Flavio Gordon publica, em sua coluna na Gazeta,
interessante artigo sobre o criacionismo. Tem razão em dizer que o
catolicismo não é criacionista, isto é, não interpreta o Gênesis
literalmente, como o fazem algumas religiões associadas ao cristianismo.
Tem razão em dizer, também, que Darwin não era ateu: no máximo, era
agnóstico. Sabia que Deus é uma questão de fé, não de ciência. Como já
afirmara o filósofo Kant, que não era ateu nem agnóstico, Deus não é um
problema do conhecimento: é objeto de fé, pois não existe nenhum
argumento que possa transformá-lo em objeto de conhecimento - que é
sempre dependente da união de duas faculdades, intelecto e
sensibilidade. Não há conhecimento do supra-sensível. A conclusão serve
tanto para o teísmo quanto para o ateísmo - dois tipos opostos de fé:
Dia desses, em provável referência ao criacionismo do novo presidente
da Capes (que é evangélico), o jornalista Pedro Dória comentou em sua
conta no Twitter: “Amigos católicos, percebo que alguns de vocês estão
desatualizados. Desde Pio XVII (sic), em 1950, que a Igreja considera
que não há incompatibilidade entre fé e Darwin. A Igreja Católica não é
criacionista faz muito tempo. Não é anticientificista. Foi. Não mais e
faz tempo”.
Deparando-me com o tuíte, só consegui lembrar do que disse certa vez o
físico alemão Wolfgang Pauli ao receber de um jovem aluno o esboço de
um artigo sofrível: “Não é apenas que não esteja certo. Não está nem
mesmo errado”.
De fato. Para chegar a estar errado, o comentário de Pedro Dória teria de melhorar um bocado.
Há, logo de cara, a curiosa referência ao papa “Pio XVII” – pontífice
que talvez venha a surgir no futuro, mas que, por enquanto, não existe.
O jornalista decerto estava pensando em Pio XII e na sua encíclica
Humani Generis. Mas até aí, nada de grave. Trata-se de um lapso
desculpável em se tratando de redes sociais.
O que já não dá para desculpar é a falta de jeito no manejo de termos
como “criacionista” e “anticientificista”, que requerem do leitor
grande esforço para imaginar o que, sem ser plenamente capaz de fazê-lo,
o jornalista estava tentando dizer. No jargão do futebol, dir-se-ia que
o rapaz não tem muita intimidade com a pelota.
Só podemos especular que, por “anticientificista”, ele quisesse
dizer, na verdade, anticientífica. Ora, o cientificismo é uma ideologia
que toma a ciência apenas como pretexto e, a despeito da relação
morfológica entre as palavras, conceitualmente tem tanto a ver com a
ciência quanto o vegetarianismo tem a ver com os vegetais.
Portanto, como é de se esperar de todo sujeito racional (incluindo
qualquer cientista digno do nome), a Igreja continua, sim, sendo
anticientificista – ou seja, contrária à transformação da ciência em
ideologia. Mas não, a Igreja não é (nem nunca foi, ao contrário do que
diz o jornalista) contrária à ciência enquanto tal. E só mesmo uma
inteligência moldada por fábulas anticlericais infantis para continuar
acreditando nisso.
Cientificismo à parte, todavia, Pedro Dória também se atrapalha com o
criacionismo, ao dizer que “a Igreja Católica não é criacionista faz
muito tempo”.
Tecnicamente, o termo “criacionismo” aplica-se a um contexto
religioso bastante específico, que pouco tem a ver com o catolicismo, a
não ser quando empregado em sentido vago e artificialmente ampliado. A
palavra designa o modo fundamentalista e literalista com que uma parte
do protestantismo norte-americano lida com a Bíblia, acreditando que o
universo foi criado por Deus exatamente da forma como descreve o livro
do Gênesis, ou seja, em sete dias contados, cada qual com 24 horas de
duração.
Acomodando-se mal fora do contexto norte-americano, o termo diz
respeito, mais especificamente, ao movimento antievolucionista surgido
nos Estados Unidos nos anos 1920, cujo episódio mais célebre,
romantizado na Broadway e em Hollywood, foi o “Julgamento do Macaco”
(também conhecido como “Caso Scopes”) – no qual o professor de ciências
John T. Scopes foi levado a julgamento por ensinar a Teoria da Evolução
em uma escola secundária na cidade de Dayton (Tennessee).
Depois de um período de certo esgotamento, houve nos anos 1960 uma
espécie de renouveau do criacionismo, sobretudo após a publicação do
livro The Genesis Flood, de John C. Whitcomb e Henry M. Morris, quando o
movimento passou definitivamente a reivindicar o estatuto de
científico, lutando para que os currículos escolares incorporassem a
“ciência criacionista” como alternativa à Teoria da Evolução das
espécies.
Também refém da ideologia cientificista, o criacionismo é uma
tentativa de provar cientificamente (ou, se preferirem,
materialisticamente) as verdades reveladas, quase como se a Bíblia
pudesse ser lida à moda de uma apostila de história natural. E, nesse
sentido particular, não é que a Igreja Católica tenha deixado de ser
criacionista nos anos 1950, como pretende o jornalista do Estadão. Na
verdade, ela nunca o foi.
A insistência católica na importância da tradição consagrada pelo
magistério da Igreja vem justamente da percepção desse risco de leituras
descuidadas e literalistas das Sagradas Escrituras, que, na ausência de
um conhecimento especializado em filologia e hermenêutica, acabam
distorcendo gravemente o sentido do texto. Há muitas camadas
interpretativas na Bíblia, que exibe uma estonteante variedade
estilística e simbólica, bem como o recurso frequente à linguagem
figurada.
