. Ele estava em casa na madrugada da sexta 24 quando soube que o diretor-geral da Polícia Federal fora demitido pelo presidente. Mas o episódio foi a gota d’água de uma relação tumultuada. Havia tempo o presidente não escondia a intenção de colocar no cargo alguém de sua estrita confiança. Bolsonaro frequentemente reclamava da falta de informações, em especial sobre inquéritos que tinham como investigados amigos, correligionários e parentes dele. Moro classificou a decisão do presidente de pôr um parceiro no comando da PF de uma manobra para finalmente ter acesso a dados sigilosos, deu a isso o nome de interferência política e, na sequência, pediu demissão. Bolsonaro, por sua vez, disse que a nomeação do diretor da PF é de sua competência e que as acusações de Moro não eram verdadeiras. O Supremo Tribunal Federal mandou abrir um inquérito para apurar suspeitas de crime.
Em entrevista exclusiva a VEJA, Moro revelou que não vai admitir ser
chamado de mentiroso e que apresentará à Justiça, assim que for instado a
fazê-lo, as provas que mostram que o presidente tentou, sim, interferir
indevidamente na Polícia Federal. Um pouco abatido, o ex-ministro
também se disse desconfortável no papel que o destino lhe reservou:
“Nunca foi minha intenção ser algoz do presidente”. Desde que deixou o
ministério, ele passou a ser hostilizado brutalmente pelas redes
bolsonaristas. “Traidor” foi o adjetivo mais brando que recebeu. Mas o
fato é que Bolsonaro nunca confiou em Moro. Sempre viu nele um potencial
adversário, alguém que no futuro poderia ameaçar seu projeto de poder.
Na entrevista, o ex-ministro, no entanto, garante que a política não
está em seus planos — ao menos por enquanto. Na quarta-feira 29, durante
a conversa com VEJA, Moro recebeu um alerta de mensagem no telefone.
Ele colocou os óculos, leu e franziu a testa. “O que foi, ministro?” “O
presidente da República anunciou que vai divulgar um ‘vídeo-bomba’
contra mim.” “E o que o senhor acha que é?”, perguntamos. Moro respirou
fundo, ameaçou falar alguma coisa, mas se conteve. A guerra está só
começando. Acompanhe nas próximas páginas os principais trechos desta
conversa.
“O COMBATE À CORRUPÇÃO NÃO É PRIORIDADE DO GOVERNO”
O ex-ministro Sergio Moro recebeu VEJA em seu apartamento em
Brasília. Na entrevista, que durou duas horas, ele lembrou que aceitou o
cargo de titular da Justiça diante do compromisso assumido por
Bolsonaro com o combate à corrupção. Aos poucos, porém, foi percebendo
que esse discurso não encontrava sustentação na prática do governo — e
ficou bastante incomodado quando viu o presidente se aproximar de
políticos suspeitos:
“Sinais de que o combate à corrupção não é prioridade do governo
foram surgindo no decorrer da gestão. Começou com a transferência do
Coaf para o Ministério da Economia. O governo não se movimentou para
impedir a mudança. Depois, veio o projeto anticrime. O Ministério da
Justiça trabalhou muito para que essa lei fosse aprovada, mas ela sofreu
algumas modificações no Congresso que impactavam a capacidade das
instituições de enfrentar a corrupção. Recordo que praticamente implorei
ao presidente que vetasse a figura do juiz de garantias, mas não fui
atendido. É bom ressaltar que o Executivo nunca negociou cargos em troca
de apoio, porém mais recentemente observei uma aproximação do governo
com alguns políticos com histórico não tão positivo. E, por último, teve
esse episódio da demissão do diretor da Polícia Federal sem o meu
conhecimento. Foi a gota d’água”.
O senhor acusou o presidente Bolsonaro de interferir politicamente na Polícia Federal. Tem provas disso? O presidente tem muito poder, tem prerrogativas importantes que têm de ser respeitadas, mas elas não podem ser exercidas, na minha avaliação, arbitrariamente. Não teria nenhum problema em substituir o diretor da PF Maurício Valeixo, desde que houvesse uma causa, uma insuficiência de desempenho, um erro grave por ele cometido ou por algum de seus subordinados. Isso faz parte da administração pública, mas, como não me foi apresentada nenhuma causa justificada, entendi que não poderia aceitar essa substituição e saí do governo. É uma questão de respeito à regra, respeito à lei, respeito à autonomia da instituição.
E quais eram as motivações políticas? Reitero tudo o que disse
no meu pronunciamento. Esclarecimentos adicionais farei apenas quando
for instado pela Justiça. As provas serão apresentadas no momento
oportuno, quando a Justiça solicitar.
