Nenhum outro livro sobre o Holocausto teve o impacto de “Se Isto é um
homem”: um retrato da perda da humanidade quando tudo o que é humano
desaparece. Texto de Carlos Matias Bobone para o Observador:
Primo Levi é um daqueles casos em que a vida dá um significado
completamente diferente à obra. Seria sempre interessante ler as
reflexões de um cientista tornado escritor, em quem a falta de escola
literária é uma virtude e capaz de fazer da curiosidade um tema
livresco; no entanto, é a passagem por Auschwitz que transforma
verdadeiramente a obra de Primo Levi.
Levi chega a Auschwitz já na fase final da guerra, quando Mussolini
já foi preso e libertado por Hitler e, talvez por deveres de gratidão,
aproxima o seu governo do anti-semitismo Hitleriano. A história da sua
passagem por Auschwitz é contada naquele que se tornou o seu livro mais
famoso, Se Isto é um Homem e, embora o século XX tenha nobelizado uma
série de sobreviventes do Holocausto e se tenha comovido com centenas de
descrições dos horrores concentracionários, nenhum relato teve o
impacto de Se Isto é um Homem.
O livro de Primo Levi não é apenas uma descrição; na tradição
Ocidental está, aliás, mais próximo da Consolação da Filosofia ou da
Apologia de Sócrates do que de qualquer crónica bélica ou autobiografia
tribulada. Levi está interessado na baixeza e na crueldade, mas apenas
na medida em que uma e outra modelam o Homem. É, por isso, curioso
comparar a obra de Levi com a de outros homens na sua situação,
interessados pelos mesmos temas.
Boécio é preso a pretexto de uma conspiração contra o rei,
conspiração essa em que, a fazer fé na sua palavra e na de muitos
académicos, não tinha tomado parte. É condenado à morte e, enquanto
sofre na prisão, escreve aquele que se tornará o tratado clássico sobre a
Fortuna: a Consolação da Filosofia. Boécio é visitado por uma mulher, a
Filosofia, que lhe mostra a possibilidade da “vitória de uma morte
injusta”. Introduz uma galeria de personagens que farão eco por toda a
Idade Média – da Fortuna, que se apresenta pela primeira vez no Ocidente
com a sua famosa Roda, à Fama e à Riqueza, que tentam renhir com a
filosofia e acabam vencidas. A grande questão de Boécio, no entanto, é
bastante simples: o que é que o mundo nos pode dar?
Ora, todo o livro é um mapa das várias hipóteses — poder, fama,
glória — e a demonstração de que nada disso dá uma resposta satisfatória
àquilo que o Homem quer. Todo o valor do mundo é dado pelo ponto de
vista do Homem, pelo que o mundo não tem verdadeiramente poder para o
afetar.
A obra de Primo Levi, por outro lado, parte do princípio contrário.
Enquanto em Boécio o que há é uma consolação, isto é, a filosofia surge
para alterar o estado em que Boécio se encontra, com Primo Levi o ponto
de partida é precisamente a ideia de que o mundo nos afeta. Estarmos
cercados pela maldade faz-nos adotar a maldade, o instinto de
sobrevivência torna-nos mais cruéis, de tal modo que a distinção que se
tornou clássica a partir de Boécio — a distinção entre o mal natural,
aqueles que nos acontece e de que não temos culpa, e o mal moral, aquele
que fazemos – parece insuficiente: Primo Levi mostra que o mal nos
acontece tende a puxar o mal moral: o horror traz consigo a culpa porque
a resistência ao que nos acontece é muitas vezes culpada. Implica ser
conivente, cobarde, servil ou até mesmo traiçoeiro, para que sejamos
capazes de aguentar a Fortuna.
Boécio tem noção das dificuldades que há em aguentar a Fortuna; ele,
aliás, será morto. Também ele acha que o mal nos puxa para o mal; no
entanto, há na sua Consolação um pormenor que torna a sua ideia
completamente diferente da de Primo Levi. Para Boécio o mal natural
também nos puxa para o mal moral; no entanto, também denuncia a
arbitrariedade do destino. O facto de ao Homem bom acontecerem coisas
más desperta-o para o centro das suas ações. Ele age em nome da
consequência ou do princípio? O mal natural tem a vantagem sobre o Bem
de funcionar como castigo de quem o merece e despertador para quem não o
merece. Se, de facto, não são as consequências mas sim o princípio que
interessa na nossa ação, então consequência nenhuma nos fará vacilar.
Pode vir a tortura ou a morte, como chegou a Sócrates ou a Boécio, que
isso nada trará de diferente ao Homem.
Primo Levi olha para a questão de um ponto de vista mais trágico. De
nada interessa o princípio, quando aquilo que nos é exterior determina o
fim. Se aquilo que nos acontece nos faz portar como cães, de nada vale
que tenhamos sido homens bons; o mal externo é um castigo, não porque a
tortura seja em si tão má como parece, mas porque a tortura nos
transforma em culpados.
A diferença entre Boécio e Primo Levi é a diferença entre a culpa
cristã e a culpa judaica. O castigo, para o cristão, é redentor; para o
judeu é trágico e quase definitivo, porque transforma o homem num mau
homem. A antropologia Cristã é uma antropologia do poder do Homem sobre
as coisas; a de Primo Levi é a antropologia do poder das coisas sobre o
Homem. Neste sentido, é materialista, mas não no sentido amoral que o
materialismo marxista lhe deu; o materialismo de Levi, a incapacidade do
Homem se libertar do que lhe acontece e de ser superior ao que o rodeia
transforma a sua ideia de Homem num modelo sufocante. A ideia de que há
um reduto de humanidade imune à tragédia, que por muito distraído que
ande pode sempre erguer-se e vencer a Natureza tem um lado consolador
que não há em Primo Levi. O Homem de Primo Levi perde a sua humanidade à
medida que aquilo que não é humano invade a sua vida. Um homem pode
deixar de ser homem, para se transformar naquilo que o domina.
Levi não se libertou do Holocausto, como uma Europa habituada à ideia
Cristã de culpa estaria à espera. Foi uma vítima que se sentiu sempre
culpada, o que também surpreende num mundo à espera da triagem clara
entre vítimas e prevaricadores. É esse lado que permanece incómodo na
sua obra: a ideia de que o mal ainda está ali, e de que ele se sente
culpado por isso.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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