sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Fé católica e Darwin: sobre um tuíte confuso do jornalista Pedro Dória.


Flavio Gordon publica, em sua coluna na Gazeta, interessante artigo sobre o criacionismo. Tem razão em dizer que o catolicismo não é criacionista, isto é, não interpreta o Gênesis literalmente, como o fazem algumas religiões associadas ao cristianismo. Tem razão em dizer, também, que Darwin não era ateu: no máximo, era agnóstico. Sabia que Deus é uma questão de fé, não de ciência. Como já afirmara o filósofo Kant, que não era ateu nem agnóstico, Deus não é um problema do conhecimento: é objeto de fé, pois não existe nenhum argumento que possa transformá-lo em objeto de conhecimento - que é sempre dependente da união de duas faculdades, intelecto e sensibilidade. Não há conhecimento do supra-sensível. A conclusão serve tanto para o teísmo quanto para o ateísmo - dois tipos opostos de fé:


Dia desses, em provável referência ao criacionismo do novo presidente da Capes (que é evangélico), o jornalista Pedro Dória comentou em sua conta no Twitter: “Amigos católicos, percebo que alguns de vocês estão desatualizados. Desde Pio XVII (sic), em 1950, que a Igreja considera que não há incompatibilidade entre fé e Darwin. A Igreja Católica não é criacionista faz muito tempo. Não é anticientificista. Foi. Não mais e faz tempo”.
Deparando-me com o tuíte, só consegui lembrar do que disse certa vez o físico alemão Wolfgang Pauli ao receber de um jovem aluno o esboço de um artigo sofrível: “Não é apenas que não esteja certo. Não está nem mesmo errado”.
De fato. Para chegar a estar errado, o comentário de Pedro Dória teria de melhorar um bocado.
Há, logo de cara, a curiosa referência ao papa “Pio XVII” – pontífice que talvez venha a surgir no futuro, mas que, por enquanto, não existe. O jornalista decerto estava pensando em Pio XII e na sua encíclica Humani Generis. Mas até aí, nada de grave. Trata-se de um lapso desculpável em se tratando de redes sociais.
O que já não dá para desculpar é a falta de jeito no manejo de termos como “criacionista” e “anticientificista”, que requerem do leitor grande esforço para imaginar o que, sem ser plenamente capaz de fazê-lo, o jornalista estava tentando dizer. No jargão do futebol, dir-se-ia que o rapaz não tem muita intimidade com a pelota.
Só podemos especular que, por “anticientificista”, ele quisesse dizer, na verdade, anticientífica. Ora, o cientificismo é uma ideologia que toma a ciência apenas como pretexto e, a despeito da relação morfológica entre as palavras, conceitualmente tem tanto a ver com a ciência quanto o vegetarianismo tem a ver com os vegetais.
Portanto, como é de se esperar de todo sujeito racional (incluindo qualquer cientista digno do nome), a Igreja continua, sim, sendo anticientificista – ou seja, contrária à transformação da ciência em ideologia. Mas não, a Igreja não é (nem nunca foi, ao contrário do que diz o jornalista) contrária à ciência enquanto tal. E só mesmo uma inteligência moldada por fábulas anticlericais infantis para continuar acreditando nisso.
Cientificismo à parte, todavia, Pedro Dória também se atrapalha com o criacionismo, ao dizer que “a Igreja Católica não é criacionista faz muito tempo”.
Tecnicamente, o termo “criacionismo” aplica-se a um contexto religioso bastante específico, que pouco tem a ver com o catolicismo, a não ser quando empregado em sentido vago e artificialmente ampliado. A palavra designa o modo fundamentalista e literalista com que uma parte do protestantismo norte-americano lida com a Bíblia, acreditando que o universo foi criado por Deus exatamente da forma como descreve o livro do Gênesis, ou seja, em sete dias contados, cada qual com 24 horas de duração.
Acomodando-se mal fora do contexto norte-americano, o termo diz respeito, mais especificamente, ao movimento antievolucionista surgido nos Estados Unidos nos anos 1920, cujo episódio mais célebre, romantizado na Broadway e em Hollywood, foi o “Julgamento do Macaco” (também conhecido como “Caso Scopes”) – no qual o professor de ciências John T. Scopes foi levado a julgamento por ensinar a Teoria da Evolução em uma escola secundária na cidade de Dayton (Tennessee).
Depois de um período de certo esgotamento, houve nos anos 1960 uma espécie de renouveau do criacionismo, sobretudo após a publicação do livro The Genesis Flood, de John C. Whitcomb e Henry M. Morris, quando o movimento passou definitivamente a reivindicar o estatuto de científico, lutando para que os currículos escolares incorporassem a “ciência criacionista” como alternativa à Teoria da Evolução das espécies.
Também refém da ideologia cientificista, o criacionismo é uma tentativa de provar cientificamente (ou, se preferirem, materialisticamente) as verdades reveladas, quase como se a Bíblia pudesse ser lida à moda de uma apostila de história natural. E, nesse sentido particular, não é que a Igreja Católica tenha deixado de ser criacionista nos anos 1950, como pretende o jornalista do Estadão. Na verdade, ela nunca o foi.

A insistência católica na importância da tradição consagrada pelo magistério da Igreja vem justamente da percepção desse risco de leituras descuidadas e literalistas das Sagradas Escrituras, que, na ausência de um conhecimento especializado em filologia e hermenêutica, acabam distorcendo gravemente o sentido do texto. Há muitas camadas interpretativas na Bíblia, que exibe uma estonteante variedade estilística e simbólica, bem como o recurso frequente à linguagem figurada.

