Autora da monumental trilogia Virtudes Burguesas, a historiadora Deirdre
McCloskey é uma liberal em tempo integral, escreve Fernando Schüler na Gazeta do Povo:
Deirdre McCloskey visita o Brasil nesta semana. Concorde-se ou não
com suas ideias, é alguém que merece atenção. Ela é autora de uma
trilogia monumental, Bourgeois Virtues, sobre a formação do mundo
moderno, e recentemente lançou Why Liberalism Works, com um bom resumo
de suas visões, ainda sem tradução no Brasil.
Não faço ideia da razão pela qual a palestra que daria na Petrobras
foi cancelada. O que é irrelevante, visto que todos, como sempre, já
sabem de tudo, não é mesmo? Mas o episódio me dá uma boa pista sobre
como começar explicando quem é a senhora McCloskey.
Em primeiro lugar, é uma liberal em tempo integral. Não brinca com
essa história de separar a liberdade econômica das liberdades na cultura
e nos costumes. O liberalismo nasce do direito de dizer “não”. Ponto.
Seu vértice é a “igualdade de consideração e respeito”. Vem daí seu
horror a qualquer forma de reacionarismo, à esquerda e à direita, e seu
mau humor com o bolsonarismo. Em especial sua ideia de inflexionar
políticas públicas para a “maioria cristã”, real ou imaginária.
O liberalismo, na sua visão, não se situa em um algum ponto
intermediário entre esquerda e direita. Socialistas e conservadores
gostam do Estado, por diferentes razões. Liberais gostam do fluxo
espontâneo da vida. Isso vale tanto para quem quer enquadrar aplicativos
de transporte na CLT, padronizar as escolas ou dizer que tipo de arte
vale e qual a estrutura “verdadeira” de uma família.
Sua visão do mundo atual contrasta com o catastrofismo reinante em
boa parte do universo intelectual. Em 200 anos, diz ela, a renda média
cresceu perto de 30 vezes, e a miséria foi virtualmente extinta no mundo
avançado. Nos anos recentes, o avanço migrou para o mundo em
desenvolvimento. A igualdade cresceu entre os países. Entre o início dos
anos 1990 e 2015, segundo dados do Banco Mundial, caiu de 36% para 10% o
número de pessoas vivendo abaixo da linha de extrema pobreza, sendo a
China a maior responsável por esse resultado.
É no acesso a bens essenciais para o bem-estar, no entanto, que a
qualidade de vida e um sentido básico de igualdade vêm avançando mais
rapidamente. O Serviço de Estatísticas do Trabalho dos EUA mostrou que
“em 1901, um domicílio americano gastava em média 42,5% de sua renda com
alimentação, contra apenas 13,2% em 2002”. Os dados são amplamente
conhecidos e deixam muita gente nervosa. Eles põem água fria na retórica
de que estamos nos tornando uma enorme Gotham City, povoada por
palhaços abandonados e bilionários malvados.
Deirdre vai na contramão desse discurso, argumentando que são
exatamente políticas de abertura e inclusão ao mercado que vêm retirando
milhões de pessoas da miséria, mundo afora. Ela não vê problema na
desigualdade econômica ou na multiplicação do número de bilionários,
desde que sua riqueza venha da competição, da inovação, da melhora da
vida dos outros, e não da captura do Estado.
Perguntei-lhe qual a sua ideia mais original. Ela não pensou muito
para mencionar a tese de que é o livre fluxo de ideias e a inventividade
humana, não o capital, a geopolítica ou a educação formal, que estão na
base da prosperidade.
Seu foco são as ideias e a narrativa. A virada para o século 19
assistiu a uma mutação em vastas regiões da Europa e na América. O homem
comum, o padeiro, o comerciante, o inventor de coisas ganhou dignidade,
e sucessivas barreiras foram quebradas. Uma narrativa honrando o
“inovismo”, termo que ela por vezes usa no lugar de capitalismo, cumpre
aí um papel vital. Coisa que vai muito além do terreno econômico,
invadindo a cultura, os direitos, o sexo e os estilos de vida.
Deirdre chamava-se Donald e resolveu trocar de sexo, no fim dos anos
1990. Fez de si mesma um exemplo dessas coisas. Seus filhos não a
perdoaram. Tem um neto que nunca conheceu. Em algumas noites tristes,
costumava estacionar o carro perto da casa do filho mais velho e
observar seus amores, solitária. Com o tempo, parou de fazer isso.
Tornou-se uma professora bem-humorada com um evidente gosto para
desafiar o senso comum. Ela parece saber que, na vida pessoal ou
intelectual, a liberdade cobra seu preço. E que é preciso seguir
vivendo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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