Há que evitar a alteração dos programas de História para que lá caibam
as matérias e as versões que os ativistas querem que sejam ensinadas (e
para que se suprimam outras, que eles detestam). João Pedro Marques, em
artigo publicado pelo Observador, sobre o relativismo dos ativistas:
“Uma reflexão sobre a disciplina de História” é o título de um texto
que Miguel Monteiro de Barros, presidente da Associação de Professores
de História, publicou recentemente no Expresso. Esse texto é, em
simultâneo, uma defesa da nova disciplina de História, Culturas e
Democracia, do 12º ano, e também, ainda que não o diga explicitamente,
uma resposta a objecções ao programa dessa disciplina avançadas por
Jaime Gama, Jaime Nogueira Pinto e José Manuel Fernandes, no “Conversas à Quinta”, e igualmente por mim, num artigo no Observador.
Não obstante o que se alega no texto do Expresso, eu continuo a olhar
com muita reserva e desconfiança para alguns aspectos do programa dessa
disciplina. É claro que estamos a falar de um programa e muito
dependerá da forma como for posto em prática, mas há linhas
programáticas que são contestáveis, ou suspeitas, e a intervenção de
Monteiro de Barros não me tranquilizou. Reportando-me aqui apenas à
parte da sua “reflexão” que me é dirigida, começo por notar que não
responde à pergunta que fiz e volto a fazer: por que razão a nova
disciplina põe a tónica nos “passados dolorosos” e não nos “passados
auspiciosos” ou, como seria mais razoável, em ambos? Julgo que a
ausência de aspectos positivos do passado no quadro da disciplina revela
claramente, até prova em contrário, o seu pendor penitencial. É verdade
que Miguel Monteiro de Barros diz que os “passados dolorosos” são
“questões socialmente vivas” que merecem “ser discutidas de forma
informada e crítica”. Estou em crer que boa parte da nossa divergência
assentará precisamente nesses conceitos. Vejamo-los um pouco mais de
perto.
Comecemos pelas “questões socialmente vivas”. A primeira coisa que
importa notar é que os passados auspiciosos produziram tantas ou mais
“questões socialmente vivas” do que os passados dolorosos. Ora, se é
esse o critério por que razão não são igualmente estudados? Não se
percebe, pois não? Vejamos agora o caso concreto de uma das designadas
“questões socialmente vivas”: a escravatura. Seria a escravatura uma
“questão socialmente viva” na sociedade portuguesa há 10 ou 15 anos,
isto é, antes de, nos últimos tempos, uma certa camada universitária
nela ter injectado esse problema? Desde a década de 80 que estudo a
história da escravatura e posso garantir que não o era, o que, aliás,
não será de admirar se pensarmos que a participação directa da metrópole
portuguesa no tráfico transatlântico de escravos foi muito reduzida (menos de 4% do total)
e que a escravatura é algo que não existe legalmente no actual
território nacional há mais de 200 anos. Ou seja, o problema não existia
antes de o terem criado ou ressuscitado, de forma muito distorcida, e é
de temer que a nova disciplina de História do 12º ano possa servir para
várias ressuscitações ou injecções de supostas “questões socialmente
vivas”.
Tenho a mesma desconfiança quanto à matéria-prima que os autores do
programa da disciplina querem usar para ensinar os alunos do 12º ano a
fazer a História. Uma parte do texto do Expresso relaciona-se com a
crítica que fiz à primazia ou relevância dada às memórias no âmbito da
nova disciplina. Diz Monteiro de Barros, nesse texto, que “as memórias
individuais e colectivas — orais ou escritas — devem ser valorizadas
porque são essenciais para fazer História”. Serão essenciais? Dependerá
das memórias e de várias outras coisas, entre as quais o intervalo de
tempo entre a sua génese e a chegada até nós. Convém lembrar que as
memórias são fragmentadas, e geralmente emotivas e parciais, e que a
História, tendo as memórias em consideração, não se reduz a elas. Além
disso, e no caso das memórias orais, há o problema da distância. Admito
que “as memórias dos sobreviventes da Shoah podem ser tão ou mais
importantes para o apuramento dos factos e processos quanto os registos
nazis” (foi esse o exemplo que Miguel Monteiro de Barros utilizou), mas
já tenho mais dificuldade em aceitar pelo valor facial memórias a 200 ou
300 anos de distância e que foram, ao longo desse tempo, transmitidas
de pessoa a pessoa.