Daí que, por exemplo, a constituição dogmática Dei Verbum recomende: “O intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele [Deus] quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras. Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem ser tidos também em conta, entre outras coisas, os ‘gêneros literários’. Com efeito, a verdade é proposta e expressa de modos diversos, segundo se trata de gêneros históricos, proféticos, poéticos ou outros. Importa, além disso, que o intérprete busque o sentido que o hagiógrafo em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretendeu exprimir e de fato exprimiu servindo-se dos gêneros literários então usados. Com efeito, para entender retamente o que o autor sagrado quis afirmar, deve atender-se convenientemente, quer aos modos nativos de sentir, dizer ou narrar em uso nos tempos do hagiógrafo, quer àqueles que costumavam empregar-se frequentemente nas relações entre os homens de então”.
O uso bíblico dos numerais, por exemplo, é sabidamente complexo e prenhe de simbolismo. Já no século 5.º, Santo Agostinho condenava a interpretação literalista que os quiliastas faziam do número mil na passagem “reinariam com Jesus durante mil anos”, do livro do Apocalipse (20,6). Em A Cidade de Deus, tendo em conta a tradição bíblica de simbolizar a ideia de totalidade por um número inteiro, o bispo de Hipona explica que os “mil anos” devem ser compreendidos figuradamente, representando a totalidade do tempo histórico. Ao falar em “mil anos”, portanto, o apóstolo João estaria se referindo ao reino de Cristo em sua Igreja no presente saeculum, cuja consumação no Juízo Final ninguém (“senão o Pai”) sabe quando irá ocorrer.
O fato é que a Igreja Católica jamais esposou o tipo de literalismo bíblico característico do criacionismo. Nem, muito menos, a sua visão cientificista da religião. E, já que Pedro Dória optou por referências veladas e encíclicas papais, talvez devesse ter consultado a Providentissimus Deus (1893), de Leão XIII, que, embora reconhecendo a legitimidade da ciência enquanto domínio específico do saber, instrui expressamente os católicos a jamais buscar informações científicas na Bíblia, seguindo nisso, aliás, uma longa tradição teológica.
Já na Alta Idade Média, havia uma divisão clara no seio da teologia católica entre uma teologia da revelação – que lidava diretamente com as Sagradas Escrituras e com a doutrina da salvação – e aquilo que se convencionou chamar de “teologia natural”, segundo a qual Deus não havia simplesmente criado a natureza, fazendo também com que ela se criasse a si própria por meio de leis naturais. Como explica o historiador da ciência John H. Brooke: “A teologia natural é um tipo de discurso teológico no qual a existência e os atributos da divindade são discutidos em termos do que pode ser conhecido via razão natural, em contraste (embora não necessariamente em oposição) com o conhecimento adquirido por revelação especial”.
Essa divisão no campo teológico remonta ao pensamento dos Padres da Igreja Clemente e Orígenes, conhecidos como “os platonistas cristãos de Alexandria”. No segundo século da era cristã, ambos propuseram a noção de que Deus manifesta a sua essência por meio de dois “livros”: o livro da natureza e o das Sagradas Escrituras. Mais tarde, essa doutrina viria a ser desenvolvida por Agostinho, que terminou por consagrar a distinção entre os ensinamentos bíblicos sobre assuntos espirituais e a descrição do mundo natural.
Ecos dessa concepção, conquanto gradualmente deformados e amputados de sua dimensão transcendente original, permaneceram audíveis no decorrer da história da ciência moderna, inclusive nos primórdios da cosmovisão evolucionista.
Em 1794, por exemplo, ninguém menos que Erasmus Darwin, avô de Charles, escreveu em seu Zoonomia: “O mundo mesmo deve ter sido gerado antes que criado; ou seja, deve ter sido gradualmente produzido a partir de pequenos começos, desenvolvendo-se pela ação de seus princípios inerentes mais do que através de uma súbita evolução total vinda do fiat do Todo-Poderoso. Que ideia magnífica do poder infinito do grande arquiteto! A Causa das causas! O Pai dos pais! Ens Entium! Pois, se nos for permitido comparar infinitos, pareceria requerer uma maior infinidade de poder causar a causa dos efeitos do que os efeitos eles próprios”.
Sendo assim, antes que inimigo da ciência moderna (segundo Dória o imagina antes dos anos 1950), o catolicismo foi, ao contrário, a sua condição de possibilidade. A noção de que o mundo natural pode ser compreendido independentemente do mistério da revelação decorre de uma concepção racionalista de Deus, desenvolvida inicialmente por teólogos como Santo Anselmo, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Portanto, como afirma o filósofo Alfred Whitehead em Science and the Modern World (1925): “A fé na possibilidade da ciência é uma derivação inconsciente da teologia medieval”.
Quanto à relação entre a Igreja e a Teoria da Evolução, por sua vez, as coisas são um pouco mais complexas do que Pedro Dória quer nos fazer crer. Quando, portanto, ele sugere um endosso simples e inequívoco do papa Pio XII ao darwinismo, parece estar falando de orelhada. Pois, caso tivesse lido com atenção a encíclica à qual se refere – a Humani Generis –, decerto não ignoraria os trechos em que o pontífice alerta para a necessidade de extrema cautela no tratamento do tema, manifestando, ademais, preocupação com as extrapolações metafísicas e ideológicas da teoria. Prosseguiremos daí no artigo da semana que vem.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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