A saída do Reino Unido da União Europeia foi o acontecimento de 2019 que
vai marcar o nosso futuro. Hong Kong, como herança britânica na Ásia, é
a melhor resposta do Ocidente à China. Artigo de André Abrantes Amaral,
via Observador:
Os dois acontecimentos de 2019 que vão marcar o 2020 e os anos
vindouros foram a vitória eleitoral de Boris Johnson e os protestos em
Hong Kong. É interessante como ambos têm em comum a Union Jack como símbolo de liberdade e soberania.
Apesar de admirar a cultura britânica (ou talvez precisamente por isso
mesmo), fui dos que me decepcionei com a convocação do referendo sobre a
saída do Reino Unido da União Europeia. A democracia representativa,
legado que os Britânicos nos deixaram, não merecia tal. Mas o está feito
feito está e nada há a fazer que não seja continuar. O tempo tornou o
Brexit inevitável ao ponto de não haver volta a dar.
Mas não foi só o mero decorrer dos meses e dos anos desde o referendo
em 2016 e as eleições em Dezembro de 2019. A própria UE mudou. O
primeiro sinal concreto dessa mudança deu-se a 26 de Setembro de 2017
com o célebre discurso de Emmanuel Macron na Sorbonne
sobre o futuro da União Europeia . Neste, o presidente francês propôs a
criação de uma força militar comum de intervenção europeia e o
estabelecimento de um orçamento comum para a zona euro, que passaria a
ter um verdadeiro ministro das finanças. Perante o afastamento dos EUA e
da ameaça chinesa, a proposta de Macron é de mais integração europeia.
Na medida em que o discurso da Sorbonne foi proferido um ano após o
referendo do Brexit, não há dúvidas que para Paris o afastamento de
Londres implica um fortalecimento da posição francesa dentro da Europa.
Macron pretende no seu mandato corrigir o desequilíbrio que a
reunificação da Alemanha provocou no Velho Continente em detrimento da
França.
Assim sendo a UE de que o Reino Unido se afasta é uma União francesa.
Razão pela qual a França foi dura nas negociações com o Reino Unido ao
contrário da Alemanha que se comportou de forma mais contida. Berlim tem
preferência por uma união de cariz comercial, monetária, que conta com o
apoio militar norte-americano e vê em Londres um contrapeso às visões
imperiais francesas. Esta Europa alemã, tão vilipendiada nos últimos
anos pela esquerda que não gosta do comércio (esta ideia de Europa que
referi num artigo que escrevi no jornal i em 2012
– link já não disponível no jornal), afinal não saiu vitoriosa, mas
perdedora. Daqui a uns anos saberemos se o Brexit foi ou não uma
excelente decisão. Saberemos se o Reino Unido teve razão antes de tempo,
se saiu atempadamente da confusão europeia (como tem sido prática
habitual ao longo da história) ou se cometeu um crime de lesa-majestade.
É aqui que Hong Kong vem à baila e se justifica nesta crónica. Há dias o general Rocha Vieira, o último governador de Macau, disse à Renascença que Macau era um exemplo para o mundo
na sua relação com a China . Pequim concorda a 100%. A diferença entre
Macau e Hong Kong reflecte, e de que maneira, a diferença entre os
Portugueses e os Britânicos. De um lado a vontade em agradar traduzida
num ‘sentido de responsabilidade’ para com o poder central, do outro uma
aspiração de liberdade relativamente a esse mesmo poder centralizador. É
uma diferença cultural muito interessante pois tratam-se de dois países
com duas culturas, duas histórias comerciais com resultados
extremamente diversos.
Em virtude do meu trabalho tenho conhecido vários estrangeiros de
nacionalidades muito variadas e com quem troco experiências e
perspectivas, naturalmente diferentes da minha que sou Português a viver
no meu país. Um Britânico que vive em Portugal há mais de 20 anos, e cá
faz negócios e tem empresas, foi o primeiro a dizer-me que o Brexit
seria algo excelente porque a UE se tornou num complexo burocrático que
mata toda e qualquer
iniciativa, razão pela qual a Europa perdeu a batalha da inovação
tecnológica. Quando lhe perguntei se não temia pelos seus negócios em
Portugal (algo que também me afectaria) respondeu que não, que o Brexit
seria uma oportunidade para um novo acordo comercial com Bruxelas sem os
burocratas de Bruxelas. Um cidadão de Hong Kong, que trabalhou no duro
durante anos e que fez das tripas coração para poupar o máximo que
conseguiu, saiu a tempo da ex-colónia britânica. Foi o primeiro a
chamar-me à atenção para o reconhecimento facial que Pequim está a
instituir pela China e que vai liquidar a privacidade. Também me disse
que nunca duvidou das intenções da China em não respeitar o acordo sobre
Hong Kong, o que fez sair daquele território na primeira oportunidade.
Os dois têm em comum a capacidade de aliarem o pragmatismo à sua ânsia
de liberdade individual. A mesma falta de vontade para compromissos sem
futuro.
A leitura que faço sobre o ano que passou é muito pessoal (também se
não o fosse de que valeria escrever esta crónica?). Foi um ano em que se
acentuou a separação entre os que consideram ser possível pactuar com o
que não se acredita para se obter o melhor dos dois mundos e os que
concluem que, perante dois caminhos, só um pode ser seguido. Como tem
sido prática corrente, Portugal vai ficar onde está até não dar mais.
Não escolhemos porque queremos, mas quando somos forçados a isso. O
sentido de responsabilidade de Macau perante Pequim é o mesmo de Lisboa
para com Bruxelas. Não foi mau quando obrigou o nosso Estado a ter
contas mais equilibradas, mas a incapacidade de o país olhar mais longe
que os benefícios imediatos explica bem os tropeções que demos ao longo
dos séculos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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