Como referi no meu artigo anterior e toda a gente perceberá, essa
transmissão permite várias adulterações (quem conta um conto aumenta um
ponto) o que é muito menos provável num documento escrito. O que está
registado, preto no branco, fica mais frequentemente inalterado do que o
que se transmite de boca em boca. Mas a veracidade de uma coisa e de
outra tem de ser avaliada por um historiador e está sujeita à crítica
documental. Quererá Monteiro de Barros fazer essa crítica documental e
“fazer História” nas salas de aula com alunos do 12º ano?
A História é uma actividade de rectaguarda, ponderada, amadurecida,
examinadora, que tenta sintetizar e conceptualizar, depois de analisar
muita informação, e não se faz na base de duas ou três opiniões ou
recordações de outros tantos cidadãos ou cidadãs. É por isso que pode
ser um erro introduzir memórias avulso na sala de aula sem o respectivo
escrutínio porque, para me ater ao mesmo exemplo, poderá haver a
tendência de aceitar as memórias dos sobreviventes do Holocausto como
boas, por virem das vítimas, e de rejeitar os registos nazis como
falsos, por virem dos verdugos. Ora, é errado pensar que há testemunhos
que são mais importantes ou verídicos do que outros apenas em função da
sua proveniência, como se os testemunhos tivessem cargas morais que os
certifiquem os desqualifiquem ab initio. Um historiador não pode
funcionar assim. Tem de ponderar tudo, de cabeça fria, e talvez fosse
esse o melhor ensinamento a transmitir aos alunos do 12º ano porque a
leitura emocional da História deve ser frontalmente rejeitada e eu
receio que o programa da nova disciplina a tolere ou, pior do que isso, a
encoraje.
Esse encorajamento está, aliás, e infelizmente, na moda. Há tempos deparei-me, no Público, com uma entrevista a Wayne Modest,
um ex-director dos museus de História e de Etnografia de Kingston,
Jamaica, actualmente a leccionar na Holanda, e que já esteve em Lisboa
para falar — sim, adivinharam — de descolonização dos museus. Que nos
diz Modest na referida entrevista? Em boa parte dela repete o já
conhecido e estafado discurso politicamente correcto sobre
descolonização do pensamento, sobre a exigência de pedidos de perdão e
de reparações, sobre o cuidado em evitar expressões ou imagens que
possam ofender as pessoas não-brancas que visitam os museus, etc. Tudo
isso é déjà vu. Mas no fim da entrevista, e depois de afirmar que
acredita no remorso, na vergonha e na culpa como formas de estimular a
acção, Wayne Modest confessa-se partidário de “uma leitura emocional da
História”.
Aqui em Portugal há muitos Wayne Modest. Por mais que se lhes mostre
que a sua visão sobre o passado está substancialmente errada, por estar
desfocada, descontextualizada, distorcida, eles carregam no pedal das
emoções e seguem a direito como se nada fosse. Mais preocupante ainda é
que há vários historiadores de esquerda que se gabam de não serem
imparciais, e fazem-no com espavento. Arvoram e anunciam a sua
parcialidade com sorrisos de orgulho como se ela fosse uma condecoração
ou uma menção honrosa, algo de que as pessoas devessem orgulhar-se. Para
que servirá a História que escrevem nestas circunstâncias? Em que é que
se diferenciará do mito, da memória não escrutinada, da propaganda e da
acção políticas e, em casos extremos, da histeria?
A entrevista de Wayne Modest é inquietante porque nos revela, uma vez
mais, a que ponto as Ciências Sociais e Humanas nas universidades estão
actualmente tomadas por pessoas com um quadro de pensamento
politicamente correcto e “emotivo”. É delas que vem, por exemplo, esta
corrente de acusações fora de tempo ao passado colonial dos países
ocidentais e, no âmbito que mais directamente nos toca, ao passado
colonial dos portugueses. A escravatura, o trabalho forçado, o
colonialismo, têm estado sob escrutínio e em julgamento quase diários
como se ainda fossem coisas do presente. Nas redes sociais, nas
televisões, em artigos na imprensa, os escrutinadores têm assumido o
papel de acusadores, exigindo ao Estado português confissões de culpa e
os correspondentes pedidos de perdão e a concessão de compensações
materiais ou outras. Têm reivindicado, também — e, pelo que se vê, com
algum sucesso —, a alteração dos programas de História para que lá
caibam as matérias e as versões que os activistas querem que sejam
ensinadas (e para que se suprimam outras, que eles detestam). Era de
evitar que essa corrente, que muito valoriza e privilegia as memórias
como fontes históricas, aproveitasse as aberturas que lhe são dadas no
programa da nova disciplina do 12º ano e impregnasse mais do que já
impregnou o nosso ensino.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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