“NÃO POSSO ADMITIR QUE O PRESIDENTE ME CHAME DE MENTIROSO”
O presidente Bolsonaro rebateu as acusações do ex-ministro. Ele negou
que houvesse tentativa de interferência política na Polícia Federal e
acusou Sergio Moro de tentar negociar a demissão do diretor da PF em
troca de sua nomeação para uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Moro
conta por que divulgou uma mensagem trocada entre ele e a deputada
federal Carla Zambelli (PSL-SP) e outra entre ele e Bolsonaro:
“Eu apresentei aquelas mensagens. Não gostei de apresentá-las, é
verdade, mas as apresentei única e exclusivamente porque no
pronunciamento do presidente ele afirmou falsamente que eu estava
mentindo. Embora eu tenha um grande respeito pelo presidente, não posso
admitir que ele me chame de mentiroso publicamente. Ele sabe quem está
falando a verdade. Não só ele. Existem ministros dentro do governo que
conhecem toda essa situação e sabem quem está falando a verdade. Por
esse motivo, apresentei aquela mensagem, que era um indicativo de que eu
dizia a verdade, e também apresentei a outra mensagem, que lamento
muito, da deputada Carla Zambelli. O presidente havia dito uma inverdade
de que meu objetivo era trocar a substituição do diretor da PF por uma
vaga no Supremo. Eu jamais faria isso. Infelizmente, tive de revelar
aquela mensagem para provar que estava dizendo a verdade, que não era eu
que estava mentindo”.
I
Na mensagem, Bolsonaro cita uma investigação sobre deputados
aliados e afirma que aquilo era motivo para trocar o diretor da PF. O
que exatamente queria o presidente? Desculpe, mas essa é uma questão
que também vai ter de ser examinada dentro do inquérito que foi aberto
no Supremo Tribunal Federal para investigar esse caso. Reitero a minha
posição. Uma vez dito, é aquilo que foi dito. Não volto atrás. Seria
incoerente com o meu histórico ceder a qualquer intimidação, seja
virtual, seja verbal, seja por atitudes de pessoas ou de outras
autoridades.
O senhor sofreu algum tipo de ação intimidatória após as revelações que fez? Atacaram
minha esposa e estão confeccionando e divulgando dossiês contra ela com
informações absolutamente falsas. Ela nunca fez nada de errado. Nem eu
nem ela fizemos nada de errado. Esses mesmos métodos de intimidação
foram usados lá trás, durante a Lava-Jato, quando o investigado e
processado era o ex-presidente Lula.
“NUNCA FOI MINHA INTENÇÃO SER ALGOZ DO PRESIDENTE”
Depois das denúncias de Moro, o Supremo Tribunal Federal determinou
que fosse aberto um inquérito para apurar se o presidente tentou de fato
aparelhar a PF para fins políticos. Em seu parecer, o procurador-geral
da República, Augusto Aras, pediu que também fossem investigados os
crimes de denunciação caluniosa e contra a honra — ilícitos que, em
tese, podem ter sido praticados por Moro:
“Entendi que a requisição de abertura desse inquérito que me aponta
como possível responsável por calúnia e denunciação caluniosa foi
intimidatória. Dito isso, quero afirmar que estou à disposição das
autoridades. Os ataques mais virulentos vieram principalmente por redes
virtuais. Não tenho medo de ofensa na internet, não. Me desagrada e tal,
mas se alguém acha que vai me intimidar contando inverdades a meu
respeito no WhatsApp ou na internet está muito enganado sobre minha
natureza”.
O senhor recebeu mais críticas ou apoios por se demitir do cargo e acusar o presidente? A opinião pública compreendeu o que eu disse e os motivos da minha fala. É importante deixar muito claro: nunca foi minha intenção ser algoz do presidente ou prejudicar o governo. Na verdade, lamentei extremamente o fato de ter de adotar essa posição. O que eu fiz e entendi que era minha obrigação foi sair do governo e explicar por que estava saindo. Essa é a verdade.
Qual é hoje a sua opinião sobre o presidente Bolsonaro?
Pessoalmente, gosto dele. No governo, acho que há vários ministros
competentes e técnicos. O fato de eu ter saído do governo não implica
qualquer demérito em relação a eles. Fico até triste porque considero
vários deles pessoas competentes e qualificadas, em especial o ministro
da Economia. Espero que o governo seja bem-sucedido. É o que o país
espera, no fundo. Quem sabe a minha saída possa fomentar um compromisso
maior do governo com o combate à corrupção.
“NÃO QUERO PENSAR EM POLÍTICA NESTE MOMENTO”
Em todas as grandes manifestações dos apoiadores do presidente, a
figura do ex-ministro da Justiça sempre ocupou lugar de destaque. Após
sua demissão, ele passou a ser tratado nas redes sociais como traidor e
oportunista que estaria tirando proveito político em um momento de
fragilidade do governo:
“Lamento ter de externar as razões da minha saída do governo durante
esta pandemia. O foco tem de ser realmente o combate à pandemia. Estou
dando entrevista aqui porque tenho sido sucessivamente atacado pelas
redes sociais e pelo próprio presidente. Hoje mesmo, quarta, ele acabou
de dar declarações, ontem deu declarações. Venho sendo atacado também
por parte das pessoas que o apoiam politicamente. Tudo o que estou
fazendo é responder a essas agressões, às inverdades, às tentativas de
atingir minha reputação”.