Daí que, por exemplo, a constituição dogmática Dei Verbum recomende:
“O intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele [Deus] quis
comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos
realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio
das suas palavras. Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem ser
tidos também em conta, entre outras coisas, os ‘gêneros literários’. Com
efeito, a verdade é proposta e expressa de modos diversos, segundo se
trata de gêneros históricos, proféticos, poéticos ou outros. Importa,
além disso, que o intérprete busque o sentido que o hagiógrafo em
determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua
cultura, pretendeu exprimir e de fato exprimiu servindo-se dos gêneros
literários então usados. Com efeito, para entender retamente o que o
autor sagrado quis afirmar, deve atender-se convenientemente, quer aos
modos nativos de sentir, dizer ou narrar em uso nos tempos do
hagiógrafo, quer àqueles que costumavam empregar-se frequentemente nas
relações entre os homens de então”.
O uso bíblico dos numerais, por exemplo, é sabidamente complexo e
prenhe de simbolismo. Já no século 5.º, Santo Agostinho condenava a
interpretação literalista que os quiliastas faziam do número mil na
passagem “reinariam com Jesus durante mil anos”, do livro do Apocalipse
(20,6). Em A Cidade de Deus, tendo em conta a tradição bíblica de
simbolizar a ideia de totalidade por um número inteiro, o bispo de
Hipona explica que os “mil anos” devem ser compreendidos figuradamente,
representando a totalidade do tempo histórico. Ao falar em “mil anos”,
portanto, o apóstolo João estaria se referindo ao reino de Cristo em sua
Igreja no presente saeculum, cuja consumação no Juízo Final ninguém
(“senão o Pai”) sabe quando irá ocorrer.
O fato é que a Igreja Católica jamais esposou o tipo de literalismo
bíblico característico do criacionismo. Nem, muito menos, a sua visão
cientificista da religião. E, já que Pedro Dória optou por referências
veladas e encíclicas papais, talvez devesse ter consultado a
Providentissimus Deus (1893), de Leão XIII, que, embora reconhecendo a
legitimidade da ciência enquanto domínio específico do saber, instrui
expressamente os católicos a jamais buscar informações científicas na
Bíblia, seguindo nisso, aliás, uma longa tradição teológica.
Já na Alta Idade Média, havia uma divisão clara no seio da teologia
católica entre uma teologia da revelação – que lidava diretamente com as
Sagradas Escrituras e com a doutrina da salvação – e aquilo que se
convencionou chamar de “teologia natural”, segundo a qual Deus não havia
simplesmente criado a natureza, fazendo também com que ela se criasse a
si própria por meio de leis naturais. Como explica o historiador da
ciência John H. Brooke: “A teologia natural é um tipo de discurso
teológico no qual a existência e os atributos da divindade são
discutidos em termos do que pode ser conhecido via razão natural, em
contraste (embora não necessariamente em oposição) com o conhecimento
adquirido por revelação especial”.
Essa divisão no campo teológico remonta ao pensamento dos Padres da
Igreja Clemente e Orígenes, conhecidos como “os platonistas cristãos de
Alexandria”. No segundo século da era cristã, ambos propuseram a noção
de que Deus manifesta a sua essência por meio de dois “livros”: o livro
da natureza e o das Sagradas Escrituras. Mais tarde, essa doutrina viria
a ser desenvolvida por Agostinho, que terminou por consagrar a
distinção entre os ensinamentos bíblicos sobre assuntos espirituais e a
descrição do mundo natural.
Ecos dessa concepção, conquanto gradualmente deformados e amputados
de sua dimensão transcendente original, permaneceram audíveis no
decorrer da história da ciência moderna, inclusive nos primórdios da
cosmovisão evolucionista.
Em 1794, por exemplo, ninguém menos que Erasmus Darwin, avô de
Charles, escreveu em seu Zoonomia: “O mundo mesmo deve ter sido gerado
antes que criado; ou seja, deve ter sido gradualmente produzido a partir
de pequenos começos, desenvolvendo-se pela ação de seus princípios
inerentes mais do que através de uma súbita evolução total vinda do fiat
do Todo-Poderoso. Que ideia magnífica do poder infinito do grande
arquiteto! A Causa das causas! O Pai dos pais! Ens Entium! Pois, se nos
for permitido comparar infinitos, pareceria requerer uma maior
infinidade de poder causar a causa dos efeitos do que os efeitos eles
próprios”.
Sendo assim, antes que inimigo da ciência moderna (segundo Dória o
imagina antes dos anos 1950), o catolicismo foi, ao contrário, a sua
condição de possibilidade. A noção de que o mundo natural pode ser
compreendido independentemente do mistério da revelação decorre de uma
concepção racionalista de Deus, desenvolvida inicialmente por teólogos
como Santo Anselmo, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Portanto,
como afirma o filósofo Alfred Whitehead em Science and the Modern World
(1925): “A fé na possibilidade da ciência é uma derivação inconsciente
da teologia medieval”.
Quanto à relação entre a Igreja e a Teoria da Evolução, por sua vez,
as coisas são um pouco mais complexas do que Pedro Dória quer nos fazer
crer. Quando, portanto, ele sugere um endosso simples e inequívoco do
papa Pio XII ao darwinismo, parece estar falando de orelhada. Pois, caso
tivesse lido com atenção a encíclica à qual se refere – a Humani
Generis –, decerto não ignoraria os trechos em que o pontífice alerta
para a necessidade de extrema cautela no tratamento do tema,
manifestando, ademais, preocupação com as extrapolações metafísicas e
ideológicas da teoria. Prosseguiremos daí no artigo da semana que vem.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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