O que o senhor pretende fazer a partir de agora? Estou num
período de quarentena. Tive 22 anos de magistratura. Deixei minha
carreira com base em uma promessa não cumprida de que eu teria apoio
nessas políticas de combate à corrupção. Isso foi um compromisso
descumprido. Não posso voltar para a magistratura. Eu me encontro, no
momento, desempregado, sem aposentadoria. Tudo bem, tem gente em
situação muito mais difícil que a minha. Não quero aqui ficar reclamando
de nada. Pedi a quarentena para ter um sustento durante algum tempo e
me reposicionar, provavelmente no setor privado.
Não pensa em entrar definitivamente na política? Minha posição
sempre foi de sentido técnico. Vou continuar buscando realizar um
trabalho técnico, agora no setor privado. Não tenho nenhuma pretensão
eleitoral. Não me filiei a partido algum. Nunca foi meu plano. Estou num
nível de trabalho intenso desde 2014. Quero folga. E não quero pensar
em política neste momento.
“PODE EXISTIR UM MANDANTE DO CRIME”
Um dos motivos do desgaste de Sergio Moro e da direção da PF foi a
investigação do atentado que Bolsonaro sofreu durante a campanha. O
presidente não acredita que o garçom Adélio Bispo de Oliveira agiu
sozinho. Crê numa conspiração política patrocinada por adversários. A
polícia nunca encontrou nenhuma prova concreta disso. Questionado sobre o
assunto, o ex-ministro diz que a hipótese não é absurda:
“Existe uma forte suspeita de que o Adélio tenha agido a mando de
outra pessoa. A Polícia Federal fez a investigação. Como o presidente é
vítima neste caso, nós fizemos uma apresentação no primeiro semestre de
2019 no Planalto. Os delegados apresentaram todo o resultado da
investigação até aquele momento. Pende para o final da investigação um
pedido de exame do aparelho celular de um advogado do Adélio. A polícia
buscou esse acesso, e isso foi obstado pelas Cortes de Justiça, e ainda
não há uma decisão definitiva. Depois do exame desse celular, o
inquérito poderá ser concluído. Esse é o conteúdo de inquérito que foi
mostrado ao presidente, não é ilegal, já que ele é a vítima e tem, como
vítima, a meu ver, o direito de ter essas informações. Não é nenhuma
questão só do crime em si, mas um caso de segurança nacional. A suspeita
de que pode existir um mandante intelectual do crime não pode ser
descartada. Enquanto não se tem a conclusão da investigação, não se pode
ter um juízo definitivo”.
O senhor tem medo de sofrer algum atentado? Certamente. Sigo tendo a proteção da Polícia Federal. Não gosto de falar muito nesse assunto. Isso é algo que assusta pessoas próximas a mim.
Foi por isso que, antes de aceitar o cargo, o senhor pediu ao presidente uma pensão caso lhe acontecesse algo? Achei
engraçado algumas pessoas dizerem que seria um crime da minha parte. O
que aconteceu foi o seguinte: como eu larguei a magistratura, perdi a
aposentadoria e a pensão. E, como eu sabia que nós seríamos firmes
contra a criminalidade violenta, contra o crime organizado e contra a
corrupção, o que externei ao presidente foi um desejo de que, se algo me
acontecesse durante a gestão, como eu havia perdido a pensão, minha
família não ficasse desamparada. Certamente teria de ser analisada
juridicamente a viabilidade disso, e a aprovação através de uma lei. A
condição para que a pensão fosse paga seria a minha morte. Só externei
que, caso eu fosse morto em combate, fosse garantida uma pensão integral
à minha família, correspondente aos vencimentos de ministro.
O senhor se arrepende de ter largado a magistratura para entrar no governo Bolsonaro?
Não. A gente tem esse espelho da Operação Mãos Limpas, na Itália. Foi
feito um trabalho fantástico lá pelos juízes, mas houve um retrocesso
político na Itália naquela época. Eles lamentavam muito. Embora soubesse
que minha ida para o governo seria controversa, o objetivo sempre foi
continuar defendendo a bandeira anticorrupção, evitando retrocessos.
Não, não me arrependo. Acho que foi a decisão acertada naquele momento.
Agradeço ao presidente por ter me acolhido. Assumi um compromisso com
ele que era muito claro: combate à corrupção, ao crime organizado e à
criminalidade violenta. Eu me mantive fiel a esse compromisso.
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário